O cancelamento
unilateral da exposição “Queermuseu” em Porto Alegre após protestos de grupos
neoconservadores; o desenvolvimento de um software por pesquisadores da
Universidade de Stanford cujo algoritmo reconhece a orientação sexual e até a
tendência política através das feições faciais de uma foto; e a animação da
Pixar “Divertida Mente” (2015) cujo argumento foi inspirado em pesquisas
psicológicas da CIA. O atual “revival” do bestiário pseudocientífico do século
XIX (antropologia criminal de Lombroso, Eugenia de Galton etc.) favorecido pela
escalada planetária do neoconservadorismo está criando bizarras ligações
perigosas entre eventos aparentemente distantes no tempo e no espaço. O
cancelamento do “Queermuseu” é mais uma amostra do “zeitgeist” do século XXI: como
um zumbi que retorna dos mortos , o bestiário pseudocientífico anterior ao
século XX retorna com roupagem high tech (algoritmos e Inteligência Artificial)
ou sob o discurso da “nova política” das chamadas “revoluções coloridas”.
Em 2015 esse Cinegnose publicou o “Top 10 do
bestiário neoconservador para o século XXI” – como o atual contexto político
neocon planetário está ressuscitando antigas ideias até então superadas no
século passado pelo progresso científico: da fantástica “revelação” de que a
Terra é plana, passando pelo mito da bomba populacional e chegar ao ápice do
retorno da antropologia criminal do século XIX de Cesare Lombroso – clique aqui.
Esse revival neocon generalizado está criando
conexões bizarras e inimagináveis, principalmente para quem pensava que,
supostamente, a história da Ciência fosse uma linear acumulação de
conhecimentos. Pelo contrário, a agenda científica é cíclica e parece
seguir os caprichos dos contextos políticos.
Qual a ligação
entre o controverso cancelamento da exposição “Queermuseu” no Santander
Cultural de Porto Alegre; a polêmica do software da Universidade de Stanford,
EUA, de reconhecimento facial que detectaria homossexuais; e a animação da
Pixar Divertida Mente?
São casos
aparentemente distantes no tempo e espaço, mas guardam ligações perigosas
dentro de um “brave new world” imaginado pela atual escalada neoconservadora.
Ciência do lixo
Se aqui no
Brasil grupos de direitos LGBT protestam contra o cancelamento unilateral da
exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira” (que
ficaria em cartaz até 8 de outubro no Santander Cultural) após protestos sobre
supostas “blasfêmias”, “zoofilia” e “difusão da pedofilia” em alguns trabalhos
expostos, nos EUA a comunidade LGBT mobiliza-se contra um estudo da
Universidade de Stanford, acusando-o de “perigosa ciência lixo”.
O estudo de
Stanford afirma que o seu software pode, entre outras aplicações, reconhecer a
orientação sexual através das características faciais – dimensão das maxilas,
mandíbulas, ossatura, musculatura e feições.
Na verdade,
isso foi uma espécie de efeito colateral da pesquisa que visa continuar estudos
recentes que tentam ligar traços e feições a características de personalidade.
No estudo pesquisadores desenvolveram um algoritmo aplicado em fotos de mais de
14 mil americanos brancos, tiradas de um site de relacionamentos. O software
foi capaz de acertar a orientação sexual (hetero ou homossexual) em 81% das
vezes. Com as mulheres o acerto foi de 71%.
“Os rostos
homossexuais tenderam a ter menos marcas de gênero. Os homens gays tinham
maxilas estreitas e narizes maiores, enquanto as lésbicas tinham mandíbulas
maiores”, afirmaram os pesquisadores.
E mais. Segundo
o pesquisador Michael Kosinski, a pesquisa vai além do reconhecimento de
personalidade ou orientação sexual. Em entrevista ao jornal The Guardian, Kosinski afirmou estar
estudando as ligações entre características faciais e posição política – o
algoritmo poderia descobrir a ideologia de um indivíduo com base no formato do
rosto – “Face-reading AI will able to detect your politics and IQ, professor
says”, The Guardian, 12/09/2017 - clique aqui.
“A IA poderia
detectar desde a predisposição a comportamentos perigosos a uma inteligência
fora do comum”, completou o pesquisador.
Jim Halloran,
diretor da Glaad (organização que monitora a mídia em assuntos relacionados ao
público LGBT), acusa que tais pesquisas poderão no futuro ser usadas como armas
para prejudicar tanto os
heterossexuais cujas sexualidades poderiam ser definidas erroneamente, como
também as pessoas gays e lésbicas que estão em situações em que isto é perigoso".
E a Human Rights Campaign
(HRC) acusou tal pesquisa de “ciência lixo” e que Stanford deveria deixar de
emprestar seu nome a uma investigação “perigosamente falha” e que deixa o mundo
“pior e mais inseguro do que antes”.
De Lombroso ao “maior detector de mentiras do mundo”
Claro que o médico e
criminalista italiano Cesare Lombroso (1835-1909), onde estiver, deve estar
radiante ao ver suas enterradas teses da antropologia criminal do século XIX (a
prevenção da criminalidade através da identificação de potenciais criminosos
por aspectos físicos como formação craniana, forma de andar, cor, raça etc.)
sendo ressuscitadas através da alta tecnologia dos algoritmos e IA do século
XXI.
Cesare Lombroso: onde estiver, deve estar radiante |
Mais ainda: detectando
predisposições político-ideológicas – quais seriam, por exemplo, as diferentes
formações cranianas de um petista e de um “tucano” simpatizante do PSDB?
Uma agenda tecnocientífica
expressa no filme Minority Report – a Nova Lei (2002) no qual a polícia do
futuro podia se antecipar aos crimes por meio da gravação nos computadores das
premonições dos videntes “pré-cogs”. Só que agora, os videntes se transformaram
em metáforas da IA.
A pesquisa de Stanford dá
continuidade às pesquisas do psicólogo Paul Ekman, pioneiro nos estudos das
conexões entre emoções e expressões fisionômicas. O chamado “Atlas das
Emoções”, iniciado pela CIA e Departamento de Defesa dos EUA após 2001 fazendo
parte dos esforços da guerra anti-terror.
Concluído no Instituto de
Psicologia da Universidade da Califórnia, o estudo de Paul Ekman é considerado
“o maior detector de mentiras do mundo”.
Divertida Mente
É incrível que por trás do
entretenimento da Pixar Divertida Mente,
estivessem os estudos de Paul Ekman na inspiração do roteirista Pete Docter
para a narrativa da animação – sobre isso clique aqui.
Estudo de Paul Ekman para CIA inspiraram "Divertida Mente" |
Divertida
Mente reflete essa agenda
tecnocientífica do século XXI de produzir cartografias e topografias da mente
como instrumento de engenharia social – prospecção etnográfica e mental por
meio de IA para fornecer a base de novos dispositivos de vigilância e controle.
Assim como na animação da
Pixar (na qual as emoções más poderiam ser detectadas para depois serem
deletadas na busca de feed-back positivo dos indivíduos para adaptação ótima)
ou no filme Minority Report, da mesma
forma poderiam ser antecipados potenciais comportamentos “disfuncionais” como
orientação sexual ou político-ideológica, por exemplo.
Um mundo para o MBL
É para esse mundo que os
manifestantes contra a exposição “Queermuseu” , liderados pelo Movimento Brasil
Livre (MBL), estão se preparando.
A pseudociência do século
XIX (antropologia criminal de Lombroso ou a Eugenia de Francis Galton) esteve
por trás animando a visão da chamada “arte degenerada” na sombria amostra
nazista Entartete Kunst (mostra com a
“arte banida judia-bolchevique”) em Munique, 1937.
O quanto de Lombroso e Galton estava por trás da Exposição Arte Degenerada dos nazis? |
Se pensarmos em todo o esforço da Ciência do século XX, em diversos setores como Antropologia, Biologia e
Ciências Sociais, para desconstruir esses equívocos históricos, teremos
consciência do tamanho do retrocesso em pesquisas como essa da Universidade de
Stanford, em eventos como esse de Porto Alegre ou numa peça de entretenimento
como Divertida Mente inspirada em
pesquisas para criar o maior detector de mentiras do mundo.
É claro que a intolerância
da MBL nada tem a ver com a proteção da moral, dos bons costumes e do bom uso
do dinheiro público com a Lei Rouanet – basta ver a reação do roqueiro Roger Moreira,
chamando uma das artistas da mostra, Adriana Varejão, de “puta” e desenhando
falos sobre sua fotografia. Logo ele, capaz de escrever versos como “quando a
coisa fica dura” na música “Pelados” da banda Ultraje a Rigor .
Tudo é apenas um pretexto para
grupos neoconservadores atacarem as esquerdas – eles sabem que a agenda da
intolerância e da discussão de gênero é uma agenda cultural à esquerda do
espectro político brasileiro. E, afinal, sabemos que o MBL é uma das peças do
atual roteiro da guerra híbrida que já derrubou um governo e agora pretende
criar uma crise política e social de tal ordem que torne justificável o
adiamento das eleições 2018 – afinal, não querem ver todos os seus esforços
jogados fora em uma eleição democrática.
A questão é que o caso do
cancelamento unilateral da Queermuseu está sintonizado com o zeitgeist desse
século: como zumbis ressuscitados, o retorno de todo o bestiário de conservador
anterior ao século XX com nova roupagem high tech (algoritmos e IA) e sob o
discurso da “nova política” das chamadas “revoluções coloridas”.
Se toda a revolução
científica que rompeu o paradigma cartesiano como a relatividade e a mecânica
quântica inspiraram a arte moderna no século XX, certamente coisas como o
retorno de Lombroso ou da Eugenia de Galton está dando vida à ideia de que a
arte jamais deveria ter ido além dos desenhos nas paredes da Caverna de Lascaux há 15 mil anos.
Com informações do El País,
BBC Brasil e The Guardian.
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