Um filme
esquecido por quase 50 anos e só recentemente lançado em DVD. E certamente o filme desconhecido mais influente na
história do cinema. Só para começar, inspirou Kubrick a criar o atormentado
personagem Alex do filme “Laranja Mecânica” de 1971. “Herostratus” (1967), o
primeiro e único longa metragem do diretor Don Levy, conta estória de Max, um
jovem poeta rebelde que num gesto para ele subversivo, vende seu próprio
suicídio para uma empresa de marketing como um espetáculo midiático para as
massas. Um retrato da revolta jovem na Grã-Bretanha do Pós-Guerra: jovens
presos entre os extremos de riqueza e pobreza, enquanto eram bombardeados por
efeitos psicológicos eroticamente carregados da publicidade e sociedade de
consumo. E como o marketing e a publicidade são capazes de diluir qualquer rebelião
e transformá-la em tendência de moda. Filme sugerido pelo nosso leitor Higor Camargo.
Herostratus (1967) é o filme desconhecido mais influente da história do
cinema. Em sua própria época foi um filme mal compreendido após sua exibição em
um restrito número de cinemas. Depois foi esquecido por mais de quarenta anos e
desapareceu escondido nos cofres das distribuidoras. Seu método de trabalhar
com as imagens pode ser visto nos anos seguintes em filmes de uma ampla gama de
diretores como Kubrick, Godard, Antonioni e Resnais.
Originalmente
encomendado em 1962 pelo Fundo de Cinema Experimental (BFI) da Grã Bretanha
para ser um curta-metragem, o diretor Don Levy foi mais ambicioso,
transformando Herostratus no seu primeiro
e único longa metragem. Conhecido nos anos 1960 pelos seus curtas e
documentários, após o fracasso de Herostratus,
Levy foi para os EUA e passou a dar aulas de cinema no Instituto de Artes da
Califórnia, até se matar em 1987 com 54 anos.
Cinco anos
depois, o ator protagonista Michael Gothard também se mataria em meio a uma
crise depressiva.
Após o impacto
dessas mortes, a British Film lançou uma nova versão de Herostratus
digitalmente remasterizada, para então o filme ser redescoberto por um público
mais amplo.
Tudo muito
irônico, pois o argumento principal do filme é sobre um jovem poeta que vende
seu próprio suicídio para uma empresa de Marketing como um espetáculo midiático
de massas.
Herostratus e Laranja Mecânica
Logo nas
primeiras sequências percebemos o quão Herostrataus
foi influente na concepção de Laranja
Mecânica (1971) de Kubrick. O protagonista Max é uma mistura de James Dean
com o personagem Alex do ator Malcom McDowell, todo vestido de branco,
destruindo seu apartamento com um machado na mão enquanto o aparelho de som
toca música clássica a todo volume.
Tal qual Alex
de Laranja Mecânica, Max é cheio de
ódio, rancor, com os mesmos olhos letais do protagonista de Kubrick, além de se
descrever como “a parte inferior da pilha de sucata” que é a sociedade. Vive
uma espécie de rebelião interior vazia em busca de alguma forma de expressão
pública – se em Laranja Mecânica foi
através da “ultraviolência” da gangue liderada por Alex, em Herostratus será por meio do marketing
de uma empresa especializada em criar tendências.
Don Levy fez um
filme extremamente pessoal, mas ao mesmo tempo um retrato da revolta jovem na
Grã-Bretanha do Pós-Guerra: jovens presos entre os extremos de riqueza e
pobreza, enquanto são bombardeados por efeitos psicológicos eroticamente
carregados da publicidade e sociedade de consumo.
Além de tudo
isso, assistido 50 anos depois, podemos perceber como Herostratus também nos
oferece uma didática lição de como é possível mercadologicamente criar
“espontaneamente” tendências ou modas.
Don Levy foi
lançado no momento em que toda a energia da revolta jovem contra a sociedade
conformista do Pós-Guerra era canalizada em produtos mercadológicos como a
Beatlemania, hippies, as drogas psicodélicas e os primeiros grandes festivais
de rock na Inglaterra e EUA.
O Filme
O título do
filme foi inspirado na lenda grega de Herostratus, o homem que supostamente
teria incendiado o Templo de Artemis em Éfeso (na atual Turquia), considerado
uma das Sete Maravilhas da Antiguidade, em busca da fama imortal para a
posteridade.
O filme abre
com imagens de ruas vazias e sujas de Londres com um jovem poeta chamado Max
(Michael Gothard) trajando branco correndo como fugisse de algo. Em uma
narrativa fragmentada que companha todo o filme, há uma complexo de imagens e
sons projetados pelo diretor para provocar reflexos emocionais subconscientes no
espectador.
Cacos de
imagens da decadência urbana do Pós-Guerra, com justaposições de strip-teases
burlescos que se sobrepõe a imagens de carcaças em um matadouro, além de
imagens dos discursos de Hitler – uma em particular no qual é destacado um
pequeno detalhe de expressão de autossatisfação do líder nazi, repetida
diversas vezes. E o leitmotiv de uma mulher pálida em vestido de couro preto
(interpretado pela própria esposa de Levy) que sempre aparece como uma espécie
de fantasma que assombra a mente de Max.
Vive em um
triste quartinho com paredes cobertas de jornais e outras coisas efêmeras
icônicas da cultura pop, além de uma pequena boneca pendurada como estivesse
enforcada.
Após destruir
tudo com um machado, ao som altíssimo de opera clássica após ser cobrado por
não pagar o aluguel, Max ruma para a Farson Advertising (impagável trocadilho
com “farce”, “farsa”) para tentar expressar publicamente o seu ódio e desespero
através da mídia: propõe transformar o seu suicídio, jogando-se do alto de um
prédio no Centro de Londres, em um espetáculo midiático como uma forma de
protesto contra a sociedade moderna.
O diálogo com
Farson (Peter Stephens) é agressivo: para Max, Farson nada mais é do que um
“especialista em lixologia humana”, o maior “cretino quando se trata de vender
algo”. Max acredita que seu gesto será subversivo – utilizar a própria
publicidade como veículo de divulgação de um ato de protesto.
Herostratus nos descreve como as intenções supostamente subversivas de Max
são diluídas pelo Marketing em um gesto reacionário e degenerado em neurótica
busca de autogratificação: uma tentativa desesperada de buscar atenção através
dos mecanismos de criação de celebridades.
O ponto alto da
ingenuidade de Max é quando se apaixona por Clio (Gabriela Licudi), a secretaria
de Farson com “um coração tão duro e cortante como um diamante”, usada como
isca para o jovem ser facilmente manipulável.
Quando a subversão vira mais um produto à venda
Há três
passagens no filme descrevendo didaticamente os mecanismos de manipulação
mercadológica, tão envolventes que são capazes de absorver os próprio protestos
contra si mesmos.
A atriz Hellen
Mirren (Trumbo, Hitchcock e Beleza Oculta), então com 18 anos, como
garota propaganda de uma luva de borracha laranja “para você fazer seus
serviços sujos”. Ela rebola sensualmente enquanto suspira: “quem realmente me
quiser terá que me comprar!”. Uma indústria mercadológica capaz de erotizar uma
simples luva de borracha laranja é poderosa o suficiente para transformar o
gesto subversivo de Max em um mero produto, como, por exemplo, um detergente de
cozinha.
Outro momento
emblemático de Herostratus é a transformação da carga negativa do suicídio em
positividade publicitária. Farson considera que as razões do suicídio são muito
“negativas e pessoais”. Portanto, é necessário uma campanha que dê ao gesto de
Max algo mais “positivo, altruísta e idealista que chame a atenção do público”.
Farson afirma: “temos que dar felizes e aceitáveis razões para o público. Dê
generalizações a eles. É disso que eles precisam”.
A Publicidade
transforma qualquer demanda, reivindicação ou protesto em afirmações as mais
vagas possíveis para serem seguidas por milhões. Por exemplo, acabar com a fome
no planeta é uma reivindicação vaga, genérica que ninguém pode ser contra.
Porém, o COMO fazer é deixado de lado.
Max desafia
Farson: “o quê o assusta é que estou perto da verdade. Eu poderia começar uma
revolução!” E Farson dispara, “manteremos elas vagas o bastante, para acabar
com velhos gafanhotos como você!”.
É dessa espécie
de “marketing ativista” que vivem celebridades como o roqueiro Bono Vox ou a
ex-modelo Gisele Bundchen – todos dizem que querem salvar o mundo por meio de
slogans genéricos o bastante para nunca discutirem o “COMO” fazer. Sempre
deixando tudo “indefinido”, como reforça o discurso do marqueteiro Farson.
Mas toda
“revolução” para dar certo precisa parecer espontânea para o público. Herostratus descreve uma estratégia que
hoje é denominada como “agenda setting” ou a criação de “trend setters” – agentes
de buzz marketing plantam informações de pautas sobre o suicídio como “ato de
protesto” em pleno Centro de Londres para a informação viralizar e a tendência
ser a mais genérica possível, diluindo o ato a princípio subversivo de Max.
Em Laranja Mecânica, Kubrick parece ter
captado a essência do filme Herostratus:
a ingenuidade dos protestos da contracultura jovem naquele momento que encarava
seus oponentes (Mídia e Estado) apenas como fossem tigres de papéis.
Se em Laranja Mecânica a revolta de Alex foi instrumentalizada
tanto pelo Governo como pela Oposição, em Herostratus
é a indústria do Marketing e da Publicidade que diluirão o ímpeto
revolucionário de uma geração inteira em mais uma tendência de moda.
Ficha Técnica
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Título: Herostratus
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Diretor: Don Levy
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Roteiro: Don Levy, Alan Daiches
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Elenco: Michael
Gothard, Gabriella Licudi, Peter Stephens, Helen Mirren
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Produção: BFI Experimental Film Fund, BBC
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Distribuição: BFI Video
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Ano: 1967
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País: Reino Unido
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