Muitas religiões falam de um ponto entre
a vida e a morte no qual vagam, entre os vivos, fantasmas daqueles que por
algum motivo não conseguem deixar esse mundo. Mas “A Ghost Story” (2017) nos
apresenta um fantasma diferente: um jovem morto prematuramente coberto por um
lençol como um fantasma de Halloween. Um observador silencioso preso a uma casa
que vê moradores chegando e mudando-se. Um filme sobre a percepção do tempo e a
permanência. O que o prende naquela casa, silenciosamente observando os vivos?
Talvez, os mesmos motivos que fazem os vivos serem prisioneiros dessa vida, sem jamais alcançarem a gnose. E
como as questões nietzschianas como a morte de Deus e o eterno retorno permeiam
a angústia existente tanto nos vivos como nos mortos. Outro filme sugerido pelo nosso intrépido leitor Felipe Resende.
Há um ponto comum em muitas religiões
sobre a vida pós-morte: a existência de algum purgatório ou estado
intermediário entre a vida e a morte habitada por indivíduos que se recusam a
deixar a vida que eles não podem mais ter.
Seja no candomblé (indivíduos que não
cumpriram seu destino podem continuar vagando entre os vivos), no espiritismo
(espíritos apegados à vida material e afetos podem continuar na crosta
terrestre, às vezes sequer acreditando que morreram) e no judaísmo (almas dos
mortos ficam entre os vivos até um ano e precisam ser ajudadas pelos familiares
com preces auxiliando a alma a se elevar), há alguma espécie de, por assim
dizer, uma interzone com indivíduos
que simplesmente não conseguem de desprender dessa existência.
Pode ser o apego aos prazeres ou posses
materiais. Mas há um quê de ausência de resposta a uma simples questão que
ainda nos atormenta quanto mais tomamos consciência da finitude: quando dermos
o último suspiro e nossos olhos fecharem, o mundo e o tempo continuarão seu
fluxo indiferentes à nossa ausência? Seremos esquecidos? Ou essas perguntas são
supérfluas já que a existência não tem sentido e, junto com o planeta Terra, um
dia seremos tragados pelo Sol e todo o Universo retornará à singularidade
inicial?
Esse é o tema principal do filme indie A Ghost Story (2017). Um filme com um
truque de roteiro bem recorrente no cenário independente norte-americano atual:
narrativas que carregam iconografias clássicas de gênero, mas que nada mais são
do que pretextos para discussões existenciais e espirituais.
Como diz o título, é a estória de um
fantasma: tem uma casa com estranhos barulhos no meio da noite e até efeitos
tele-cinéticos como copos se erguendo no ar e pratos voando do armário. Mas os
seus longos planos em cenas absolutamente corriqueiras e conjugais, as
conversas sussurrantes entre um casal e o ritmo lento e meditativo (sem abrir
mão de imagens surpreendentes e impactantes) mostram que A Ghost Story não é um thriller de horror e sustos como o filme do
gênero Atividade Paranormal.
Ao contrário, todos esses elementos
iconográficos são oportunidades para uma sensível reflexão sobre o tema da
finitude e as marcas que deixamos nesse mundo principalmente através da arte e
da música. E a principal dúvida: vale a pena deixarmos um legado em um universo
que caminha inexoravelmente para um fim?
O Filme
A Ghost
Story é um conto sobre um
homem que morre jovem e, transformado em um fantasma, permanece na casa em que
vivia com sua esposa.
Um jovem sem nome, interpretado por Casey
Affleck, que morre em um acidente de carro a poucos metros de sua casa – um
talentoso compositor freelancer. Sua
esposa, também sem nome, interpretada por Rooney Mara, despede-se do corpo do
marido coberto por uma grande mortalha no necrotério local.
Ela vai embora para vermos um longo e
perturbador plano de câmera fixa naquele corpo coberto sobre a mesa de um
necrotério. Após quase um minuto, o corpo levanta-se com o lençol e sai
andando. O fantasma nada mais é do que a clássica representação infantil de um
fantasma de Halloween: lençol com dois buracos toscos na altura dos olhos.
Essa é o grande insight narrativo de A Ghost
Story: o diretor David Lowery nega ao ator protagonista a maioria dos
recursos dramáticos para expressar emoções. O fantasma exprime surpresa,
tristeza ou raiva simplesmente ao manear a cabeça ou os ombros de uma maneira
particular ou virando a cabeça lenta ou rapidamente para ver algo.
O fantasma volta para casa e passa todo o
tempo em um canto em silêncio enquanto observa sua esposa chorando, comendo,
relembrando e tentando retomar sua vida. E ocasionalmente faz tremer algum
objeto ou peça do mobiliário.
Junto com o fantasma acompanhamos o fluxo
do tempo: uma sucessão de acontecimentos banais até sua esposa mudar-se daquela
casa. Mas, a entidade permanece no local como se alguma coisa a prendesse ali.
Pode ser um processo de negação do seu processo íntimo de luto. Ou simplesmente
quer criar raízes ali, como tentasse se apegar em alguma coisa de concreta. Como
uma espécie de boia salva-vidas numa existência pós-morte na qual descobre a
inexistência de sentido ou propósito.
Ocasionalmente descobre que na casa
vizinha há um outro fantasma na janela. Assim como ele, preso naquela casa à
espera de algo ou alguém há tanto tempo que ele próprio já esqueceu do quê.
E lá o fantasma vai ficando,
testemunhando a chegada de novos inquilinos como, por exemplo, uma mãe solteira
e seus dois filhos. Irritado com a chegada dos “invasores” o fantasma derruba
pratos e copos. Para depois vê-los irem embora e, depois, chegada de jovens que
fazem muitas festas com artistas boêmios.
Tempo e permanência
O tempo continua avançando até todo o
quarteirão ser demolido e substituído por uma grande torre empresarial. E o
fantasma permanece, vagando pelos corredores até chegar na cobertura daquele
arranha-céu e observar uma cidade transfigurada e parecida com a Los Angeles
sci-fi de Blade Runner. Ele chegou décadas
no futuro, enquanto a percepção do fluxo temporal parece ser bem diferente para
ele. Porém, não consegue encontrar respostas, sentido ou propósito do porquê
ser uma testemunha solitária da existência dos vivos.
A Ghost
Story é sobre a percepção
do tempo e permanência. Um filme para ser observado atentamente, principalmente
as sequências com longos planos fixos nos quais estão contidas muitas chaves
narrativas, como na sequência da queda de um livro de Nietzsche que se abre ao
bater no chão.
É um filme mais inclinado a fazer
perguntas do que respondê-las, e muito menos dar conselhos para a vida ou busca
de sentidos para a existência.
O ponto chave é o monólogo de um dos
artistas da festa dos jovens boêmios, sobre as tentativas frustradas da
humanidade em deixar traços ou legados que durem, especialmente através da
arte. E a descoberta de que todas as tentativas humanas de, através de notas
musicais e harmonias, transcender a carne são frustradas pela descoberta da
inexistência de Deus ou propósitos para a vida. Mas, ainda assim, fazemos de
tudo para sermos lembrados depois de partirmos.
Mas a referencia a Nietzsche
não é sem propósito. Em primeiro lugar temos o célebre tema da morte de Deus na
Modernidade como uma oportunidade de livrar-nos dos valores que nos são
impostos. Assim como o fantasma, preso nessa dimensão entre os vivos, em sua
silenciosa observação, também parece querer libertar-se buscando algum sentido
no fluxo do tempo que se sucede.
Eterno retorno – alerta de spoilers à frente
Até cair em outro tema
nietzschiano: o eterno retorno. Para o pensador alemão estamos presos a um
número limitado de eventos como guerras e epidemias que se repetiriam no futuro
assim como ocorreram no passado.
A
Ghost Story retoma esse
conceito, mas na perspectiva da existência de um fantasma prisioneiro no fluxo
do tempo dos vivos. Até descobrir no que se consiste essa prisão: um loop
temporal que lembra filmes como clássico O
Feitiço do Tempo (Groudnhog Day,
1993) ou mesmo as sequências finais de Interestelar
de Christopher Nolan. A diferença é que se em Nolan o protagonista teve que
atravessar o Universo para descobrir isso, em A Ghost Story o fantasma apenas permaneceu no mesmo lugar.
Vivos e mortos prisioneiros
num loop temporal é um tema recorrente no atual cinema independente, seja numa
perspectiva quântica como em Coherence
ou The Discovery ou espiritual como
em The Scopia Effect – veja os links
para esses filmes abaixo.
Em A Ghost Story vemos um fantasma que parece atormentado pela questão
sobre o que restará do seu legado (arte e música) depois que morrer. Para
descobrir que a vida dos vivos se consiste numa mera repetição, até o fantasma
ver a si mesmo transformado em mais um fantasma em uma nova time line alternativa.
Vivos e mortos prisioneiros
num mesmo eterno retorno. E a mortalha que encobre o fantasma parece estar
também nos vivos, impedindo a gnose: aquilo que não nos deixa tomar consciência dessa prisão, por
acreditarmos num fluxo de tempo para um futuro onde, de alguma maneira,
tomaríamos a vida em nossas mãos.
Mas tudo que precisamos é
deixar para trás esse lençol que nos cobre, como sugere ao final a narrativa de
A Ghost Story.
Ficha Técnica
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Título: A Ghost Story
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Diretor: David Lowery
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Roteiro: David Lowery
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Elenco: Casey Affleck, Rooney Mara, Kenneisha Thompson, Liz Franke
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Produção: Sailor Bear, Zero Trans Fat Productions
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Distribuição: A24
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Ano: 2017
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País: EUA
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