terça-feira, setembro 12, 2017
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em sua época,
filmes distópicos como “Farenheit 451” (1966) e “Planeta dos Macacos” (1968)
foram denúncias de como a sociedade estaria próxima de futuros sistemas
totalitários. Hoje, esse subgênero sci-fi entregou-se à crítica moralista, ao
maniqueísmo e a pura propaganda subliminar da agenda científica dominante. A produção
Netflix “Onde Está Segunda?” (What Happened to Monday, 2017) é o exemplo mais
flagrante: em um futuro próximo no qual a explosão populacional levou ao
esgotamento dos recursos do planeta e os alimentos transgênicos salvaram a
humanidade da fome, a Natureza veio cobrar seu preço – o efeito colateral dos
alimentos geneticamente modificados foi o explosivo nascimento de gêmeos,
agravando o problema populacional. É criada a “Lei de Alocação Infantil”: cada
casal pode ter apenas um filho. Os irmãos excedentes são confinados em ambiente
criogênico. E os cidadãos são submetidos a vigilância implacável de uma
agência. O filme deixa a
tese do controle populacional fora de qualquer crítica. A Ciência chega ao
Poder numa política de terra arrasada, sem qualquer discussão ou
questionamento. Congelar crianças (pobres) excedentes? OK! O problema é apenas
a cientista vilã que gerencia o processo: corrupta, má e ambiciosa. Filme sugerido pelo nosso leitor Dudu Guerreiro.
Como o leitor
do Cinegnose deve ter observado,
dentro do gênero ficção científica o blog faz uma distinção entre filme
distópicos e hipo-utópicos. No primeiro, temos visões do futuro sobre estados,
sistemas totalitários ou tribalizados normalmente resultantes de cenários
pós-apocalípticos – 1984, O Livro de Eli etc. Enquanto no segundo,
o futuro guarda uma estranha similaridade com o presente, a não ser pelos
desdobramentos hiperbólicos das mazela sócio-econômicas atuais – a série Black Mirror, série brasileira 3%, Distrito
9, o original Robocop etc.
Esse subgênero,
também chamado pelos estudiosos como “ficção científica do Sul”, são filmes
extremamente críticos, porque chamam atenção dos problemas atuais, carregando
nos tons e projetando no futuro. Ao contrário, as distopias tendem atualmente
ao clichê e narrativas onde a ação se sobrepõe ao roteiro. E, o que é pior,
tendem a um papel ideológico ao suspender qualquer visão crítica sobre o
presente. Como se o filme fosse uma advertência moralista do que ocorrerá se a
humanidade não tiver “consciência”.
A produção
original Netflix Onde Está Segunda?
(2017) é um exemplo bem didáticode como
a ficção científica atual está dividida entre esses dois subgêneros: o filme
até inicia com uma atmosfera que lembra Black
Mirror (até onde a tecnologia atual poderá nos levar) e a estética tech noir de Blade Runner (chuva, o high tech misturado com ruínas).
Porém, o bom
conceito inicial se transforma num simples veículo para a atriz Noomi Rapace
mostrar suas habilidades físicas como uma estrela de ação (como exibiu em Prometeus) e o filme, de sci-fi, acaba em mais um filme de ação e
perseguição – que de resto é o que melhor a indústria do entretenimento dos EUA
faz.
Onde Está Segunda? Tem tudo o que se espera de uma distopia: a
Terra pós-apocalipse (uma catástrofe ambiental provocada pelo efeito estufa e
explosão populacional deixou o planeta desértico e sem alimentos) e um Estado
totalitário na qual a vigilância eletrônica biométrica controla a vida de cada
cidadão. E como a Ciência, através de alimentos transgênicos, salvou o dia. Mas
resultou numa legislação ditatorial que proíbe que os casais tenham mais de um
filho.
Mas embora a
produção Netflix se envereda em questões ética e morais do progresso da Ciência
(até onde ativistas e cientistas podem ir na defesa da agenda ambiental), o
filme reduz tuto ao tema ao clichê da irracionalidade humana – quem é
“irracional”, cara pálida! A “humanidade” ou uma elite predatória?
O que
transforma a mensagem de Onde Está
Segunda? em alerta moralizador para o futuro, e não o questionamento do
presente. Como faz Distrito 9 ou a
série brasileira Netflix 3%.
O Filme
Tudo se passa
em um futuro próximo, em 2073, no qual o mundo está em crise após uma
catástrofe climática que deixou o planeta desértico e sem alimentos. O
alimentos geneticamente modificados acabaram se tornando a solução para a
sobrevivência humana. Porém, a Natureza cobrou um preço: um aumento drástico de
nascimentos múltiplos. Gêmeos idênticos que acabou só piorando o problema.
Um cientista e
ativista ambiental, Nicolette Cayman (Glenn Close), se interpõe politicamente a
consegue que o Estado (a Federação Europeia) encampe sua iniciativa e deixe o
sistema político nas mãos da Ciência: a “Lei de Alocação Infantil”. Um
eufemismo para obrigar as famílias a terem apenas filhos únicos. Filhos
“indesejáveis” são “alocados”, quer dizer, colocados em crio-congelamento –
crianças mantidas em animação suspensa até que os problemas do mundo sejam
solucionados.
Esse é o
momento Black Mirror do filme,
explorando um ótimo conceito que tem muito a ver com o presente: vemos uma
massiva campanha publicitária com sugestivos slogans (“juntos venceremos” ou
“Com criogenia garantimos que o seu filho dormirá em paz”) que são eufemismos
para dourar a pílula de um sistema totalitário. Mas tudo de passagem, como um
cenário para a ação.
É nesse
ambiente que o avô Terrence Settman (William Dafoe) tem netos septetos e vê sua
filha, Karen Settman, morrer no parto. Ele sabe que está com sérios problemas
e, com a ajuda de um médico, ilegalmente esconde os sete bebês em sua casa. São
todas meninas, que recebem o nome de cada dia da semana.
Percebemos que
isso faz parte de um plano magistral: gêmeas idênticas, cada uma só poderá sair
de casa no dia da semana do seu nome. E todas devem compartilhar uma única
identidade: Karen Settman. Dentro de casa, cada uma pode expressar sua própria
personalidade – Noomi Rapace interpreta as sete personalidades bem diferentes:
uma tímida hacker, a outra sexy, uma hippie, uma irmã agressiva e adepta do
kickboxer e assim por diante.
Outro tema
interessante que o filme deixa para trás para ser sobreposto mais tarde pelas
cenas de ação: a clivagem psíquica entre público/privado e o tema da
identidade: Karen Settman encena publicamente um papel que é a soma de diversas
“eus” das sete irmãs. Assim como o nosso psiquismo para a psicanálise Junguiana
– a junção dos diferentes arquétipos.
Karen Settman
trabalha num importante banco da Federação Europeia. Secretamente, as sete
irmãs fazem um trabalho de equipe para que ela seja promovida a um importante
cargo gerencial. Até que esse dia chega, no dia de Segunda desempenhar o papel
de Karen. Segunda sai para o trabalho para não mais voltar.
Isso as leva as
irmãs terem que descobrir o que aconteceu com Segunda, obrigando-as excepcionalmente
a saírem de casa até serem perseguidas pela Agência de Alocação Infantil, uma
instituição que se tornou numa espécie de Gestapo: busca e captura irmãos
escondidos por famílias desobedientes.
Ação sem
premissa
Logo o
espectador perceberá que, para a Agência, as sete irmãs Settman que se tornaram
adultas são muito mais do que um caso embaraçoso no suposto descuido da
vigilância: há algum esquema de corrupção envolvendo a ativista Nicollete
Cayman, a Agência e o maior banco da Federação Europeia no qual Karen Settman
foi promovida.
A partir desse
ponto, o filme parece esquecer todas as suas premissas filosóficas e existenciais
para se transformar num thriller de perseguição – assim como o detetive Deckard
perseguindo o replicante Roy na noite chuvosa em Blade Runner. Mas sem o questionamento existencial de Roy. Em Onde Está Segunda? tudo vira pura ação,
tiros e murros.
Outro problema
de Onde Está Segunda? está no
evidente maniqueísmo próprio das distopias. Que rapidamente se transforma em
propaganda ideológica – no caso, tomar a questão da explosão populacional como
item da agenda ambiental, resvalando numa perigosa ambiguidade que parece até
justificar a Gestapo de congelamento de crianças: a ideia até poderia ser boa!
Não fosse a corrupta cientista Nicollete Cayman.
Bomba
populacional e o Clube de Roma
Sabemos que a
questão da chamada “bomba populacional” surge historicamente no Clube de Roma
em 1968, fundação formada por cientistas, diplomatas e empresários. O Clube
publicou à época o relatório “Os Limites do Crescimento” que deu origem a toda
uma agenda sobre o meio ambiente, na qual a questão do crescimento populacional
foi posta como um fator dramático.
O Clube de Roma
foi uma resposta ideológica a todos os movimentos contraculturais do Pós-Guerra
que contestavam o modelo de civilização em vigor e que conectava diretamente as
mazelas ambientais com o Capitalismo e a economia de mercado.
O Clube de Roma
foi a reviravolta: a questão política é deslocada da sociedade para a Natureza:
para os cientistas do Clube os recursos agora são finitos e escassos e, por
isso, a humanidade seria irracional se insistisse no crescimento econômico e
populacional.
Controle
populacional e medidas econômicas para conter o crescimento devem ser
necessárias. Mas na prática, acabam se voltando somente aos países mais pobres,
mantendo a desigualdade internacional e a hegemonia geopolítica do chamado
Primeiro Mundo.
Em Onde Está Segunda?, essa questão é
colocada muito de passagem: na verdade, as crianças capturadas para serem
congeladas são as mais pobres. Presas pelo agentes da Agências em bairros
sujos, miseráveis e em ruínas.
Holocausto
Nazista no futuro?
Como uma
produção mainstream norte-americana de uma plataforma como a Netflix, o filme
deixa a tese do controle populacional fora de qualquer crítica. A Ciência chega
ao Poder numa política de terra arrasada, sem qualquer discussão ou
questionamento. Congelar crianças excedentes? OK! O problema é que Nicollete
Cayman é ambiciosa, corrupta, má e desumana.
O filme termina
com essa perturbadora ambiguidade: se aplicássemos a lógica maniqueísta de Onde Está Segunda? ao holocausto nazista
chegaríamos a uma conclusão aterradora – a ideia da supremacia e pureza racial
seriam cientificamente inquestionáveis. O problema foi que Hitler se corrompeu
e se “excedeu”. Errou pelos meios que não podem ser justificados pelos fins.
Esse poderia
ser o bizarro final de toda crítica maniqueísta tão ao gosto de Hollywood e
perpetuada pela Netflix – a crítica moralista (de que os fins não justificam os meios) não
consegue ver o Mal na própria Ciência que se converte, ela própria, em
ideologia.
Controle
populacional para os mais pobres? Por que não? Desde que os meios para os fins respeitem
princípios “éticos” e “morais”.
Dessa forma a
pobreza e a desigualdade são transferidos da sociedade para a Natureza – como
problema ambiental e não mais sócio-político. Bem diferente dos filmes
hipo-utópicos que não perdem de vista os problemas sócio-políticos do presente.
Ficha Técnica
Título:Onde Está Segunda?
Diretor:Tommy Wirkola
Roteiro: Max Botkin, Kerry Williamson
Elenco:Noomi
Rapace, Glenn Close, Willem Dafoe, Marwan Kenzari, Christian Rubeck
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Domingo, 12 de Janeiro
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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