Discursos podem mentir, mas as imagens
não. Talvez porque a linguagem visual esteja próxima da lógica dos sonhos, ela
pode revelar atos falhos e sintomas por trás dos simbolismos políticos e
ideológicos. A marca visual criada pelo “novo” governo Temer pelo marqueteiro
Elsinho Mouco obviamente é dominada por alusões aos simbolismos da bandeira
nacional. Mas no meio do azul, verde, amarelo e branco saltam atos falhos
análogos aos sintomas da psicanálise: estranhos domínios de cores, degrades e
sólidos geométricos que, comparando as
sucessivas marcas de governos anteriores, de Collor a Dilma, tornam-se
“anomalias”. Quando a propaganda política dá o salto para convencer corações e
mentes pode cair e quebrar o pescoço, revelando as verdadeiras intenções
escondidas pelos símbolos.
Discursos e documentos políticos são repletos de
tergiversações, eufemismos, camadas e mais camadas de retórica que escondem as
verdadeiras intenções. O que torna a linguagem verbal opaca e de difícil
interpretação ou desconstrução.
Ao contrário,
produtos audiovisuais e imagens deixam transparecer atos falhos, índices,
pistas que se revelam verdadeiros sintomas que podem traduzir o espírito do seu
tempo.
Talvez porque as imagens trabalham com a mesma
lógica dos sonhos: metáforas e metonímias ou “condensações e deslocamentos”,
como Freud descrevia na sua interpretação dos sonhos. Qualquer imagem (de fotografias ou pinturas
até logotipos ou imagens publicitárias) opera por essa lógica onírica para
conquistar corações e mentes. E nesse salto de propaganda para seduzir e
convencer pode cair e quebrar o pescoço, deixando revelar atos falhos onde são
reveladas as verdadeiras intenções.
Como toda peça de propaganda política, a marca ou
identidade visual do “novo” governo do vice-agora-presidente-interino-em-exercício
Michel Temer idealizada pelo marqueteiro Elsinho Mouco também nos mostra essa
dupla lógica da imagem: quer ser uma metáfora, um símbolo de uma plataforma
política. Mas também revela sintomas, deslocamentos metonímicos, atos falhos que
demonstram intenções mais profundas – aquilo que o discurso político sempre quer
esconder.
Por que o verde desapareceu?
Como simbolismo, a marca criada por Mouco trabalha
com elementos da bandeira nacional como o círculo celeste e a faixa com o lema
“ordem e progresso”. Como propaganda política, quer evidentemente transferir a
dignidade dos simbolismos republicanos para um novo governo tornando suas
intenções mais “nobres e legitimas”. Assim como todas as outras marcas dos
governos que antecederam, de Collor a Dilma.
Duas coisas chamam inicialmente a atenção:
primeiro, o desaparecimento da cor verde (limitada à letra do lema “ordem e progresso”)
pela primeira vez no histórico das marcas dos sucessivos governos que sempre
contemplaram todas as cores da bandeira nacional de forma equilibrada – como
podemos observar na série abaixo; e segundo, o domínio na composição da cor
azul em degradê e do círculo celeste transformado em sólido geométrico que
parece pairar muito próximo sobre a palavra “BRASIL” desenhada em extrusão
(convertido de 2D para 3D), em perspectiva como se estivesse colocada em uma
superfície sobre a qual paira o sólido.
Acima: governos Collor e Itamar Franco; no centro, governo FHC; abaixo governos Lula e Dilma |
O interessante na percepção em semiótica são as
chamadas “dominantes” seja de cor, textura, forma. Nesse caso temos a dominante
da cor azul em degradê. Por que esse desequilíbrio na aplicação das cores da
bandeira nacional olhando a série histórica das marcas? Estamos diante de um
sintoma?
No simbolismo das cores o azul é a cor masculina –
e ainda no contraste com o branco passaria os significados de “inteligência”,
“racionalidade” e “concentração”, significados que no âmbito do senso comum
seriam qualidades exclusivamente masculinas, contrastando com a “emotividade”
feminina – leia HELLER, Eva, Psicologia
das Cores, GG Brasil, 2012.
A nostalgia retro-futurista
Muitos analistas veem no ministério formado por
Temer um retrocesso – eminentemente masculino, branco e rico, num país marcado
pela diversidade étnica. Coincidência ou sintoma? O processo criativo da marca
inconscientemente expressou essa realidade?
Mas se a cor em si é um simbolismo, o degrade é uma
metonímia: dá uma aspecto 3D a dimensão plana onde repousa as palavras “Brasil
Governo Federal” e confere volume à esfera azul. Se o azul expressaria um
“retrocesso” (masculinização e homogeneidade étnica), esse efeito em 3D lembra
outra coisa antiga: a estética “platinada”, metálica e artificial de Hans
Donner.
A primeira impressão que se tem quando bate os
olhos na marca é a velha identidade da TV Globo que marcou a emissora por
décadas criada pelo designer austríaco nos anos 1970: mulheres metálicas e
sólidos geométricos voando em círculos no vazio onde o efeito em degrade dava
um aspecto de maior profundidade para o movimento das formas.
Nos anos 1970 os movimentos futuristas de esferas,
cones e pirâmides na seminal computação gráfica das vinhetas criadas por Hans
Donner dava uma atmosfera de “modernidade” para
uma nova classe média que surgia no chamado “Brasil Grande” no Milagre
Econômico da Ditadura Militar.
O retro-futurismo de Hans Donner |
Depois de décadas esse retro-futurismo tornou-se
tão brega que a própria TV Globo abandonou a identidade visual space opera de Donner adotando uma
estética mais “orgânica”: logos com desenhos em contornos estilo “hand shop”,
bancadas e cenários dos programas
abandonando o visual espaçonave para adotar pisos que simulam tábuas de madeira
e uma paleta de cores sem mais o brilho metálico.
A classe média já não era mais a mesma dos anos
1970, mas agora a da Classe C com novos hábitos de consumo representado pelo
“funk ostentação”.
As próprias marcas oficiais dos governos Lula e
Dilma participaram dessa mudança visual quando adotaram uma paleta de cores
pastéis com uma variedade cromática que ia além das cores da bandeira nacional
para expressar a variedade étnica do País.
A marca que já nasceu velha
Ato falho no processo criativo de Elsinho Mouco?
Uma identidade visual que já nasceu velha assim como o “novo” governo?
O logotipo parece dialogar com as pessoas que
compartilham dessa mesma linguagem ultrapassada: aquelas que cresceram nas
décadas de hegemonia global cuja visão de mundo foi moldada até hoje pelos
telejornais. Mais do que isso, uma geração cuja mentalidade é formada pela
tradicional mídia de massas. Bem diferente das novas gerações que abandonam a
TV para trocá-las pelas mídias de convergência – smartphones, tablets e lap
tops.
Temer dialoga com essa velha geração que quer ver
novamente o País ser colocado nos trilhos dos quais jamais deveria ter saído –
do neodesenvolvimentisto da era Lula para o desenvolvimento neoliberal de
dependência externa. Da frigideira para cair no fogo.
Mas o que talvez seja mais perturbador na
identidade visual de Elsinho Mouco é que diante de tantos sintomas e atos
falhos talvez possa também expressar uma sinistra profecia: o lema de origem
positivista “Ordem e Progresso” (da filosofia do Positivismo do século XIX de
Augusto Comte até a influência na alta oficialidade do Exército Brasileiro no
movimento Republicano) pairando sobre a palavra “Brasil”: para haver progresso
é necessário haver ordem – uma ideologia de péssimas lembranças como a Ditadura
Militar onde era necessário haver ordem a qualquer preço, mesmo que para isso
fosse necessária a repressão violenta, perseguição e tortura.
A esfera (elemento visualmente pesado) paira sobre
um bloco visualmente mais leve (as palavras “Brasil Governo Federal) em 3D fino
como folha de papel. Além de subverter uma técnica Gestalt em comunicação
visual (as formas mais “pesadas” ficam abaixo para ser base das formas mais
leves) passa a ideia de uma bola de ferro “esmagando” ou “oprimindo”.
E ainda dentro do estilo retro-futurismo da marca
do “novo” Governo, as palavras “Brasil Governo Federal” em perspectiva cria a
imediata associação metonímica com os crédito iniciais da velha trilogia Star
Wars. Mais um ato falho? A marca do “Império do Mal” e Temer o novo Darth
Vader?
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