Parece que o tempo parou ou estamos
presos em algum infernal eterno retorno. É essa a sensação ao vermos o canal
fechado “Viva” da Globosat: ao assistirmos às reapresentações de novelas e
programas de humor dos anos 1980 e 1990 temos uma estranha sensação de
atualidade nos personagens, gags e bordões do passado inspirados na crise política
e econômica daqueles tempos: desemprego, preconceito, desesperança, corrupção,
violência de classes. Tudo continua o mesmo! E para aumentar essa atmosfera de
realismo fantástico, agora o canal "Viva" exibe remakes de “Os Trapalhões” e “Escolinha do
Professor Raimundo” com atores sósias dos personagens originais revelando uma
bizarra dialética: o presente que repete o passado, também recorre aos mesmos bordões
e gags anteriormente trágicas, mas que agora ecoam como farsa, fazendo-nos dar
amargas risadas pela sensação de que o tempo parece não andar para frente, pelo menos
por essas plagas. Mas também revela o “tautismo” da Globo: os Marinhos sabem
que o monopólio da emissora está fundamentado na forçada recorrência brasileira
da crise e inércia política e econômica.
Assistir ao canal Viva do grupo Globosat é, em primeiro lugar, uma experiência nostálgica.
O canal é apresenta principalmente antigas novelas, séries e programas de humor
da Rede Globo e GNT – por exemplo, a telenovela Vale Tudo (1988-89), os humorísticos Estados Anysios de Chico City (1991) e Sai de Baixo (1996-2002).
Mas revendo essas produções e relembrando
o pano de fundo político e econômico brasileiro da época dessas produções
(explorado tanto pela teledramaturgia quanto pelos roteiros humorísticos de
cada momento) temos uma surpresa: há uma estranha sensação de atualidade,
apesar de serem programas de respectivamente 30, 21 e 27 anos atrás. Temas de
telenovelas, gags de humor, bordões etc. poderiam muito bem ser relacionados
com o Brasil atual... mas foram atrações exibidas em um país de décadas atrás.
Uma estranha sensação de que o Brasil
está parado no tempo ou, no mínimo, prisioneiro em alguma espécie de loop
temporal ou num infernal eterno retorno: temas como corrupção, achincalhamento
da política, moralismo, intolerância, a síndrome de vira-lata, a niilista
ausência de futuro, lamentos sobre a interminável crise, o desemprego etc.
A mesma sensação de esgotamento, inércia
e incapacidade de pensar o futuro, tanto lá em décadas atrás, como aqui, nesse
momento em que assistimos essas reapresentações do canal Viva.
E para tornar ainda tudo surreal, criando
uma atmosfera de realismo fantástico, o canal agora apresenta remakes de dois programas
humorísticos antigos: Os Trapalhões e
Escolinha do Professor Raimundo. Mais
do que remakes – produções com atores praticamente sósias dos originais, sob a
égide de ser uma “respeitosa homenagem” a ícones do passado.
Atemporalidade bizarra
Estranha dialética: programas que repetem
como farsa gags e bordões do passado inspiradas em um País que tanto lá, como
aqui, continua com as mesmíssimas mazelas.
Alguns exemplos dessa bizarra
atemporalidade: no Estados Anysios de
Chico City de 1991, finalmente o personagem de Chico Anysio, Justo Veríssimo (político populista e corrupto que odeia pobres), chega à presidência
no país metafórico do programa (“Estados de Chico City”) cuja abertura mostrava
um sósia de Fernando Collor de Melo, presidente naquele momento.
Ele recebe um parlamentar em seu gabinete
que traz denúncias de superfaturamento na compra de vacinas. O parlamentar quer
medidas para apurar o escândalo, sob pena de não dar a base parlamentar
necessária para Justo Veríssimo governar. O presidente promete “SAMnear” os custos das
vacinas, e o parlamentar sai feliz. Veríssimo fala para os seus assistentes
(familiares, em corriqueiro nepotismo...) que “SAMnear” refere-se não a
“sanear”, mas atender às exigências do Tio SAM...
Estranha atemporalidade num País cujo
presidente continua antenado com Tio Sam e preocupado em manter a base
parlamentar para se safar da Justiça.
Ou ainda a novela Vale Tudo (1988-89): para além da crítica moralista de que a raiz
de toda a crise brasileira estaria na “Lei do Gérson” (levar vantagem em tudo
pela corrupção), a novela contrapõe a decadência moral da nação com o
“empreendedorismo” (que eu me lembre, esse conceito não existia na época) da
honesta Raquel Accioli (Regina Duarte) que, de vendedora de sanduíches nas
praias do Rio, virou dona de uma rede de restaurantes industriais.
Atemporalidade brasileira: o destino dos
desempregados atuais em virarem “empreendedores” como o caminho honesto (e sem
garantias sociais futuras) de um País que “dá certo” e que rejeita a corrupção
e o “jeitinho”. Melhor: agora temos maquininhas de crédito e débito, bem
diferente de um passado no qual cheques borrachudos infestavam o comércio.
Isso sem falar nos problemas que o autor,
Gilberto Braga, teve na época com personagens homossexuais na novela. Nada
mudou, 30 anos depois... Apenas ficou mais organizado: se no passado tínhamos
esparsas “velhinhas de Taubaté”, hoje temos os jovens universitários do MBL
cuja logística é financiada por fundações educacionais privadas.
Em 1988 o "empreendedorismo" também era solução para o País em "Vale Tudo" |
Monopólio da Globo precisa da crise
O fato é que as Organizações Globo
cresceram e monopolizaram a mídia nacional numa crise econômica e política
recorrente que até pode mudar os personagens e as narrativas. Mas a essência
continua a mesma: desemprego, inflação, sucateamento do Estado e serviços
públicos, a política do imponderável e a apatia política pelo divórcio entre
parlamento e nação.
O ar que a Globo respira é o da atmosfera
pesada da crise crônica na qual não importa se a audiência caia – o BV (o
“Bônus por Volume”) permite que a maior remuneração das agências publicitárias
venha da Globo, e não dos seus próprios clientes.
Por exemplo, por décadas a Globo fez de
tudo para evitar que a evolução tecnológica colocasse em xeque esse sistema
publicitário: nos anos 1970, evitava que os anúncios de televisores
mencionassem a existência do controle remoto e, o que seria pior, suas funções;
nos anos 1980, os filmes publicitários de aparelhos videocassetes se limitavam
a divulgar a função “play” para assistir aos filmes das locadoras – a perigosa
função “Rec” e a programação de gravações da TV era esquecida para não ameaçar
a recepção cativa à grade de programação da emissora; nos anos 1990, através do
modelo NET Brasil da TV por assinatura, as Organizações Globo sentaram no
mercado da TV a cabo e satélite, evitando uma expansão do setor que poderia
ameaçar a galinha dos ovos de ouro da TV aberta.
E no século XXI, a Globo faz de tudo para
demonizar Internet e dispositivos móveis – para o seu telejornalismo a pauta
sobre essas novas tecnologias é essencialmente negativa: fonte de crimes,
violência de torcidas organizadas no futebol, pedofilia, vício, motivo de
acidentes de trânsito, forma de comunicação dos líderes do narcotráfico e uma
infinidade de mazelas.
Remakes Os Trapalhões e Escolinha: Wishfull Thinking
Diante desse quadro ideal (o mix de crise
e inércia política e econômica), para a Globo os remakes de Os Trapalhões e Escolinha do Professor Raimundo ganham um inesperado sentido – é o whishfull thinking da emissora, o desejo
de que tudo permanece como está com as mesmas gags e bordões que façam o telespectador
continuar a rir da sua própria desgraça – que o pensador alemão Theodor Adorno
via como a essência do próprio humor pós-guerra desde as HQs do Pato Donald –
sobre isso clique aqui.
É sintomático ver uma geração de
humoristas stand up como Dani Calabresa
(como sósia da Dona Catifunda) e Marcelo Adnet (fazendo um sósia do Rolando
Lero) na nova Escolinha do Professor
Raimundo: renovação do humor da geração MTV agora confinado a fazer mais do
mesmo – ela como clone de uma personagem dos tempos do banco da Praça da Alegria com Manoel da Nóbrega
e, na Globo, com Miéle nos anos 1970; e ele fazendo o humor metalinguístico e
chapa branca global no programa Tá no Ar.
Ironicamente, em uma homenagem a Chico
Anysio, que morreu ressentido pela Globo tê-lo deixado em segundo plano diante
de uma suposta renovação do humor com TV
Pirata e Casseta e Planeta –
Chico Anysio disparava criticando que era um humor feito não mais por
comediantes, mas por atores e roteiristas.
Tudo com os mesmos bordões e gags da
conveniente e eterna crise brasileira. Por exemplo, nos “Novos Trapalhões” temos
mais piadas sobre a crise e o aumento do custo de vida (histórico mote do humor
dos Trapalhões) que condenam os clones do Zacharias, Didi e Mussúm a terem que
dividir uma mesma esposa no episódio “Didi Coloca Ordem no Pedaço”.
Ou no episódio “Didi se Atrapalha no
Serviço” com risadas arrancadas da submissão do personagens aos patrões (outro
histórico clichê da trupe de humor) que termina com o serviçal humilhado
quebrando um vaso na própria cabeça. O
reverso do esboço de alguma mudança nas relações de classe no País que há pouco
tempo se iniciava, representado pelo filme brasileiro Que Horas Ela Volta? (2015).
O eterno retorno da Globo
Por isso, os atuais remakes de velhos
programas de humor da Globo são, mais uma vez, sintomas do crônico tautismo
(tautologia + autismo) da Globo, chegando, por exemplo, ao ponto no qual os
próprios trapalhões remanescentes (Renato Aragão e Dedé Santana) fazerem
metalinguagem de si mesmos como espécie de diretores que orientam seus próprios
clones.
A Globo é o principal
arquiteto do eterno retorno em que está mergulhado o País. Capaz de atuar
simultaneamente tanto no plano político (apoio logístico a golpes de Estado
desde 1964) como no plano imaginário:
(a) Crise econômica e desemprego
mantêm os telespectadores presos e cativos à TV pela limitação financeira das
opções de lazer;
(b) Quanto maior o baixa
astral e desesperança (síndrome de vira-latas), maior a demanda por fantasias
escapistas: ver a mesa farta do café da manhã na novela, torcer pelo resultado
da Mega-Sena, deleitar-se com as lindas imagens (agora em HD) de paraísos idílicos
distantes e dos correspondentes da Globo nas metrópoles civilizadas do Primeiro
Mundo;
(c) Quanto mais
desesperançado, mais o telespectador fica ressentido, necessitando da catarse
de coisas como meganhagem da Justiça transmitida ao vivo com Policias Federais
nas ruas armados até os dentes conduzindo acusados de corrupção idosos, gordos
e com ar sonolento.
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