Cinco modos de sobrevivência. Um marido
que não consegue matar a esposa; uma dupla de ladrões gays enrustidos; uma
criativa que produz vídeos publicitários que só ela consegue gostar; um pai de
família que pensa ser uma pomba depois de um show de hipnose mal sucedido; e um
assassino de aluguel que faz a mesma pergunta a todos que querem contratá-lo:
“qual a sua função na vida?”. Mas sobreviver a quê? Ao cumprimento obrigatório
dos papéis familiares, de gênero, profissionais, familiares etc. Esse é o
estranho e bizarro filme japonês “Survivor Style 5+” (2004) uma avalanche de
alusões, referencias e metalinguagens de “O Iluminado”, “Laranja Mecânica”,
Kubrick, Tarantino e Guy Ritchie. Onde, em questão de segundos, a narrativa vai
dos extremos do assustador e da comédia. “Survivor Style 5+” revela não só como
a cultura pop japonesa liquefaz toda a cultura Ocidental como também, através
da estética do chamado “filme estranho” ("Weird Movies"), chama
a atenção para o mal estar que coexiste no cotidiano não só japonês, mas da
sociedade em geral.
Para nós ocidentais, a palavra “sentido”
tem um forte significado ontológico: a busca da “essência”, do porquê das
coisas, a procura da ligação entre palavras e coisas. Buscamos algo fixo,
definitivo e estático que dê um propósito para os eventos, a existência, a
vida. A busca de uma ordem por trás daquilo que parece aleatório e incerto.
Mas na cultura Oriental a palavra
“sentido” parece ter um outro, por assim dizer, “significado”: não como algo
fixo, mas um sentido para o qual aponta um fluxo, movimento, deslocamento. Não
é mais pensado como “essência”, mas estilização.
Por exemplo, para o escritor e filósofo catalão
Rubert de Ventós o gênio japonês estaria no mimetismo, na imitação: o Japão
entra na órbita cultural e tecnológica do Ocidente segundo um velho princípio
taoísta de que consegue-se a vitória não afirmando-se, mas absorvendo a força
do oponente – leia VENTÓS, Rubert de, De La
Modernidad, Barcelona, Ediciones 62, 1982.
No filme Encontros e Desencontros (Lost
in Translation, 2003) percebemos a inacreditável capacidade de estilização
da cultura pop ocidental: programas
de TV com apresentadores freaks estilizando de forma caricata a linguagem MTV e
karaokês onde cantores amadores encarnam punks, metaleiros e românticos.
Liquefação cultural
Esse liquidificador cultural
japonês, que se afirma diante do Ocidente liquefazendo-o pela extrema
estilização, pode ser visto no inacreditável filme Survivor Style 5+ (2004) do diretor Gen Sekiguchi – com produções
esparsas em curtas e participação como codiretor na comédia Sabi Otoko Sabi Onna (2011).
Duas horas de filme com
cinco histórias paralelas que misturam o Tarantino de Pulp Fiction, com Guy
Ritchie de Jogos Trapaças e Dois Canos
Fumegantes (1998) e Snatch: Porcos e
Diamantes (2000); diversas alusões a O
Iluminado e Laranja Mecânica de
Kubrick; com a simetria, paleta cromática e tipografia dos filmes de Wes
Anderson. Além de camadas e camadas de cenografia com mix de referencias a Art,
Noveau, Art Deco, Pop Art, Psicodelismo e Expressionismo. E uma trilha musical que vai da
música clássica ao punk e headbanging.
O resultado é um filme
detalhado, colorido, bizarro e estranhamente engraçado – não há um tom
definitivo entre humor negro, non sense
ou surrealismo.
Para muitos críticos é um filme insano,
maluco, demasiadamente aleatório que produz efeitos limítrofes entre o assustador
e a comédia rasgada.
O diretor Sekiguchi tem uma grande
capacidade de desenvolver personagens fellinianos na cultura japonesa: o marido
que não consegue matar a esposa; uma dupla de ladrões gays enrustidos; um pai
de família transformado permanentemente numa pomba depois de um show de hipnose
mal sucedido; uma criativa que imagina roteiros de filmes publicitários que só
ela acha engraçados; um astro de shows de hipnose que acha que seu propósito na
vida é fazer as mulheres chegarem rapidamente ao orgasmo; e um personagem
metalinguístico: o ator inglês Vinnie Jones interpretando os próprios
personagens que fez nos filmes de Guy Ritchie Snatch e Jogos, Trapaças e
Dois Canos Fumegantes.
O título de filme fala em “estilos de
sobrevivência”: são cinco estórias, com cinco modos de sobrevivência ao
cumprimento forçado dos papéis sociais, conjugais, familiares e de gênero. Mas
modos diferentes de tudo que o leitor já viu antes no cinema.
O Filme
Survive
Style 5+ abre com um homem
chamado Ishigaki à noite numa floresta enterrando secretamente sua esposa. Joga
o corpo no buraco e a observa, até perceber chocado que o rosto ainda move-se.
Possesso, pula no buraco com a pá para esmagar impiedosamente o rosto dela.
Para depois voltar para casa, abrir calmamente a geladeira e descobrir que sua
esposa já está lá, sentada à mesa com um olhar sinistramente calmo.
Inicia-se entre os dois uma luta entre
vida e a morte que aos poucos vai se entrelaçando com outros quatro contos: uma
criativa publicitária chamada Yuko tem um relacionamento insatisfatório com um
hipnotizador; um inglês chega ao Japão convidado por um escritório de
assassinos de aluguel para atender aos contratos de Ishigaki e Yuko para matar
seus respectivos parceiros.
Além disso temos um grupo de assaltantes
de residências com uma impagável dupla de gays enrustidos que, toda vez que se
entreolham, toca a música leitmotiv
“come to me”...; e um esforçado pai da perfeita família japonesa (com uma
esposa que mais parece uma gueixa) que consegue comprar ingressos para todos
irem ao show do famoso hipnotizador que vai terminar muito mal – hipnotizado
permanentemente, passa a arrulhar e andar como uma pomba, diante de uma
esposa-gueixa indiferente.
Tudo pode parecer incrivelmente
complicado e estranho. Mas acredite: essa descrição acima não é spoiler e sequer arranha a superfície de
tudo que as duas horas de filme têm a oferecer.
A primeira metade do filme é a descrição
dos conflitos de cada um desses contos (narrados de maneira alternada, mas
consistente e compreensível), para depois as linha narrativas se misturarem de
forma surpreendente e hilariante.
O que é um “Filme Estranho”?
Definitivamente, Survive Style 5+ entra na categoria do “Filmes Estranhos” (Weird
Movies), um tipo de filme que muitas vezes com a noção de “filme gnóstico”
analisada pelo Cinegnose.
Na acepção do conceito, “filme estranho”
(do latim “extraneum” – o que é de fora, estrangeiro) é uma combinação do
fantástico, do excêntrico, de tudo aquilo que é incomum, com a ideia de
estrangeiro, de estranhamento, tanto dos protagonistas da narrativa quanto dos
espectadores.
Apesar do caos e bizarrice aparentes de
Survive Style 5+, o filme tem um tema central que se junta à acepção da origem
em latim de “estranho” – protagonistas em estado de estranhamento e conflito
com os mais variados papéis sociais (profissional, familiar, gênero, conjugal
etc.). São todos como se fossem estrangeiros nas suas próprias vidas
cotidianas.
Para além do non sense e humor negro
O cineasta sueco Roy Anderson (Songs From The Second Floor, Vocês, Os Vivos) é um dos mestres atuais
em criar pequenos contos nos quais, com humor negro e non sense, mostra como são ridículos os papéis sociais que
representamos no cotidiano. Mas Survive
Style 5+ mostra a diferença do viés japonês: esse mesmo tema é tratado num
pastiche enlouquecido de alusões, referências e metalinguagens combinado com
situações extremas que vão do assustador ao cômico em questão de segundos.
Dessa maneira, o diretor japonês Gen
Sekiguchi vai além do non sense e humor
negro: ele entra no campo do filme estranho.
Parece que essa busca da
hipérbole e exagero (algumas das características do filme estranho) é uma
necessidade estratégica da arte num mundo no qual os nossos sentidos foram tão
saturados de estímulos que perdemos a capacidade de sentir estranhamento,
alienação e mal estar – condições psíquicas sine
qua non para iniciar o pensamento crítico.
O bordão principal do filme
é “Qual a sua função na vida?”, pergunta que o assassino de aluguel inglês faz a
todos aqueles que contratam seus serviços mortais. Com todos ouve resposta
evasivas e racionalizações que só o irritam, xingando a todos. Para sua
satisfação, ele ouve a melhor resposta do filme, dita pelo marido que queria
matar a esposa: “nenhuma!”.
O cumprimento de funções e
papéis sociais é o questionamento principal do filme, ironicamente num país
cuja imagem para nós ocidentais é a das virtudes da disciplina, ordem, limpeza
e progresso. E somente um filme carregado de estranheza, bizarrice e exagero
para chamar a atenção do mal estar que coexiste no cotidiano não só japonês,
mas da sociedade em geral.
Ficha Técnica
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Título: Survive Style 5+
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Diretor: Gen Sekiguchi
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Roteiro: Taku Tada
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Elenco: Tadanobu Asano, Heika Hashimoto, Hiroshi Abe, Kyôko Koizumi
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Produção: Tohokushinsha Film Corporation
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Distribuição: Manga Entertainment, Nippon Television
Network (NTV)
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Ano: 2004
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País: Japão
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