O que é um “mexedor para café”? Uma
colherinha de plástico? Uma pazinha? Estamos diante de um fenômeno linguístico
previsto por filósofos como Herbert Marcuse nos anos 1960 ou por Rupert de
Ventós nos anos 1980: o fechamento do universo da locução. Um fenômeno quase
invisível, cotidiano, assim como foi o gerundismo dos SACs de empresas. Um
fenômeno repressivo porque as palavras começam a ser operacionalizados como se
antecipassem nossas intenções: as palavras são substituídas pelas suas funções,
tornando os conceitos como tijolos que constróem um universo
unidimensional. Negando a possibilidade de elaboração de novos significados através da semântica e etimologia.
Certa manhã esse humilde blogueiro chegou à sala
dos professores para mais um dia de aula na Universidade Anhembi Morumbi.
Claro, o que seria da vida acadêmica sem uma máquina de fazer café!
Equilibrando diários de classes e envelopes de provas aperto o botão da máquina
para olhar o repetitivo movimento dos mecanismos que deslocam o copo de
plástico exatamente para debaixo de um pequeno tubo de onde sairá o precioso
líquido que nos desperta todas as manhãs.
Mas de repente uma coisa quebrou o ritual diário.
Meu olhar foi desviado para duas caixinhas amarelas e café que repousavam ao
lado da máquina. Leio: “Mexedor para café”, estava escrito em letras garrafais
na embalagem sobre a figura de uma xícara com o precioso líquido.
Enquanto a máquina fazia aqueles repetitivos sons
mecânicos antes de derramar o café no copinho plástico, olhava para as pequenas
caixas com uma sensação estranha. Detive-me por alguns segundos, tentando
compreender aquela sensação: por que essas prosaicas caixinhas estão me
incomodando?
“Mexedor para café”? A inscrição na embalagem não
indica o que há na caixa mas para o que serve. Não descreve ou nomeia o objeto,
mas parece antecipar – ou prescrever – o uso do mesmo. Não mais uma
“colherzinha de plástico” ou “pazinha de plástico”, mas agora é um “mexedor
para café”.
Aqueles segundos, parado, pateticamente
equilibrando envelopes e pastas e olhando por longos segundos aqueles inocentes
caixinhas me fizeram lembrar uma situação análoga a descrita pelo escritor e
filósofo catalão Rubert de Ventós. Ele estava em um voo de Nova York para o
México quando recebeu em sua poltrona a bandeja com o café da manhã. Havia uma
pequena embalagem onde lia-se “para o seu café” ao invés de simplesmente
“leite”.
A vertigem
Ventós descreveu aquela sensação como “vertigem de
um entorno que parece sempre antecipar os nossos propósitos”. As indicações do
nosso entorno não mais se dirigem para a nossa compreensão, se não para a nossa reação. Não se organizam em torno da nossa posição, mas da nossa intenção
– leia VENTÓS, Xavier Rupert de. De La
Modernidad. Barcelona, Ediciones 62, 1982.
Cada vez mais os signos não ajudam a compreensão do
mundo (sua história, o passado, a natureza das coisas), mas parecem carregados
de funcionalidade e subjetivismo: os nomes prescrevem funções ou preveem nossas
intenções.
Outro filósofo, Herbert Marcuse, chamava esse
fenômeno linguístico de “fechamento do universo da locução” onde a locução é
privada do processo de cognição e avaliação cognitiva pela funcionalização ou
operacionalização da linguagem – a identificação das coisas com as suas
funções.
A palavra torna-se o sinônimo das suas operações
correspondentes. O nome das coisas passam a ser o indicativo da sua forma de
funcionar. Não percebemos mais as coisas pelo o que elas são, mas pela sua
função ou utilidade – leia MARCUSE, Herbert. O Homem Unidimensional – Estudos da Ideologia da Sociedade Industrial
Avançada. Edipro, 2015.
Não estou mais diante de uma “colher” ou “pazinha”,
mas agora olho para um “mexedor”. A
natureza semântica cede lugar ao contexto pragmático. Toda a carga histórica ou
etimológica das palavras parece apagada pela situação, funcionalidade.
As portas etimológicas que permitiriam passagens para
o passado são fechadas, tornando a realidade unidimensional - “colher” tem
origem etimológica no francês cullière
cuja origem mais remota está no latim cochlearium
relativo a concha, um dos primeiros utensílios para comer algo líquido.
Fechamento linguístico
Marcuse argumenta que esse fechamento linguístico é
o sintoma da criação de uma realidade unidimensional onde o vocabulário e a
sintaxe são afetados. Tudo é aerodinamizado para ser funcional e operacional –
o por que é substituído pelo como. Não devemos perguntar ou
questionar, mas apenas saber como objetos funcionam e as palavras devem não
mais nomear mas agora apenas prescrever suas funcionalidades.
Aquela caixa ao lado da máquina de café apenas me
informa para quê serve e não o que são os objetos no seu interior.
Enquanto Marcuse preocupa-se com essa
operacionalização da locução onde o semântico é substituído pelo pragmático,
Ventós centraliza no que ele chama de “espiritualismo” que impregna as nossas
práticas cotidianas. Os objetos parecem antecipar para nós o seu uso, antecipar
nossas intenções. É o reflexo da linguagem publicitária no universo da
comunicação cotidiana.
Bikes e “squeezes”
Como vimos em postagem anterior sobre as bikes
metalinguísticas do Itaú, se vamos pegar a bicicleta para ir ao trabalho vemos
nela o adesivo “#Issomudaomundo” – a bike antecipa a nossa intencionalidade. Não
vou apenas pedalar para o trabalho, mas “mudar o mundo”.
Assim como coloco uma “garrafinha de água” ou uma
“squeeze” e não mais “cantil” ou “caramanhola” como falam os ciclistas old school. A intenção “colocar água” ou
o ato prescrito de espremer ou apertar (“to squeeze”) antecede a semântica do
objeto e suas origens etimológicas.
Estamos diante de uma construção repressiva de
sentido: a predicação analítica – o
fato de um substantivo ser quase sempre ligado aos adjetivos e atributos
explicativos. Impede o usuário da linguagem de pensar sentidos diferentes para
o substantivo.
Uma bike é para “mudar o mundo”; uma pazinha é um
“mexedor de café”; um cereal é “para começar bem a manhã”. Ou ainda uma série
de produtos cujos nomes fantasias substituíram o substantivo, tornaram-se
sinônimos do produto, tais como: bombril (palhinha de aço); gilete (lâmina de
barbear); Omo (sabão em pó); Leite Moça (leite condensado) Xerox (fotocópias),
Maizena (amido de milho) etc.
O fechamento do universo da locução é um reflexo da
indústria de propaganda que procura “criar imagens” que possam aderir às
mentes. Se na publicidade as imagens substituem os produtos (seus nomes fantasia
e slogans), na locução cotidiana vemos o reflexo do contínuo midiático – a
“operacionalização” (Marcuse) e a “espiritualização” dos conceitos.
Cultura da interface
Analisando pelo ponto de vista da operacionalização
das palavras (isso é um “mexedor” ou isso é “para o seu café”), isso também
poderia ser um sintoma da atual cultura da interface onde ícones, menus e pop-ups
são blocos icônicos que representam funções ou tarefas.
Como se as palavras e a locução criasse uma segunda
camada sobre os objetos – a realidade ainda não processada ou interpretada.
Certamente mais um aspecto repressivo da predicação analítica.
Imagine uma cena onde visse uma porta de onde
saltasse um pop-up informando “isso é para abrir - abridor”; ou visse uma
caneta que informasse “isso é para escrever – escrevinhador”; ou uma torneira
que informasse “para abrir – lavador de mãos”.
Pois a prosaica caixa de “mexedores de café” ao
lado da máquina de cafés pode ser um avatar para o futuro brave new world. Se George Orwell propôs a novilíngua como a base
linguística de um futurista Estado totalitário, as atuais estratégias de
publicidade e propaganda também dão a
sua contribuição com o fechamento da locução cotidiana pela predicação
analítica.
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