Um fantasma ronda o Poder e
o Estado. O fantasma da apatia e indiferença das massas para o quê quer eles
façam ou planejem. Não por serem “alienadas”. Mas simplesmente porque as
pessoas estão absorvidas pela absoluta banalidade da vida. Dois jovens muçulmanos
comem kebab em uma lanchonete, concentrados num hilariante relato de uma
aventura amorosa do Dia dos Namorados. Absolutamente distraídos e indiferentes à chegada de
policiais que os abordam como os suspeitos de sempre, com ações cada vez mais
invasivas e violentas. O que se segue é uma narrativa de humor surreal e
absurdo: a contradição entre uma animada conversa sobre façanhas amorosas e a
violência policial que não consegue quebrar a atenção daqueles jovens
adolescentes. Esse é o curta State of
Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert Sa Mere!, 2017) do belga Sebastién
Petretti.
Sob o rescaldo
dos recentes atentados terroristas em Paris e Bruxelas, o diretor belga
Sebastién Petretti teve o insight de fazer o curta State of Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert Sa Mere!, 2017): como constante estado de emergência antiterror na
Europa estigmatiza principalmente os imigrantes de origem muçulmana. Que para a
polícia passam a ser os suspeitos de sempre, além vítimas da violência e
preconceito nas suas vidas cotidianas.
Essa dualidade
entre o dia-a-dia dos imigrantes (trabalho, diversão e lazer) e o constante
estado de emergência das autoridades que os coloca sempre como os principais
suspeitos é explorada de forma ao mesmo tempo cômica e violenta.
Samy e Mehdi
são dois adolescentes muçulmanos que se encontram em uma lanchonete para comer
kebabs. Mas principalmente para ouvir o relato de Samy sobre suas façanhas
amorosas no Dia dos Namorados. E nada vai interromper a oportunidade dele
contar uma boa história.
A questão tanto para o seu amigo Mehdi como
para o espectador é a resposta para a seguinte pergunta de conotação bem
machista: e aí, comeu?
Mas Samy
arrasta a história para entrar em detalhes, adicionando comentários e
transformando a sua aventura afetiva em um conto épico.
Por si só a discussão
entre os dois amigos é hilariante, até o momento em que policiais entram no
local e pedem os documentos de identidades dos rapazes. Mas nada os distrai da conversa, que
continua enquanto os policiais se preparam para dar uma enquadrada nos
adolescentes.
Todo o curta se
sustenta nesse ar blasé e indiferença dos protagonistas, imersos no relato de
um Dia dos Namorados, e a ação dos policiais que progressivamente se torna cada
vez mais invasiva, abusiva e violenta. A contradição entre uma conversa frívola
travada em meio a violência pesada dos policiais contra os jovens. E eles não
estão nem aí – nada interrompe o relato, levando a narrativa ao surrealismo e
absurdo.
O curta
consegue abordar um tema muito sério de forma divertida e engraçada,
satirizando a expectativa de violência de uma minoria socialmente estigmatizada
– uma perseguição tão cotidiana que é absorvida na rotina desse grupo social.
Porém, outro detalhe
interessante é a figuração dos policiais: sua violência parece também ser
ritual e rotineira. Há uma indiferença e tédio: prender os suspeitos de sempre
para encaminhá-los “aos costumes”. Lembrando a sequência final do filme Casablanca (1942) onde o chefe de
polícia ordenava por pura formalidade aos seus subordinados: “detenham os
suspeitos de sempre...”.
A apatia das massas e o fim do social
A incrível indiferença dos
jovens muçulmanos, absorvidos pelo relato da aventura romântica num Dia dos
Namorados, suscita como uma metáfora uma das principais teses niilistas do
pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007): a morte do social e a ameaça do
desaparecimento do Poder e da política.
No seu pequeno livro À Sombra das Maiorias Silenciosas, O Fim do
Social e o Surgimento das Massas (Brasiliense, 1985), Baudrillard falava do
“fim do social” não como uma trapaça do Poder para alienar as pessoas mas como
uma espécie de “astúcia” das massas – o silêncio e indiferença pela absorção
das pessoas pela absoluta banalidade da vida: cuidar dos filhos, namorar,
picuinhas com vizinhos, pagar as contas, etc. A gestão da rotina e do que vai
fazer no dia seguinte.
Baudrillard entendia por
“astúcia” uma irônica rebelião das massas contra o Poder e o Estado: pela
absoluta indiferença. E seria exatamente disso que a Política e o Poder têm
mais medo: o fim da política por dissuasão e indiferença. Uma realidade bem
diferente da alienação – um conceito que ainda subentende-se a existência algum
sentido social que estaria sendo sequestrado por alguma ação política: censura,
manipulação etc.
Assim como os jovens no
curta, simplesmente a indiferença faria a sociedade pular fora do jogo do Poder
– eleições, representação etc. Por isso a ansiedade atual do Poder exigir a
participação da sociedade no jogo parlamentar e democrático: vote! Participe!
Informe-se!
O Poder teme o “silêncio”
das massas. Por isso as pesquisa, faz enquetes com elas, de todas as formas
tenta faze-las falarem. Para Baudrillard o “fim” do social representaria uma
irônica destruição do Poder pela sua absoluta inutilidade.
É o que o pensador francês
chamava de “estratégias fatais” – as irônicas estratégias do objeto que resiste
a qualquer tentativa de atribuição de sentido e lógica. Assim como o paradoxo
da mecânica quântica no qual a nuvem de probabilidades no entorno do núcleo impede
que o observador tenha uma figuração “real” do mundo microfísico.
Porém, o mais importante
nessa provocativa tese é que o Poder tem consciência da sua própria
inutilidade. É quando ele passa para o estágio da simulação: através da
propaganda e meios de comunicação simula ter algum sentido e propósito –
eleições, novos governos e golpes políticos se sucedem como uma monótona
narrativa para as massas, mais preocupadas com seus afazeres do que com o show
diariamente mostrado pelos telejornais.
Por isso o título do curta é
bem exato: “estamos num estado de emergência, filho da puta!” como uma
exortação para alguém que não está nem aí para a suposta gravidade política de
uma situação.
Aliás, aos poucos o próprio
Poder é progressivamente absorvido pela apatia das massas. Isso é mostrado no
curta quando percebemos como os próprios policiais vão sendo absorvidos pela
rotina burocrática: a tortura de suspeitos muçulmanos como mais um trabalho sem
sentido e entediante.
State of Emergency Motherfucker! é talvez o curta mais político já visto por
esse humilde blogueiro. Ironicamente, pelo seu argumento apolítico (e, por
isso, anárquico) por trás da denúncia da estigmatização das minorias no atual
estágio da guerra antiterror internacional.
Ficha Técnica
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Título: State of Emergency Motherfucker! (Etat D’Alert
Sa Mere!)
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Diretor: Sebastién Petretti
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Roteiro: Sebastién Petretti
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Elenco: Yassine Fadel, Illias Bouanane
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Produção: Lovo Films, Abyssal Process, WFA Pictures, Squarefish
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Distribuição: Vimeo
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Ano: 2017
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País: Bélgica
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