Desde “A Noite
dos Mortos Vivos” (1968), filmes sobre pragas zumbis e contaminações virais se
consolidaram como um subgênero do terror com uma característica recorrente: o
foco narrativo sempre está nos sobreviventes ou cientistas que tentam salvar o
mundo através da racionalidade ou da coragem. “O Sinal” (The Signal, 2007) subverte
esse cânone do terror: o que aconteceria se um filme se concentrasse no ponto
de vista dos zumbis? Como eles veem a si mesmos? Para eles quais seriam as
fronteiras entre normalidade e loucura? O resultado é um filme sem
heróis: apenas pessoas normais que não possuem a menor consciência de que foram
contaminados por um misterioso sinal transmitido pela TV e dispositivos de
áudio como CD players e de comunicação como telefones e rádios. “O Sinal” apaga
a fronteira entre a normalidade e a loucura. Mas não espere zumbis canibais se arrastando
pelas ruas – apenas pessoas aparentemente normais e até com intenções altruístas.
Mas de repente podem matar impiedosamente aqueles que supostamente estejam no
caminho da sua felicidade. Outro filme sugerido pelo nosso implacável leitor
Felipe Resende.
Desde o seminal
A Noite dos Mortos Vivos (1968), de
George Romero, lá se foram mais de 40 anos de filmes sobre pragas zumbis e
epidemias por toxinas ou vírus que enlouquecem e tornam as pessoas violentas, irracionais
e canibais.
Sempre
acompanhamos militares fazendo cercos a cidades, quarentenas forçadas para
tentar manter o restante do mundo são, heróis cientistas ou cidadãos tomados ao
mesmo tempo pela coragem e terror para enfrentar as criaturas.
Décadas desse
subgênero produziram muitas variações sobre o tema. Mas sempre as narrativas
foram focadas nos sobreviventes, militares e cientistas – ou seja, naqueles que
ainda tem a racionalidade para enfrentar o irracional e o Mal.
Mas o ponto de vista dos
zumbis ou dos contaminados foi esquecido: e se surgisse um filme cuja narrativa
fosse centralizada no ponto de vista deles? Sem cientistas ou heróis: apenas
pessoas normais que não possuem a menor consciência de que enlouqueceram por
meio de um misterioso sinal transmitido pela TV e dispositivos de áudio como CD
players e de comunicação como telefones e rádios.
Esse é o argumento do filme
O Sinal (The Signal, 2007), com a narrativa mais instigante dentro desse
subgênero: entre o horror visceral e o humor negro (que algumas vezes faz
lembrar o filme inglês Todo Mundo Quase Morto - Shawn of Dead), o filme borra a
fronteira entre a racionalidade e a irracionalidade, entre aqueles que foram
afetados e aqueles que aparentemente permanecem sãos.
Por isso, a paranoia só
aumenta na medida em que o filme avança – há mortos, agressões e violência por
todos os lados. Mas para cada um, seus atos são normais, racionais, obedecendo
os parâmetros esperados dos papéis sociais: o marido ciumento que tenta matar
qualquer um que supostamente esteja ameaçando sua mulher, a esposa que tenta
organizar uma festa de Ano Novo, mesmo com seu marido morto e ensanguentado sentado
à mesa e assim por diante.
Para o próprio espectador
cresce a dúvida se, afinal, há algum protagonista que não tenha sido
contaminado pelo Sinal. Onde está o herói?
Mas percebemos que o filme
vai além dessa premissa e é muito mais ambicioso: pretende discutir a própria
natureza da sociabilidade e como os meios de comunicação moldam a percepção da
realidade. E se os papéis sociais exigem de nós muitas vezes desempenhos
brutais e irracionais? E se as mídias forem capazes de criar um véu de ilusão
tão espesso que acabamos percebendo essas exigências como lógicas e racionais?
O Filme
O Sinal
começa como um filme-dentro-de-um-filme (narrativa em abismo): assistimos ao
que parece ser um desbotado filme de terror dos anos 1970. No momento crucial
da ação o filme é interrompido pelo “sinal”, uma espécie de pulsação, com
borrão de luzes e feedback. Vemos que o filme estava sendo assistindo por um
casal em um quarto escuro – Mya (Anessa Ramsey), sentindo-se culpada por trair
o seu marido; e Ben (Justin Welborn), pedindo que Mya largue seu marido e
juntos fujam daquela cidade chamada Terminus.
É véspera de Ano Novo quando
um forte sinal é transmitido por todas as mídias que nos cercam (celulares, TV,
telefone, CD Players, rádio etc.). E o efeito é enlouquecer as pessoas que vêm
ou ouvem – tornam-se paranoicas, iradas e com alta sugestionabilidade. Eles
começam a assassinar sistematicamente alguém que percebam que supostamente
estejam impedindo a própria busca da felicidade. Amigos começam a matar amigos,
vizinhos começam a matar vizinhos, cônjuges matam o parceiro e pais matam
crianças.
O filme é composto por três
segmentos, ou “transmissões”: “Loucos de Amor”, “O Monstro do Ciúmes” e “Fuga
de Terminus”. Cada segmento foi dirigido por um diretor diferente, na verdade
um experimento no qual a narrativa é passada de um cineasta para outro. O
resultado é uma interessante variedade de tons narrativos: terror “gore”
visceral e sangrento, comédia, humor negro e thriller de horror.
O primeiro segmento
(dirigido por David Brickner) gira em torno de Mya que volta para casa depois
do encontro com o amante; o segundo (Jacob Gentry), e mais forte segmento, é do
ponto de vista de Lewis (AJ Bowen), marido de Mya, perigosamente enlouquecido
pelo sinal; e o terceiro segmento (Dan Bush) acompanha o amante Ben, tentando
alcançar Mya antes de Lewis e, depois, fugirem da cidade.
O
Sinal não é propriamente
um filme de zumbis: ninguém solta espuma pela boca, possui um olhar vazio ou se
arrasta pelas ruas deixando para trás pedaços do próprio corpo. Todos parecem
ser racionais e movidos até por intenções altruístas.
O desempenho mais fascinante
é de Lewis, um exterminador de pragas. Alto, barbudo e de fala mansa e
empunhando sua lata de spray de veneno para ratos (transformado em perigosa
arma de matar), é a própria personificação da violência criteriosamente
racional – Lewis busca Mya não para matá-la, mas para “protegê-la”. Ciumento e
possessivo, qualquer pessoa que supostamente se coloque entre ele e sua esposa,
será assassinado impiedosamente.
O sinal altera a percepção,
aumentando como uma lente a necessidade de cumprir determinados papéis sociais
e também a busca da própria felicidade. Tudo parece ser racional para aquele
que foi contaminado: se alguém se põe no caminho da felicidade, eu o destruo!
O certo e o errado; o lógico e o racional
Todos fazem o que parece certo, sem perceberem
que o sinal está deformando a percepção. Por isso, o primeiro tema que salta
aos olhos no filme é como as mídias que nos rodeiam alteram imperceptivelmente
nossa percepção – não para aquilo que é “certo” e “errado”, mas para aquilo que
é supostamente “lógico” e “racional”.
Por isso, O Sinal lembra alguns aspectos de Videodrome de David Cronenberg ou o
terror japonês Ringu (The Ring). Porém, o filme utiliza o
argumento do terror resvalando pelo tema de zumbis para dar um viés mais
sócio-psicológico: o sinal contaminante é a metáfora da maneira como as mídias
agendam nossos corações e mentes.
A mídia não tem apenas a
função ideológica de reforçar a obrigatoriedade dos papéis sociais. Para além
dessa função básica, as imagens e sons transmitidos criam uma espécie de
realidade aumentada. E sobre essa camada ilusória criamos nossos ideais de
felicidade individualistas, nos quais o outro (esposa, vizinho, amigos ou
estranhos) só teria duas alternativas: ou facilita ou dificulta a realização
desses ideais.
E isso leva ao segundo tema:
essa busca individualista e possessiva da felicidade pode parecer lógica e
racional no plano pessoal ou micro. Mas no plano macro (social ou econômica)
reina o caos, a desordem e a violência.
No plano da economia essa
contradição entre micro X macro é bem conhecida: a ação economicamente racional
de cada agente (meta, investimentos etc.) pode produzir a desordem no Todo –
inflação, aumento de juros, crises cíclicas etc.
E no plano sócio-pessoal, se
o ciúme é “racional” para o papel social de marido, no âmbito conjugal pode
virar possessão e até violência. E em O
Sinal, vísceras e sangue.
Enfim, O Sinal conduz a uma
séria questão gnóstica: se para o Gnosticismo a realidade é, em si mesma, um
véu ontológico de ilusão, com o advento da realidade aumentada das mídias esse
véu tornou-se ainda mais espesso – a própria lógica e racionalidade dos meios
que levam a um fim são em si mesmas ilusórias.
E o que fazem as novas
tecnologias? Apenas aumentam o poder de imersão na própria ilusão – um véu em
3D, 4D ou IMAX.
Ficha Técnica
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Título: O Sinal
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Diretor: David Bruckner, Dan Bush, Jacob Gentry
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Roteiro: David Bruckner, Dan
Bush, Jacob Gentry
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Elenco: Anessa
Ramsey, Justin Welborn, AJ Bowen, Sahr Ngaujah, Cheri Christian
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Produção: Pop Films, Shoreline Entertainment
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Distribuição: Magnolia Films
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Ano: 2007
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País: EUA
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