A Estrada (The Road, 2009) é um
filme do gênero pós-apocalipse que você nunca viu, baseado no livro de Cornac
Mcarthy e premiado em 2007 com o prêmio Pulitzer. Ao contrário de filmes com a
mesma temática como “O Livro de
Eli” (The Book of Eli, 2010), a esperança dos protagonistas não está em livros
sagrados ou em Deus. A fé perdida deve ser buscada no "fogo do
coração": em um mundo arrasado por um evento apocalíptico só resta a busca
em si mesmo e na lembrança daquilo que foi perdido que não está nesse mundo,
mas em algum lugar idílico no "Sul" para onde os protagonistas
tentarão chegar percorrendo uma estrada de provações.
O mundo como
conhecemos foi destruído por algum evento apocalíptico indeterminado. O
resultado é a morte progressiva do planeta: com exceção dos seres humanos,
animais e o reino vegetal estão morrendo em meio a terremotos e a uma
insistente chuva que cai num mundo cada vez mais cinzento e gelado. Sem
alimentos, grupos se organizam em gangs em busca de combustível e de outros
seres humanos para serem canibalizados. Aqueles que não recorreram ao suicídio
lutam para não serem capturados por essas gangs e sobreviver sem comer seus
semelhantes.
Um homem (Viggo
Mortensen) tem apenas seu filho (Kodi Smit-McPhee) para a companhia nesta terra
árida. A mãe (Charlize Theron) se matou, e a única esperança de sobreviver ao
inverno eterno é atravessar o país em direção do litoral e rumar para o sul. Ao
longo de seu caminho deverão enfrentar a constante ameaça das gangues canibais
e os perigos de um planeta que está morrendo.
Esse plot parece ser
familiar: mais um filme pós-apocalíptico na linha de “Mad Max” ou do recente “O
Livro de Eli” (aliás, como os norte-americanos gostam de destruir o próprio país
nos filmes!). Porém, sua narrativa glacial e precisa, com uma constante
atmosfera de horror pelos recorrentes sinais de canibalismo generalizado torna “A Estrada” um filme pós-apocalíptico
como jamais vimos.
Mas, principalmente, o
que o torna um filme diferenciado para o gênero é a abordagem do tema da
esperança e fé é por um viés gnóstico. O filme é uma adaptação do livro “The
Road” (ganhador do Prêmio Pulitzer) de Cornac McCarthy cuja obra parece ter
grande influência do gnosticismo como no livro Blood Meridian (sua
adaptação cinematográfica está em desenvolvimento segundo o IMDB – Internet Movie
Data Base), um western que, segundo Leo Gaugherty, “é uma tragédia gnóstica,
uma rara união da ideologia gnóstica com a tragédia helenística” ("Gravers
False and True: Blood Meridian as Gnostic Tragedy" Southern Quarterly 30,
No. 4, Summer 1992, pages 122-133).
Portadores do “fogo”
Em A Estrada pai e
filho (detalhe importante, nenhum personagem do filme tem nome) lutam para
encontrar lugares seguros e se manterem aquecidos. O pai protege ferozmente seu
filho e, em uma cena perturbadora, mostra-lhe como se matar se necessário -,
presumivelmente, se ele é capturado por canibais e não tem como escapar. Mas
ele também diz a seu filho que eles são "portadores do fogo", uma
frase que é repetida várias vezes no filme. Esse "fogo" é tanto o
fogo literal que cozinha os alimentos e os mantêm quentes, mas também a
esperança que eles têm pela humanidade. Mais do que isso, é um simbolismo
gnóstico.
Como o homem fala
sobre seu filho: "Se ele não é a palavra de Deus, Deus nunca falou."
O pai e filho devem carregar a partícula de Luz no coração, partícula que,
segundo a mitologia gnóstica, é a reminiscência da nossa verdadeira origem no
Pleroma. Seres que somos, exilados num cosmos em queda, devemos manter essa
partícula (gnose) que nos reconduzirá às nossas verdadeiras origens.
Constantemente no
filme o filho preocupa-se em como distinguir os homens bons dos maus. Assim
como em “Blood Meridian”, temos aqui o antagonismo Maniqueo e Zoroástrico: a
divisão entre “good guys e bad guys” não é aquela do maniqueísmo hollywoodiano,
mas a do conflito cósmico fundamental em torno da posse dessas partículas de
Luz. Evitar ser canibalizado pelos “Bad Guys” é evitar que o Demiurgo (artífice
daquele mundo pós-apocalíptico.) tome a posse das partículas que dariam uma
sobrevida a um mundo em queda.
Por isso, a maneira
como o tema da fé e da esperança é abordado pelos protagonistas é tipicamente
gnóstica. Ao contrário do filme “Livro de Eli” onde a fé é dada pelas palavras
da Bíblia memorizada pelo protagonista (o antagonista luta para ter a posse do
livro sagrado para, também, memorizar suas palavras), aqui a fé é abordada como
uma gnose, um processo de mergulho íntimo onde se busca no coração a partícula
de Luz que será o referencial para o discernimento entre o Bem e o Mau. Ao
longo do filme há diversas referências religiosas (Versículo do livro
bíblico de Jeremias – “Eis o vale do massacre” - pichado em uma ponte em
ruínas, os protagonistas se abrigam em uma igreja também em ruínas, postes
inclinados como fossem cruzes fincadas em terras arrasadas etc.). A religião é
colocada como mais um detalhe de um cenário em ruínas. Resta aos protagonistas
uma busca íntima. Não há mais fé em Deus, mas apenas em si mesmo. É o típico
caminho da Gnose.
Ao contrário do pai
que foi moldado por anos de desespero tornando-se impiedoso, feroz e
desconfiado de qualquer um que cruze o caminho, o filho, ao contrário é ainda
inocente e ingênuo, mas consciente dos males do mundo. A cada diálogo a visão
cínica de desesperançada do pai é contrastada pela esperança do filho em
encontrar o bem que ainda possa existir no interior de todas as pessoas.
Ninguém tem nome
Curioso no filme é o
fato de nenhum personagem ter nome. Isso tem um duplo sentido na narrativa. De
um lado, em um mundo pós-apocalíptico os nomes são inúteis, os homens tornam-se
animais como rebanho de Gado para os canibais. Por outro, nessa circunstância
as ações falam mais atos que nomes ou papéis sociais que possam resultar. O
nome não faz uma pessoa e não é necessário para você se conectar com eles como
algo "real." Nossas ações é o que diz e define quem somos, e não
nossos nomes. Mais um tema gnóstico e, talvez, o tema principal do filme: mais
importante do que nomes e papéis sociais estão as ações e o coração que vão
indicar se você mantém a partícula de Luz acesa em seu interior. Em uma cena,
um homem pergunta a Mortensen se é um médico, ao que ele responde: "eu não
sou nada."
Spoilers a partir daqui
Após chegar ao
litoral e o pai morrer, o menino vai encontrar uma família que o adotará. O
diálogo final entre eles é a síntese da mensagem gnóstica contida no filme: a
condição humana como a de seres exilados que mantêm uma reminiscência da sua
verdadeira origem. A esposa diz para o menino: “Estou tão feliz em vê-lo. Sabia
que temos seguido você? Te vimos com o seu pai. Temos muita sorte. Estávamos
muito preocupados com você. Agora não temos que nos preocupar com mais nada.”
O menino não apenas
encontrou a bondade no íntimo humano. Esse linha de diálogo é emblemática por
encerrar um profundo significado gnóstico: como anthropos que decaíram para
esse cosmos dominado por um Demiurgo que nos aprisiona, somos observados por
Sophia (a personagem que conversa com o menino é feminina) que acompanha nossos
progressos e quedas, à espera de que a lembrança do que foi perdido nos
desperte.
Simbolismos da Água e dos Pontos Cardeais
Em “A Estrada” temos
diversos simbolismos e iconografias, mas destacam-se dois simbolismos
fundamentais para a narrativa: a praia (ou “costa” como referida no filme) e o
ponto cardeal Sul.
O importante diálogo
final, assim como a morte do pai, ocorrem na praia. Em nossas pesquisas podemos
perceber que o elemento água é recorrente nos filmes gnósticos: não aparece
como mero ornamento ou contextualização geográfica. Participa como elemento ativo
de significação, fazendo parte de mudanças decisivas na ação dos protagonistas
ou na interpretação da estória.
“As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias” (CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos, Editora José Olympio, 2009, p.15).
Na praia o filho vê a
morte do pai (simbolicamente marcando a morte dos vínculos do anthropos, o
filho, com o cosmos físico que o aprisiona) e o encontro final com Sophia
(“agora não temos que nos preocupar com mais nada”, diz).
A estratégia de
sobrevivência dos protagonistas é ir para o litoral e, depois, rumar para o
Sul. Os pontos cardeais têm uma elaborada simbologia nas mais diversas
culturas. Muitas crenças sobre a origem da vida, a morada dos deuses e dos
mortos, à evolução cíclica etc. se articulam em torno dos eixos cruzados em
forma de cruz. Para o pensamento analógico a oposição cria um vínculo: o Sul é
oposto ao Norte, mas o Sul leva ao Norte. Esse princípio de descontinuidade
cíclica é a base dos processos iniciáticos de encadeamento da morte e do
renascimento. Para muitas tradições esotéricas cada direção está associada a um
ser angelical.
O Sul está associado
ao anjo Mikael, aquele que ajuda o peregrino a viajar com segurança. Assim como
os protagonistas de “A Estrada” que buscam na jornada através de terras
arrasadas a fé perdida e a chama acesa (a gnose) no íntimo da natureza humana.
Ficha Técnica:
- Título Original: The Road
- Diretor: John Hillcoat
- Roteiro: Joe Penhall baseado no livro de Cormac McCarthy
- Elenco: Viggo Mortensen, Kodi Smit-McPhee, Robert Duvall, Guy Pearce , Molly Parker, Michael K. Williams, Garret Dillahunt, Charlize Theron, Bob Jennings, Agnes Herrmann, Buddy Sosthand, Kirk Brown, Brenna Roth, Jack Erdie, David August Lindauer
- Produção: Dimension Films, 2929 Productions, Nick Wechsler Productions, Chockstone Pictures, Road Rebel
- Distribuição: Paris Filmes
- Ano: 2009
- País: EUA