segunda-feira, maio 23, 2016

Curta da Semana: trilogia "Hyper-reality" - Google substituirá o real?


Hoje todos nós possuímos câmeras nos celulares e podemos produzir imagens e distribuí-las na Web a todo momento. Inspirado nisso, o arquiteto, designer e diretor Keiich Matsuda fez uma trilogia de curtas ("Hyper-reality", "Augmented (Hyper) Reality" e "Augmented City 3D", 2014-15) onde imagina uma cidade de Medelin, Colombia, customizada pelos usuários da Web: um protagonista imerso em um mix de realidade aumentada e Google Glass num inferno de ícones, pop-ups e animações que pulam de cada objeto, pessoa ou gestos em ruas, supermercado ou no simples ato de prepara um chá. É a hiper-realidade que chegará a tal ponto onde o mapa ficará do tamanho do próprio território – a vida inteira imersa em um Google Maps ou Google Earth com infinitos aplicativos “powered” por uma empresa qualquer que acompanhará tudo como uma onipresente marca registrada.


Era uma vez a Arte onde o homem se esforçava em representar a realidade por meio das imagens (arte figurativa), criava imagens sintéticas (arte abstrata) ou expressava sentimentos (arte expressionista). Mas sempre o que chamávamos de “real” estava lá, como matéria-prima ou ponto de partida para a criação de imagens.

Hoje vivemos na pós-modernidade onde as imagens tecnológicas ultrapassaram a realidade, não representam mais nada a não ser a própria supremacia tecnológica. As imagens se tornaram simulacros da realidade – cópias da cópia até o original se perder e nem mais sentirmos falta dele.

Mas hoje entramos no paroxismo do simulacro: a hiper-realidade, onde o simulacro não se contenta mais em fazer sumir o original – o chamado “crime perfeito” para o francês Jean Baudrillard. O simulacro que tomar conta da realidade, tornar-se o próprio “real” até a própria noção de “realidade” ficar tão absurda que esqueceremos de todas as velhas implicações desse conceito: finitude, ética, tempo etc.


Na série de curtas Hyper-reality, Augmented (Hyper) Reality e Augmented City 3D (2014-2015) de Keiich Matsuda mostra imagina a cidade de Medelin, Colombia, transformada pela hiper-realidade. Observamos tudo em câmera de ponto de vista na caminhada da protagonista pelas ruas, supermercados e . Num mix de realidade aumentada com Google Glass, a protagonista parece estar on line todo o tempo em uma espécie de Internet das Coisas: cada objeto possui algum código para quando for varrido pela web cam da protagonista saltarem dele, em realidade aumentada, pop-ups, menus, animações etc.

O simples preparar um chá é acompanhado de uma densa camada de dados, informações e menus que saltam diante dos olhos a cada gesto. Nos curtas, as únicas referências de que existe uma realidade lá fora, por trás das camadas da Web são os sons dos objetos batendo, pessoas falando e carros nas ruas.

Ruas, prédios, pessoas, são customizados pela protagonista, criando uma Medelin hiper-real.

“Hoje, qualquer um possui uma câmera em seu celular, e pode produzir e distribuir seu próprio conteúdo”, explica Matsuda. “Estava pensando sobre como isso poderia ser aplicado na arquitetura, na criação de espaço. O que aconteceria se uma pessoa qualquer pudesse não apenas customizar a sua própria casa, mas sua própria rua?”.

No curta, tudo se transformaria em um inferno se ícones, animações, popups e menus. E o curioso é que percebemos que a própria identidade do protagonista (no sentido psíquico) confunde-se com o próprio ID do usuário na Web.

Quando o protagonista anda nas ruas, ele vê a cidade como estivesse em um enorme Google Maps – círculos marcam cada transeunte, setas indicam a direção nas ruas e calçadas etc.


Hipertelia: o mapa do tamanho do território


Isso lembra o texto de Jorge Luís Borges “Sobre o Rigor da Ciência” sobre um império onde a Cartografia alcançou um tal grau de perfeição que um simples mapa de uma província ocupava a cidade inteira. Até criar um mapa que coincidia com o tamanho de todo Império. O mapa acabou coincidindo com o própria extensão do império e se tornou inútil, para depois ser abandonado, esquecido em um deserto. Para as disciplinas geográficas serem esquecidas pelas futuras gerações.

A série de curtas de Matsuda mostra esse vanish point de toda a representação e a utilidade da tecnologia: a hiper-realidade converte-se em hipertelia – um excesso de finalidade que transforma todos os gadgets em aparelhos e dispositivos inúteis que ameaçam transformar o cotidiano em um inferno - do grego hypér “além”, “excesso” e do grego telos “fim”, “realização”.

Na biologia a hipertelia representa um crescimento desmedido, normalmente não-harmônico, de parte de um ser vivo ou de um grupo, até o ponto de tornar-se prejudicial ou contrária aos interesses da espécie conservando mais nenhum valor de adaptação.

Nos sistemas tecnológicos a hipertelia surge quando a especialização das funções chega a tal ponto que, ao ultrapassa-lo, perde a eficácia e torna-se absolutamente disfuncional. Os sistemas tecnológicos tenderiam a um estado de obesidade, de excesso generalizado, até inviabilizar a finalidade original que os fez surgir.


É o que acompanhamos na série de curtas, principalmente em Hyper-reality onde em breves segundos vemos, quando o sistema trava por uma suposta ameaça de invasão, é necessário ser reiniciado e podemos ver o supermercado real (as gôndolas e pessoas) sem a customização das camadas de realidade aumentada.

E principalmente ao final onde vemos a transcendência (ou fuga) espiritual impossível: a própria religião cristã tem a sua versão hiper-realizada: o sinal da cruz transforma-se em gesto para fazer surgir menus e pop-ups com as diversas opções como “confessar pecados”, “fazer um tour” teológico ou “espelhar a palavra de Deus”... e claro, tudo powered by Bully! Entertainment.




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