Por essa Karl Marx não esperava. Na verdade, Marx sequer suspeitava da capacidade do Capitalismo continuamente se reinventar, dando sucessivos saltos mortais assumindo as suas diversas formas tardias: o nazifascismo para saltar do crash de 1929; sociedade de consumo e Guerra Fria para dar o salto do pós-guerra; a Globalização para dar o salto da financeirização etc.
Tudo para superar a contradição das contradições que, Marx acreditava, levaria o Capitalismo ao túmulo: a lei da taxa de lucro decrescente, paradoxalmente através do seu próprio sucesso: aumento da produtividade pela tecnologização e automação, mudando a composição orgânica do capital – mais precisamente, o decréscimo do trabalho vivo, elemento crucial gerados da mais-valia.
Mas Marx não esperava, e sequer imaginava, a incrível combinação criativa entre o chamado Grande Reset Global do Capitalismo (agenda de reformas econômicas do Fórum Econômico Mundial) e a indústria do entretenimento.
“O mundo está quase todo parcelado, colonizado, conquistado, dividido. Penso nas estrelas, quantos vastos mundos poderemos atingir... eu anexaria os planetas, se pudesse”, suspirava o empresário britânico Cecil Rhodes no início do século XX. Imaginava que a única forma do Capitalismo subsistir seria a colonização de outros mundos - Leia HUBERMAN, Leo, História da Riqueza do Homem, LTC, 2010.
Mas, e se outras civilizações na galáxia estiverem pensando na mesma coisa? E se a ambição de capitalistas terráqueos e alienígenas der “match”? E se o chamado Grande Reset Global do Fórum de Davos for, secretamente, um conluio com ambições colonialistas alienígenas?
Marx não sequer poderia imaginar um livro e sua adaptação cinematográfica Paisagem com Mão Invisível (Landscape with Invisible Hand, 2023), dirigido e adaptado por Cory Finley (Throughbreds, Bad Education) que acompanha um aspirante a pintor adolescente e sua família que lutam para ganhar dinheiro suficiente para manter a própria residência degradada.
Uma vizinhança chafurdada na angústia financeira, condições de vida degradantes e a maioria vivendo dentro de carros ou debaixo de pontes. Os poucos empregos que restaram são precarizados enquanto a forma mais comum de ganhar alguns trocados é selecionar o lixo despejado de naves alienígenas que ocupam o planeta – o que resta inteiro da queda, tentam vender em feiras de pulgas.
Esses aliens são os Vuvv, que jocosamente uma linha de diálogo os descreve como “mesas de centro gosmentas sencientes” – eles observavam o planeta desde a década de 1950, mas se mantiveram à distância. Até perceberem a conjuntura econômica propicia. Foram alegremente recebidos pela elite econômica que viu a oportunidade de aplicar a tecnologia superior Vuvv no reset do Capitalismo: Realidade Virtual, Inteligência Artificial etc.
O resultado foi a concentração acelerada de riqueza numa elite insular que paira acima em luxuosas cidades flutuantes, a serviço dos Vuvvs e sendo excelentemente pagos. A maioria dos que ficaram nas cidades degradadas, nem para serem explorados mais servem – foram progressivamente substituídos pelas IAs.
O mais dramático foram os professores, substituídos por tutores virtuais que ensinam a cultura e história Vuvv – até as escolas desaparecem, substituídas pelas aulas remotas virtuais.
Enquanto a mídia bombardeia mensagem motivacionais sobre empreendedorismo e meritocracia – não crise, mas apenas oportunidades...
Baseado no livro homônimo para jovens adultos de M.T. Anderson, o filme é atravessado pela sátira e senso de humor estranho camp, combinando tensão racial e situações bizarras e surreais onde humanos interagem com as estranhas criaturas gosmentas que parecem ter apenas duas preocupações: explorar e vivenciar o prazer voyeurista de observar a reprodução sexuada humana – os Vuvvs são assexuados, eles apenas “brotam”.
O Filme
A narrativa de Paisagem com Mão Invisível é episódica, pontuada pelas telas do aspirante a pintor adolescente Adam (Asante Blackk) – suas telas mostram o que era a vida desde antes dos Vuvvs ocuparem o planeta e os diferentes episódios que se sucedem na vida resiliente e angustiante da maioria humana.
Os Vuvvs são longe de serem criaturas ferozes. Se assemelham a caranguejos eremitas sem conchas e se comunicam esfregando suas mãos semelhantes a pás – tornaram a maioria da população obsoleta com sua tecnologia avançada, forçando os humanos a buscar formas precárias e indignas de ganhar dinheiro.
Enquanto ainda existiam escolas, Adam se apaixona por uma nova aluna chamada Choloe (Kylie Rogers), e convida sua família em dificuldades e vivendo na rua a ficar na casa degradada da sua família (eles ainda têm sorte de terem uma casa) onde ele, sua mãe Beth (Tiffany Haddish) e sua irmã Natalie (Brooklynn MacKinzie) estão morando.
As tensões surgem entre o pai de Beth e Chloe (Josh Hamilton) e o irmão (Michael Gandolfini) porque os recém-chegados não podem pagar o aluguel. Isso leva Chloe a sugerir uma "transmissão de namoro", onde ela e Adam transmitem sua vida de namoro para um público alienígena pagante - uma espécie de canal YouTube intergaláctico, transmitido através de implantes futuristas – “nodles”. Os Vuvv, que se reproduzem assexuadamente, têm uma fixação voyeurista na cultura de namoro humano e no romance. É tão enervante e sombrio quanto parece.
Logo o esquema começa a dar certo: os espectadores alienígenas crescem e a monetização do canal aumenta. Com o dinheiro podem até comprar “comida de verdade” – a única comida acessível é um composto processado em cubos.
Porém, transmitir ao vivo sentimentos não é fácil, e logo deixa de ser espontâneo. Os Vuvvs descobrem a encenação e respondem com um processo contra o canal. Pedem o dinheiro pago de volta. Para a mãe (uma advogada desempregada de Harvard) conseguir um bizarro acordo: Beth vai viver uma vida conjugal com um jovem Vuvv que vai desempenhar o papel de um pai de uma típica família nuclear do sonho americano – ele é obcecado pelos sitcoms dos anos 1950 sobre felizes famílias conservadoras norte-americanas.
Grande Reset hipo-utópico
Não é preciso muito esforço para perceber o forte comentário social do filme, alinhando-se à tendência atual hipo-utópica da ficção científica - diferente da distopia (onde ainda há um “topos” chamado “futuro” como mundos diferentes dos atuais ou, pelo menos, advertências sobre no quê o mundo atual pode se tornar), na hipo-utopia (no sentido de “futuro insuficiente”) não há mais futuro: o porvir nada mais é do que a projeção dos problemas atuais – a diferença é que no “futuro” eles se transformarão em pesadelos.
A história do professor que se matou ao se ver substituído por uma IA alienígena; Beth, a advogada formada em Harvard obrigada a trabalhar num quiosque que vende sopas; ou então o motorista de uma espécie de Uber da ilha flutuante da elite que é um neurocirurgião – precisa fazer “bicos” porque o que ganha é irrisório. Todos os personagens do filme ressoam a precarização do trabalho no capitalismo ATUAL.
Paisagem com Mão Invisível não é ficção científica stricto sensu, mas uma sátira hipo-utópica: a tecnologia alien é aquela que já está entre nós, com as conhecidas consequências sociais e políticas – exclusão, violenta concentração de riqueza, o abismo cada vez mais profundo da desigualdade e assim por diante.
Mas também o filme ressoa uma conhecida tese conspiratória dos meios de pesquisas ufológicas: será que governos e elites econômicas não só sabem sobre a presença alien nesse planeta como também trabalham em estreita parceria com eles? Será que o salto tecnológico das últimas décadas veio principalmente do contato com a tecnologia avançada extraterrestre?
Ou extrapolando essa teoria conspiratória: será que depois de tantos saltos mortais que o Capitalismo deu para se reinventar e mitigar suas próprias contradições, o seu último salto poderia ser, por assim dizer, intergaláctico?
Lembrando, de forma invertida, a ambição de Cecil Rhodes citada acima – não foi o Capitalismo que anexou os outros planetas, mais foram extraterrestres que forneceram a pedra de toque tecnológica necessária para, mais uma vez, o Capitalismo se revolucionar ao custo social altíssimo.
Karl Marx jamais imaginaria que a Economia Política se tornaria uma disciplina híbrida com a ficção científica...
Ficha Técnica |
Título: Paisagem com Mão Invisível |
Diretor: Cory Finley |
Roteiro: Cory Finley, M.T. Anderson |
Elenco: Asante Blackk, Tiffany Haddish, Kyle Rogers, Brooklyn MacKinzie, Josh Hamilton |
Produção: Annapurna Pictures, MGM |
Distribuição: MGM |
Ano: 2023 |
País: EUA |