No discurso de posse como
vice-agora-presidente-interino-em-exercício, mais uma vez Michel Temer exibe a
sua tradicional canastrice telegência (gestual, entonação e postura corporal alusivos
a apresentadores de TV), atualmente elemento importante na propaganda político.
Mas Temer foi além. Já no final, mais descontraído, exortou os brasileiros a
“não falar mais em crise” a partir de um outdoor que teria lhe inspirado, onde
lia-se: “Não fale em crise... trabalhe!!!”. Temer quer espalhar outdoors como esse
pelo País. Ironicamente, depois de três anos onde a grande mídia cultivou
meticulosamente o baixo astral para reverter as expectativas dos agentes
econômicos. Dessa maneira, Temer sem querer revelou como nascem as crises
econômicas: profecias autorrealizáveis. Crises cujas causas estariam muito mais
no campo semiótico do que nas conjunturas dos fatores econômicos.
Já que estamos iniciando tempos de back to the future com a posse do vice-agora-presidente-interino-em-exercício
Michel Temer e seu ministério somente de homens brancos e ricos, poderíamos
lembrar dos chamados escritores fisionomistas do século XIX como, por exemplo,
Honoré de Balzac autor de A Comédia Humana.
Ele acreditava que poderíamos conhecer a índole de uma pessoa pela observação
da sua fisionomia.
Certamente o physique
du rôle de Temer seria um prato cheio para o fisionomista Balzac. Escreveria muitas linhas sobre a personalidade por trás de uma fisionomia que provoca alcunhas como “Mordomo do Drácula”, “ave de rapina” ou “O Amigo da Onça”,
referência ao personagem traiçoeiro criado pelo cartunista Péricles.
Em postagem passada o Cinegnose já analisou a
canastrice telegênica de Temer como importante elemento de propaganda política
– o peito empolado, as mãos gesticulando sempre em movimentos circulares e o corte
reto ultrapassado do terno e a cabeça sempre maneando lembrando alusões televisivas como Silvio
Santos, Raul Gil e a seriedade estudada de William Bonner – sobre isso clique aqui.
Mas além de todos esses aspectos que envolvem o
artificialismo da canastrice na propaganda política, o discurso da posse de
Michel Temer trouxe uma inesperada revelação de como nascem as crises, sejam
elas econômicas ou políticas.
No final do discurso de posse, visivelmente mais
solto e com uma gesticulação ainda mais frenética com os mesmos movimentos
circulares (o velho tique do Sílvio Santos que reflete uma espécie de etiqueta
pseudo-chique afetada de classe média, assim como tomar um copo de uísque com o
dedo mínimo levantado), Temer entusiasmado disse:
A partir de agora nós não podemos mais falar em crise... há pouco tempo passava por um posto de gasolina na Castelo Branco e um sujeito colocou uma placa: “Não fale em crise, trabalhe”. Eu quero até ver se consigo espalhar essa frase em 10, 20 milhões de outdoors por todo o Brasil, porque isso cria um clima de harmonia, interesse, de otimismo... Portanto, não vamos falar em crise...
Esse pequeno trecho renderia várias teses e dissertações
em áreas tão diversas como Economia, Psicologia e Comunicação Social. Revela o fenômeno inercial cognitivo da
profecia autorrealizável, presente na inseminação de crises, sejam econômicas,
pessoais ou nos efeitos virais dos climas de opinião.
O desafio de Temer
Esse é o desafio de Temer: dar a uma previsão
positiva a força de uma profecia autorrealizável. Como veremos, esse fenômeno
inercial cognitivo parece apenas funcionar em previsões negativas como nos
boatos ou expectativas sobre inflação, falências, crises, pânico etc.
E também parece que esse wishful thinking de Temer começou bem desastrado: o dono da frase
que inspirou o presidente-interino-em-exercício é um empresário que está preso
por tentativa de homicídio e ainda responde por estelionato e receptação – clique aqui.
A exortação “a partir de agora não devemos falar de
crise” sugere que até minutos antes da posse do novo ministério todos estavam
falando em crise. Interessante exortação, já que Temer admite que não é apenas
suficiente adotar as clássicas medidas técnicas para a criação do Estado Mínimo neoliberal para que tudo melhore
– é necessário também um, por assim dizer, “pensamento positivo”, o desejo e a
admissão de que não existe mais crise.
Wittgenstein: a pragmática antecede a semântica
Filósofos da linguagem como Wittgenstein diriam que
esse é um típico exemplo de como a pragmática antecede a semântica, os
diferentes modos ou jogos de linguagem antecipam qualquer iniciativa da
linguagem representar qualquer realidade. O contexto antecede o significado. O
signo não representa – antes disso pede uma reação.
A grande mídia nos últimos três anos bateu
diariamente, manhã tarde e noite, na tecla de uma crise econômica
descontrolada: desemprego, inflação, dívida pública, apagões etc. Se até 2012 o
País tinha um “crescimento econômico invejável” e “decolava” com a entrada nos
BRICS, como observava a revista The
Economist, repentinamente tudo mudou como se tivesse virado um disco de
vinil para o lado B. Da euforia para a catástrofe de uma hora para outra.
O mito da "decisão errada"
E todas as mazelas seriam fruto das “decisões
erradas” da presidenta que fariam os investidores retraírem, o PIB cair e a
nota de crédito do País despencar.
O mito da “decisão errada” em economia (o viés
errado da taxa Selic, o travamento de investimentos em infraestrutura, manter juros
elevados, taxa de câmbio fixa etc.) encobre essa natureza pragmática dos
discursos apontado por Wittgenstein. A aparente tecnicidade das críticas
esconde a disputa inerente à toda ação política – puxar a brasa da fogueira
para o seu lado.
O discurso não é semântico, mas pragmático. Quer induzir
uma ação, um efeito. Por isso o mecanismo da profecia autorrealizável talvez
seja o elemento mais forte tanto na Economia quanto na Política, principalmente
em tempos onde o contínuo midiático dá sentido e repercussão a discursos e
ações.
Através desse mecanismo, mesmo que as condições
para que algo ocorra não existam, tais condições podem ser construídas por
comportamentos, percepções e desejos convergentes (que são facilitados pela
Consonância, Acumulação e Onisciência midiáticas - CAOs) que acabam impactando
a opinião pública.
A profecia autorrealizável econômica
Mesmo que não existam todas as condições para
surgir uma crise, ao ser admitida como inevitável e, portanto real, pode
induzir a comportamentos que a tornam não somente possível, mas efetivamente realizável.
Mesmo os economistas admitem essa possibilidade e
levam em conta nas suas fabulações técnicas. Por exemplo, na época da
hiperinflação no princípio dos anos 1990, diante da expectativa do controle dos
preços do Governo, os agentes econômicos puxavam os preços para cima com o medo
das medidas restritivas. O suposto remédio anti-inflacionário potencializava a
própria inflação – o aviso de que uma autoridade monetária iria agir alimentava
o incêndio que iria apagar.
Para tentar driblar a profecia auto-realizadora (ou
“inflação inercial”, como chamavam) o economista Pérsio Arida criou a URV
(Unidade Real de Valor), mecanismo que se antecipava às expectativas dos
agentes econômicos, quebrando o ciclo vicioso.
Involuntariamente, em um momento de relaxamento no
final do discurso, Temer pareceu revelar essa natureza dos fatos econômicos
baseados muito mais em percepções arbitrárias do que em conjunturas econômicas
onde causas se acumulariam, e criariam efeitos ao longo do tempo. Ao contrário:
uma hora estamos na euforia, de repente a catástrofe e, num zap, pulamos para
fora do abismo. Graças a “20 milhões de outdoors” – outra involuntária admissão
de que ele sempre espera que a mídia continue ao seu lado.
A positividade pode ser autorrealizável?
Porém, não será fácil para Temer pular fora do
abismo da profecia autorrealizável. Esse mecanismo cognitivo inercial parece
render muito melhor somente com eventos negativos como boatos, crises, pânico,
inflação etc. Talvez Temer tenha se inspirado não só na placa do empresário
homicida, mas também no filme A Corrente
do Bem (2000) onde o protagonista infantil tem uma ideia de promover uma
espécie de corrente em que cada pessoa faria três boas ações para mais três
pessoas e assim sucessivamente. Até mudar o mundo.
Voltando à clássica fórmula da psicologia do rumor
proposta por Gordon Allport e Leo Postman (“A = i x a”, ou seja, o Alcance
(“A”) de um rumor é igual a Importância (“i”) multiplicado pela ambiguidade –
“a”) as expectativas negativas possuem o elemento “ambiguidade” que não está
totalmente presente na expectativa positiva. A expectativa da crise dispara o
fator instintivo da autopreservação e a sua ambiguidade (imprecisão e
generalização da profecia) só amplia esse fator de importância.
Ao contrário, uma “corrente do bem” ou “pensamento
positivo” é moral ou coletivamente perfeito demais para disparar o instinto de
autopreservação: é mais fácil destruir do que construir.
A urgência de Michel Temer de reverter a onda de
pessimismo sofregamente cultivada pela grande mídia com a repercussão e
generalização das más notícias, apenas comprova o quanto de arbitrário esteve
por trás da bomba semiótica da crise econômica autorrealizável.
Num “vapt-vupt” o
vice-agora-presidente-interino-em-exercício quer mudar tudo, tão rapidamente
como tudo começou: com as manifestações de rua contra os 20 centavos, outra
bomba semiótica – só que essa importada pela geopolítica dos EUA – sobre isso clique aqui.
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