
sexta-feira, maio 27, 2016

Wilson Roberto Vieira Ferreira
Na manhã do sábado, dia 21, um jovem se
jogou nu na jaula dos leões em um zoológico no Chile falando frases desconexas
de cunho religioso sobre ser filho de Jesus e a chegada do Apocalipse. No mesmo
dia, à noite, a apresentadora Ana Hickman sofre atentado de um fã armado com um
revólver em um hotel de luxo em Belo Horizonte. Entre frases também desconexas,
o fã agradecia a Deus por ter ajudado a encontrá-la naquele hotel, até ser
morto por um dos assessores. Quais as coincidências e sincronismos entre esses
dois eventos em países diferentes? São apenas fatos isolados protagonizados por “lobos solitários”? Cada sociedade
em sua época cria sua própria patologia. O sincronismo desses dois episódios
apontam para a patologia da nossa época da sociedade das imagens e do
espetáculo: relações fetichistas com pessoas, objetos e símbolos.
Como os leitores mais assíduos devem ter percebido,
o Cinegnose se interessa bastante por recorrências, padrões e coincidências que
possivelmente possam ocultar sincronismos.
Por isso, no sábado, dia 21 de maio, dois eventos
simultâneos em países diferentes chamaram a atenção deste blog. Sendo que o
segundo, chegou a disputar espaço na grande mídia com a divulgação do escândalo
da gravação de conversas telefônicas do senador Romero Jucá.
No Chile, um jovem chamado Franco Ferrada,
supostamente com intenções suicidas, tirou suas roupas e pulou para dentro da
jaula dos leões no Zoológico Metropolitano da cidade de Santiago. Falando
frases desconexas, todas com motivos religiosos, se agarrou a um leão e passou
a ser atacado pelos outros. Os leões foram sacrificados e o “suicida” levado ao
hospital em estado grave.
Enquanto isso, em Belo Horizonte, a apresentadora
da TV Record Ana Hickman sofria um atentado em um hotel de luxo onde estava
hospedada. Rodrigo Augusto de Pádua, 30 anos, rendeu o cunhado da apresentadora
e invadiu o quarto dela. Este reagiu e entrou em luta corporal com o homem
armado, desarmando-o e matando-o. A assessora de Hickman foi também atingida
com dois tiros. Em seus perfis no Instagram e Facebook, Pádua demonstrava
obsessão pela apresentadora fazendo dedicatórias de amor e mandando mensagens
para ela. Inclusive uma foto do seu pênis.
De um lado um suposto suicida chileno vivendo um
delírio místico e messiânico (nas roupas foi encontrada uma carta dizendo ser
um profeta, filho de Jesus Cristo e que o apocalipse havia chegado – a alusão
ao relato bíblico de Daniel na cova dos leões é imediato); e do outro um
stalker de celebridade com uma obsessão amorosa e que em sua cabeça achava
estar vivendo um relacionamento com a apresentadora.
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Desenhos encontrados com Ferrada: inspiração na narrativa bíblica de Daniel na Cova dos Leões? |
Semelhanças significativas
Além da coincidência dos episódios terem ocorrido
no mesmo dia 21, há outras semelhanças significativas entre os bizarros eventos
chileno e brasileiro:
(a) ambos os protagonistas estavam sob fascinação
por um objeto de fetiche (do português feitiço,
apropriado pela palavra francesa fétichisme,
adoração ou culto de fetiches), seja religioso ou por uma celebridade;
(b) ambos foram levados pelo impulso de demonstrar
publicamente seus sentimentos e obsessões;
(c) Os seus objetos de fascínio ou desejo eram
externos a eles – Jesus e Ana Hickman;
(d) os protagonistas expressavam sintomas de desajustamento
familiar e sociopatia: Franco Ferrada teve a mãe morta por câncer, dois irmão
presos e foi interno do Servicio Nacional de Menores de Chile; Augusto de Pádua
era desempregado e aos 30 anos era apegado à mãe e não saia de casa, a não ser
para ir à academia de musculação – sua mãe afirmava que ele “lutava 24 horas
contra um inimigo terrível”.
O que chama a atenção no sincronismo desses
episódios é que não são meros eventos aleatórios ou fait divers – “fatos
diversos” ou curiosidades bizarras, como se fala em jornalismo. Mas são
verdadeiros sintomas de um tipo de patologia social cotidiana que se vulgarizou
a ponto de se tornar um evento aleatório promovido por espécies de “lobos solitários”
– atiradores, serial killers etc.
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Freud e a neurose: cada sociedade cria sua própria patologia |
Da neurose à psicose e fetichismo
Cada sociedade cria suas próprias patologias
psíquicas: a era vitoriana de Freud produziu a neurose decorrente da repressão
sexual de uma rígida ordem patriarcal; e a atual cultura sociedade das imagens
e do espetáculo produz esquizofrenia e transtornos psicóticos na desordem da
chamada família nuclear – ausência paterna física ou simbólica e ego vulnerável
às pressões do meio social.
Tanto o chileno quanto o brasileiro viviam a
compulsão em demonstrar publicamente sentimentos e obsessões, seja tirando a
roupa diante de todos em um zoológico para viver uma fantasia religiosa, seja
tirando as vestes psíquicas em perfis nas redes sociais para viver uma fantasia de ter um íntimo e
conturbado relacionamento com uma celebridade.
Pesquisadores como Richard Sennett chamam essa
marca contemporânea de “ascetismo social” – ao contrário do monge que
demonstrava sua fé a Deus na privacidade da sua cela sem pensar na sua
aparência diante dos outros, hoje temos a necessidade de demonstrar a Deus ou
aos outros os nossos sentimentos para demonstrar que se tem um eu que vale a
pena – leia SENNETT, Richard. O Declínio
do Homem Público.
Narcisismo em tempos difíceis
Esse “narcisismo de tempos difíceis” seria o drive
psíquico das relações de fascínio fetichista por religiões e celebridades – no
final tanto um como o outro possuem o mesmo mecanismo da regressão fetichista:
adoração de objetos, pessoas ou símbolos tomados como encarnações de poderes
mágicos, sobrenaturais ou ligados a entidades espirituais.
Mecanismo de inversão onde o homem, criador do
objeto, é dominado por uma espécie de feitiço ou fascínio. Franco Ferrada quer
reencenar diante de todos algum drama bíblico e se acha filho de Jesus – a
celebridade religiosa com a qual quer ter uma relação pessoal para ter de volta
aquilo que ele transferiu para o objeto fetiche – seus sentimentos, desejos e
aspirações.
Seu messianismo e a fantasia de ter uma relação
íntima com Jesus esconde a sua impotência social, o fato de ser mais um zé
ninguém e um desajustado – outro anônimo dentro de uma crescente estatística:
17,2% de chilenos que sofrem de depressão segundo a Organização Mundial de
Saúde.
Enquanto isso, Rodrigo de Pádua vivia a relação de
amor e ódio com uma celebridade-fetiche tão bem descritas por sociólogos clássicos
como Theodor Adorno ou David Riesman – a celebridade confundida com afeição, e
a fama com o amor.
Somos todos mal amados
Se Adorno dizia que no fundo, na sociedade atual,
todos nós nos sentimos mal amados ou Riesman afirmava que a multidão produzia a
solidão, a celebridade passa a ser o objeto fetiche mais estimado: a
celebridade será aquela pessoa supostamente especial porque amada por todos
cuja fama atrai carinho e afeição – sobre isso leia ADORNO, Theodor. “Educação
Após Auschwitz In: Adorno. São Paulo:
Ática e RIESMAN, David. A Multidão
Solitária, Perspectiva, 1995.
Por isso, a relação com esse particular
objeto-fetiche será marcada pela ambiguidade amor-frustração-ódio. O amor se
transformará logo em frustração (afinal, o fã sabe que é apenas mais um anônimo
em um multidão de fãs) e, depois, ódio por no fundo saber que jamais terá de
volta o amor e afeto transferido para o objeto-fetiche.
Assim como o “suicida” chileno queria ter uma
relação pessoal com Jesus, Augusto de Pádua vivia uma fantasia de possessão
erótica do corpo da celebridade Ana Hickmann – o desejo desesperado de possuir
a carne da celebridade para “devorar” a fama que a faça fugir da sua vida
frustrada.
Franco Ferrada queria ser comido pelos leões,
enquanto Augusto de Pádua queria “comer” (ou possuir) a “celebridade” – amor e
afeto. Relações autofágica e antropofágica. Relações análogas e em sentidos
inversos. Duas formas diferentes mas com o mesmo propósito: de alguma forma ter
para si o objeto-fetiche, seja Jesus ou Ana Hickmann.
O Verbo se fez carne
Portanto, há uma linha de continuidade entre a
civilização das imagens atuais e o mistério da Encarnação de Cristo do
catolicismo: “E o Verbo se fez carne”, versículo do Evangelho Segundo João, é a
própria essência religiosa na relação fetichista atual com pessoas, marcas e objetos
na sociedade de consumo.
O filme canadense Antiviral (2012) é talvez o que melhor trata essa relação extrema
dos fãs com as celebridades - em um futuro próximo as relações serão tão
obsessivas que todos gostarão de entrar em uma “comunhão biológica” comprando
vírus e enfermidades exclusivas dos famosos e comendo carne processada com
células dos seus ídolos – sobre o filme clique aqui.
Essa talvez seja a principal patologia decorrente da
combinação atual da sociedade de consumo com a cultura da imagem e do
espetáculo: tornamo-nos vazios. Os objetos-fetiches parecem roubar de nós as
nossas melhores qualidades e achamos que só poderemos tê-las de volta comprando
e idolatrando. Ou através do assassinato do próprio ídolo (John Lennon que o
diga) ou do suicídio diante dele.