sábado, setembro 02, 2017

Em "Herostratus" a subversão vira mais um produto à venda


Um filme esquecido por quase 50 anos e só recentemente lançado em DVD. E certamente o filme desconhecido mais influente na história do cinema. Só para começar, inspirou Kubrick a criar o atormentado personagem Alex do filme “Laranja Mecânica” de 1971. “Herostratus” (1967), o primeiro e único longa metragem do diretor Don Levy, conta estória de Max, um jovem poeta rebelde que num gesto para ele subversivo, vende seu próprio suicídio para uma empresa de marketing como um espetáculo midiático para as massas. Um retrato da revolta jovem na Grã-Bretanha do Pós-Guerra: jovens presos entre os extremos de riqueza e pobreza, enquanto eram bombardeados por efeitos psicológicos eroticamente carregados da publicidade e sociedade de consumo. E como o marketing e a publicidade são capazes de diluir qualquer rebelião e transformá-la em tendência de moda. Filme sugerido pelo nosso leitor Higor Camargo.

Herostratus (1967) é o filme desconhecido mais influente da história do cinema. Em sua própria época foi um filme mal compreendido após sua exibição em um restrito número de cinemas. Depois foi esquecido por mais de quarenta anos e desapareceu escondido nos cofres das distribuidoras. Seu método de trabalhar com as imagens pode ser visto nos anos seguintes em filmes de uma ampla gama de diretores como Kubrick, Godard, Antonioni e Resnais.

Originalmente encomendado em 1962 pelo Fundo de Cinema Experimental (BFI) da Grã Bretanha para ser um curta-metragem, o diretor Don Levy foi mais ambicioso, transformando Herostratus no seu primeiro e único longa metragem. Conhecido nos anos 1960 pelos seus curtas e documentários, após o fracasso de Herostratus, Levy foi para os EUA e passou a dar aulas de cinema no Instituto de Artes da Califórnia, até se matar em 1987 com 54 anos.

Cinco anos depois, o ator protagonista Michael Gothard também se mataria em meio a uma crise depressiva.

Após o impacto dessas mortes, a British Film lançou uma nova versão de Herostratus digitalmente remasterizada, para então o filme ser redescoberto por um público mais amplo.

Tudo muito irônico, pois o argumento principal do filme é sobre um jovem poeta que vende seu próprio suicídio para uma empresa de Marketing como um espetáculo midiático de massas.


Herostratus e Laranja Mecânica


Logo nas primeiras sequências percebemos o quão Herostrataus foi influente na concepção de Laranja Mecânica (1971) de Kubrick. O protagonista Max é uma mistura de James Dean com o personagem Alex do ator Malcom McDowell, todo vestido de branco, destruindo seu apartamento com um machado na mão enquanto o aparelho de som toca música clássica a todo volume.


Tal qual Alex de Laranja Mecânica, Max é cheio de ódio, rancor, com os mesmos olhos letais do protagonista de Kubrick, além de se descrever como “a parte inferior da pilha de sucata” que é a sociedade. Vive uma espécie de rebelião interior vazia em busca de alguma forma de expressão pública – se em Laranja Mecânica foi através da “ultraviolência” da gangue liderada por Alex, em Herostratus será por meio do marketing de uma empresa especializada em criar tendências.

Don Levy fez um filme extremamente pessoal, mas ao mesmo tempo um retrato da revolta jovem na Grã-Bretanha do Pós-Guerra: jovens presos entre os extremos de riqueza e pobreza, enquanto são bombardeados por efeitos psicológicos eroticamente carregados da publicidade e sociedade de consumo.

Além de tudo isso, assistido 50 anos depois, podemos perceber como Herostratus também nos oferece uma didática lição de como é possível mercadologicamente criar “espontaneamente” tendências ou modas.

Don Levy foi lançado no momento em que toda a energia da revolta jovem contra a sociedade conformista do Pós-Guerra era canalizada em produtos mercadológicos como a Beatlemania, hippies, as drogas psicodélicas e os primeiros grandes festivais de rock na Inglaterra e EUA.

O Filme


O título do filme foi inspirado na lenda grega de Herostratus, o homem que supostamente teria incendiado o Templo de Artemis em Éfeso (na atual Turquia), considerado uma das Sete Maravilhas da Antiguidade, em busca da fama imortal para a posteridade.

O filme abre com imagens de ruas vazias e sujas de Londres com um jovem poeta chamado Max (Michael Gothard) trajando branco correndo como fugisse de algo. Em uma narrativa fragmentada que companha todo o filme, há uma complexo de imagens e sons projetados pelo diretor para provocar reflexos emocionais subconscientes no espectador.


Cacos de imagens da decadência urbana do Pós-Guerra, com justaposições de strip-teases burlescos que se sobrepõe a imagens de carcaças em um matadouro, além de imagens dos discursos de Hitler – uma em particular no qual é destacado um pequeno detalhe de expressão de autossatisfação do líder nazi, repetida diversas vezes. E o leitmotiv de uma mulher pálida em vestido de couro preto (interpretado pela própria esposa de Levy) que sempre aparece como uma espécie de fantasma que assombra a mente de Max.

Vive em um triste quartinho com paredes cobertas de jornais e outras coisas efêmeras icônicas da cultura pop, além de uma pequena boneca pendurada como estivesse enforcada.

Após destruir tudo com um machado, ao som altíssimo de opera clássica após ser cobrado por não pagar o aluguel, Max ruma para a Farson Advertising (impagável trocadilho com “farce”, “farsa”) para tentar expressar publicamente o seu ódio e desespero através da mídia: propõe transformar o seu suicídio, jogando-se do alto de um prédio no Centro de Londres, em um espetáculo midiático como uma forma de protesto contra a sociedade moderna.

O diálogo com Farson (Peter Stephens) é agressivo: para Max, Farson nada mais é do que um “especialista em lixologia humana”, o maior “cretino quando se trata de vender algo”. Max acredita que seu gesto será subversivo – utilizar a própria publicidade como veículo de divulgação de um ato de protesto.

Herostratus nos descreve como as intenções supostamente subversivas de Max são diluídas pelo Marketing em um gesto reacionário e degenerado em neurótica busca de autogratificação: uma tentativa desesperada de buscar atenção através dos mecanismos de criação de celebridades.

O ponto alto da ingenuidade de Max é quando se apaixona por Clio (Gabriela Licudi), a secretaria de Farson com “um coração tão duro e cortante como um diamante”, usada como isca para o jovem ser facilmente manipulável.


Quando a subversão vira mais um produto à venda


Há três passagens no filme descrevendo didaticamente os mecanismos de manipulação mercadológica, tão envolventes que são capazes de absorver os próprio protestos contra si mesmos.

A atriz Hellen Mirren (Trumbo, Hitchcock e Beleza Oculta), então com 18 anos, como garota propaganda de uma luva de borracha laranja “para você fazer seus serviços sujos”. Ela rebola sensualmente enquanto suspira: “quem realmente me quiser terá que me comprar!”. Uma indústria mercadológica capaz de erotizar uma simples luva de borracha laranja é poderosa o suficiente para transformar o gesto subversivo de Max em um mero produto, como, por exemplo, um detergente de cozinha.

Outro momento emblemático de Herostratus é a transformação da carga negativa do suicídio em positividade publicitária. Farson considera que as razões do suicídio são muito “negativas e pessoais”. Portanto, é necessário uma campanha que dê ao gesto de Max algo mais “positivo, altruísta e idealista que chame a atenção do público”. Farson afirma: “temos que dar felizes e aceitáveis razões para o público. Dê generalizações a eles. É disso que eles precisam”.

A Publicidade transforma qualquer demanda, reivindicação ou protesto em afirmações as mais vagas possíveis para serem seguidas por milhões. Por exemplo, acabar com a fome no planeta é uma reivindicação vaga, genérica que ninguém pode ser contra. Porém, o COMO fazer é deixado de lado.


Max desafia Farson: “o quê o assusta é que estou perto da verdade. Eu poderia começar uma revolução!” E Farson dispara, “manteremos elas vagas o bastante, para acabar com velhos gafanhotos como você!”.

É dessa espécie de “marketing ativista” que vivem celebridades como o roqueiro Bono Vox ou a ex-modelo Gisele Bundchen – todos dizem que querem salvar o mundo por meio de slogans genéricos o bastante para nunca discutirem o “COMO” fazer. Sempre deixando tudo “indefinido”, como reforça o discurso do marqueteiro Farson.

Mas toda “revolução” para dar certo precisa parecer espontânea para o público. Herostratus descreve uma estratégia que hoje é denominada como “agenda setting” ou a criação de “trend setters” – agentes de buzz marketing plantam informações de pautas sobre o suicídio como “ato de protesto” em pleno Centro de Londres para a informação viralizar e a tendência ser a mais genérica possível, diluindo o ato a princípio subversivo de Max.

Em Laranja Mecânica, Kubrick parece ter captado a essência do filme Herostratus: a ingenuidade dos protestos da contracultura jovem naquele momento que encarava seus oponentes (Mídia e Estado) apenas como fossem tigres de papéis.

Se em Laranja Mecânica a revolta de Alex foi instrumentalizada tanto pelo Governo como pela Oposição, em Herostratus é a indústria do Marketing e da Publicidade que diluirão o ímpeto revolucionário de uma geração inteira em mais uma tendência de moda.


Ficha Técnica

Título: Herostratus
Diretor: Don Levy
Roteiro: Don Levy, Alan Daiches
Elenco:  Michael Gothard, Gabriella Licudi, Peter Stephens, Helen Mirren
Produção: BFI Experimental Film Fund, BBC
Distribuição: BFI Video
Ano: 1967
País: Reino Unido

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