terça-feira, setembro 19, 2017

Mídia contamina fronteira entre sanidade e loucura em "O Sinal"


Desde “A Noite dos Mortos Vivos” (1968), filmes sobre pragas zumbis e contaminações virais se consolidaram como um subgênero do terror com uma característica recorrente: o foco narrativo sempre está nos sobreviventes ou cientistas que tentam salvar o mundo através da racionalidade ou da coragem. “O Sinal” (The Signal, 2007) subverte esse cânone do terror: o que aconteceria se um filme se concentrasse no ponto de vista dos zumbis? Como eles veem a si mesmos? Para eles quais seriam as fronteiras entre normalidade e loucura? O resultado é um filme sem heróis: apenas pessoas normais que não possuem a menor consciência de que foram contaminados por um misterioso sinal transmitido pela TV e dispositivos de áudio como CD players e de comunicação como telefones e rádios. “O Sinal” apaga a fronteira entre a normalidade e a loucura. Mas não espere zumbis canibais se arrastando pelas ruas – apenas pessoas aparentemente normais e até com intenções altruístas. Mas de repente podem matar impiedosamente aqueles que supostamente estejam no caminho da sua felicidade. Outro filme sugerido pelo nosso implacável leitor Felipe Resende.

Desde o seminal A Noite dos Mortos Vivos (1968), de George Romero, lá se foram mais de 40 anos de filmes sobre pragas zumbis e epidemias por toxinas ou vírus que enlouquecem e tornam as pessoas violentas, irracionais e canibais.

Sempre acompanhamos militares fazendo cercos a cidades, quarentenas forçadas para tentar manter o restante do mundo são, heróis cientistas ou cidadãos tomados ao mesmo tempo pela coragem e terror para enfrentar as criaturas.

Décadas desse subgênero produziram muitas variações sobre o tema. Mas sempre as narrativas foram focadas nos sobreviventes, militares e cientistas – ou seja, naqueles que ainda tem a racionalidade para enfrentar o irracional e o Mal.

Mas o ponto de vista dos zumbis ou dos contaminados foi esquecido: e se surgisse um filme cuja narrativa fosse centralizada no ponto de vista deles? Sem cientistas ou heróis: apenas pessoas normais que não possuem a menor consciência de que enlouqueceram por meio de um misterioso sinal transmitido pela TV e dispositivos de áudio como CD players e de comunicação como telefones e rádios.

Esse é o argumento do filme O Sinal (The Signal, 2007), com a narrativa mais instigante dentro desse subgênero: entre o horror visceral e o humor negro (que algumas vezes faz lembrar o filme inglês Todo Mundo Quase Morto - Shawn of Dead), o filme borra a fronteira entre a racionalidade e a irracionalidade, entre aqueles que foram afetados e aqueles que aparentemente permanecem sãos.


Por isso, a paranoia só aumenta na medida em que o filme avança – há mortos, agressões e violência por todos os lados. Mas para cada um, seus atos são normais, racionais, obedecendo os parâmetros esperados dos papéis sociais: o marido ciumento que tenta matar qualquer um que supostamente esteja ameaçando sua mulher, a esposa que tenta organizar uma festa de Ano Novo, mesmo com seu marido morto e ensanguentado sentado à mesa e assim por diante.

Para o próprio espectador cresce a dúvida se, afinal, há algum protagonista que não tenha sido contaminado pelo Sinal. Onde está o herói?

Mas percebemos que o filme vai além dessa premissa e é muito mais ambicioso: pretende discutir a própria natureza da sociabilidade e como os meios de comunicação moldam a percepção da realidade. E se os papéis sociais exigem de nós muitas vezes desempenhos brutais e irracionais? E se as mídias forem capazes de criar um véu de ilusão tão espesso que acabamos percebendo essas exigências como lógicas e racionais?

O Filme


 O Sinal começa como um filme-dentro-de-um-filme (narrativa em abismo): assistimos ao que parece ser um desbotado filme de terror dos anos 1970. No momento crucial da ação o filme é interrompido pelo “sinal”, uma espécie de pulsação, com borrão de luzes e feedback. Vemos que o filme estava sendo assistindo por um casal em um quarto escuro – Mya (Anessa Ramsey), sentindo-se culpada por trair o seu marido; e Ben (Justin Welborn), pedindo que Mya largue seu marido e juntos fujam daquela cidade chamada Terminus.


É véspera de Ano Novo quando um forte sinal é transmitido por todas as mídias que nos cercam (celulares, TV, telefone, CD Players, rádio etc.). E o efeito é enlouquecer as pessoas que vêm ou ouvem – tornam-se paranoicas, iradas e com alta sugestionabilidade. Eles começam a assassinar sistematicamente alguém que percebam que supostamente estejam impedindo a própria busca da felicidade. Amigos começam a matar amigos, vizinhos começam a matar vizinhos, cônjuges matam o parceiro e pais matam crianças.

O filme é composto por três segmentos, ou “transmissões”: “Loucos de Amor”, “O Monstro do Ciúmes” e “Fuga de Terminus”. Cada segmento foi dirigido por um diretor diferente, na verdade um experimento no qual a narrativa é passada de um cineasta para outro. O resultado é uma interessante variedade de tons narrativos: terror “gore” visceral e sangrento, comédia, humor negro e thriller de horror.

O primeiro segmento (dirigido por David Brickner) gira em torno de Mya que volta para casa depois do encontro com o amante; o segundo (Jacob Gentry), e mais forte segmento, é do ponto de vista de Lewis (AJ Bowen), marido de Mya, perigosamente enlouquecido pelo sinal; e o terceiro segmento (Dan Bush) acompanha o amante Ben, tentando alcançar Mya antes de Lewis e, depois, fugirem da cidade.

O Sinal não é propriamente um filme de zumbis: ninguém solta espuma pela boca, possui um olhar vazio ou se arrasta pelas ruas deixando para trás pedaços do próprio corpo. Todos parecem ser racionais e movidos até por intenções altruístas.

O desempenho mais fascinante é de Lewis, um exterminador de pragas. Alto, barbudo e de fala mansa e empunhando sua lata de spray de veneno para ratos (transformado em perigosa arma de matar), é a própria personificação da violência criteriosamente racional – Lewis busca Mya não para matá-la, mas para “protegê-la”. Ciumento e possessivo, qualquer pessoa que supostamente se coloque entre ele e sua esposa, será assassinado impiedosamente.


O sinal altera a percepção, aumentando como uma lente a necessidade de cumprir determinados papéis sociais e também a busca da própria felicidade. Tudo parece ser racional para aquele que foi contaminado: se alguém se põe no caminho da felicidade, eu o destruo!

O certo e o errado; o lógico e o racional


 Todos fazem o que parece certo, sem perceberem que o sinal está deformando a percepção. Por isso, o primeiro tema que salta aos olhos no filme é como as mídias que nos rodeiam alteram imperceptivelmente nossa percepção – não para aquilo que é “certo” e “errado”, mas para aquilo que é supostamente “lógico” e “racional”.

Por isso, O Sinal lembra alguns aspectos de Videodrome de David Cronenberg ou o terror japonês Ringu (The Ring). Porém, o filme utiliza o argumento do terror resvalando pelo tema de zumbis para dar um viés mais sócio-psicológico: o sinal contaminante é a metáfora da maneira como as mídias agendam nossos corações e mentes.

A mídia não tem apenas a função ideológica de reforçar a obrigatoriedade dos papéis sociais. Para além dessa função básica, as imagens e sons transmitidos criam uma espécie de realidade aumentada. E sobre essa camada ilusória criamos nossos ideais de felicidade individualistas, nos quais o outro (esposa, vizinho, amigos ou estranhos) só teria duas alternativas: ou facilita ou dificulta a realização desses ideais.


E isso leva ao segundo tema: essa busca individualista e possessiva da felicidade pode parecer lógica e racional no plano pessoal ou micro. Mas no plano macro (social ou econômica) reina o caos, a desordem e a violência.

No plano da economia essa contradição entre micro X macro é bem conhecida: a ação economicamente racional de cada agente (meta, investimentos etc.) pode produzir a desordem no Todo – inflação, aumento de juros, crises cíclicas etc.

E no plano sócio-pessoal, se o ciúme é “racional” para o papel social de marido, no âmbito conjugal pode virar possessão e até violência. E em O Sinal, vísceras e sangue.

Enfim, O Sinal conduz a uma séria questão gnóstica: se para o Gnosticismo a realidade é, em si mesma, um véu ontológico de ilusão, com o advento da realidade aumentada das mídias esse véu tornou-se ainda mais espesso – a própria lógica e racionalidade dos meios que levam a um fim são em si mesmas ilusórias.

E o que fazem as novas tecnologias? Apenas aumentam o poder de imersão na própria ilusão – um véu em 3D, 4D ou IMAX.


Ficha Técnica

Título: O Sinal
Diretor: David Bruckner, Dan Bush, Jacob Gentry
Roteiro: David Bruckner, Dan Bush, Jacob Gentry
Elenco:  Anessa Ramsey, Justin Welborn, AJ Bowen, Sahr Ngaujah, Cheri Christian
Produção: Pop Films, Shoreline Entertainment
Distribuição: Magnolia Films
Ano: 2007
País: EUA

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