Muitas vezes acusado de fazer filmes “vazios”
ou “sem brasilidade”, em pleno processo da abertura política na ditadura
militar o cineasta Walter Hugo Khouri escreveu e dirigiu o filme “As Filhas do Fogo”
(1978) com um casal lésbico como protagonista em uma clássica trama gótica na qual os universos
dos vivos e dos mortos se encontram, sob a trilha musical sombria e hipnótica
do maestro Rogério Duprat. Um momento onde a abertura a temas espiritualistas,
místicos e parapsíquicos andou ao lado da abertura política brasileira. Um
filme que vale à pena ser revisto, principalmente pela forma como Khouri
constrói uma trama que aspira à universalidade nas locações de Gramado e
Canela/RS – objetos, personagens e a natureza circundante que parecem encarnar
arquétipos tanto freudianos quanto gnósticos. Tudo isso no momento em que a
ditadura militar desmontava o cinema brasileiro por meio da Embrafilmes.
No final dos anos 1970 o Brasil passava pelo
processo de abertura política que marcaria o início do fim da Ditadura Militar.
Mas a abertura não era apenas política. Era também místico-espiritualista.
Parapsicologia e espiritualismo começavam a ganhar espaço na mídia brasileira
com programas na TV mostrando o israelense Uri Geller ou o inglês Thomas Green
Morton entortando utensílios de cozinha com o poder da mente; reportagens
especiais sobre as fotos Kirlian que supostamente mostravam a aura humana; além
das edições da revista Planeta da
editora Três que popularizava temas como o Espiritismo, misticismo, magia,
ectoplasmaz, materialização de espíritos e ufologia.
Preparando-se para filmar seu 17o
filme e aproveitando o clima no qual esses temas começaram a despertar
interesse científico, o diretor Walter Hugo Khouri resolveu aprofundar seu
filme anterior Anjo da Noite (1974, também
um marco na cinematografia do terror nacional) com o apoio da Editora Três
contando com a promoção da revista Planeta,
especializada em temas esotéricos e religiosos – na época a revista criou um
concurso no qual os melhores autores de textos comentando o filme ganhariam uma
viagem para qualquer país do mundo, recebendo 10.000 cruzeiros para as despesas.
O resultado foi múltiplo: no filme As Filhas do Fogo (1978) Khouri
conseguiu unir o cinema fantástico, homossexualidade feminina, gótico, parapsicologia,
animismo e solidão - vozes de pessoas mortas registradas em equipamentos
eletrônicos, premonição, percepção extra-sensorial, elementais e universos
paralelos coexistem de forma dramática e verossímil.
Mas ao se tratar de um filme brasileiro que
trata de temas tão espiritualistas, Khouri evitou cair naquilo que Osvaldo de
Andrade chamava de “macumba para turista”, descambando para o folclore.
Em busca do “universal”
Ao contrário, o filme persegue uma
universalidade: em primeiro lugar a narrativa não faz qualquer referencia ao
local ou onde a história se passa. O diretor usou locações em Gramado e Canela,
Rio Grande do Sul, para alcançar a iconografia mais universal do gênero – casas
góticas, florestas negras, névoas e até neve. O filme não faz nenhuma concessão
à brasilidade.
E ainda a trilha musical atemporal de Rogério
Duprat (maestro brasileiro expoente do movimento da Tropicália, aproximando os
arranjos clássicos do pop) capaz de criar uma atmosfera misteriosa, ao mesmo
tempo gélida, hipnótica e onírica.
Essa busca de um tom mais universal, a
narrativa eleva os personagens (vivos e mortos) à condição gnóstica de
Estrangeiros: as vozes dos mortos chamam os vivos como pedissem ajuda,
lamentam, sofrem. Enquanto os vivos vivem uma mesma condição de estranhamento e
alienação – tanto em relação à família como em relação à própria Natureza –
parece ser sempre hostil, claustrofóbica, como se quisesse prender a todos.
E a própria condição homossexual das
protagonistas, cujo lesbianismo criará a típica tensão Edipiana dos filmes
góticos e terror – a matriz edipiana, o gerador principal dos conflitos
psíquicos no gênero.
O Filme
Diana
(Paola Morra), órfã da mãe Sílvia (Selma Egrei) e abandonada pelo pai, depois
de muitos anos, volta à casa de campo da família. Ela aguarda a visita da sua
namorada Ana (Rosina Malbouisson). São recebidos pela governanta Mariana (Maria
Rosa).
De repente chega um viajante e pedinte
(Serafim Gonzalez), sujo e faminto pedindo apenas comida e um lugar para
descansar por pouco tempo. O que nos faz lembrar do filme Borgman (2013) no qual um pedinte chega em uma casa para aos poucos
destruir a paz pequeno-burguesa de uma família – sobre esse filme clique
aqui. De certa forma ele
terá um papel parecido, mas não para desestabilizar a ordem de uma família. Mas
a própria ordem das relações entre os vivos e os mortos.
Entre os passeios pela floresta ao redor e
lembranças da infância de Diana (o avô alemão, o pai obcecado pela I e II
Guerra Mundial, os nomes dos empregados que refletem a colonização europeia, um
velho revólver da I Guerra Mundial etc.), ela reencontra a vizinha Dagmar
(Karen Rodrigues) – uma soturna estudiosa de registros de vozes de pessoas
falecidas, captadas em fitas cassete enquanto caminha com um captador de áudio
profissional.
Na casa de Dagmar encontram a Tia Gertrudes
que lhes informa que está próxima a data da tradicional Festa dos Colonos – uma
estranha festa com motivos pagãos e germânicos. Gertrudes se oferece para confeccionar
uma fantasia para Diana.
As Filhas do
Fogo começa a construir a
tensão a partir da governanta Mariana (a única que nasceu lá e está bem
estabelecida). Todos ao redor são “estrangeiros”, que experimentam uma estranha
sensação de alienação e mal estar – Ana, e a sensação constante de estar sendo
observada; Diana e as memórias da mãe e estranhas vozes captadas pelo gravador
de Dagmar como se a chamassem do além; o estranho viajante pedinte que aos
poucos se infiltra no cotidiano daquela casa de campo.
E a floresta escura ao redor ao som de uma
trilha musical, sugerindo alguma coisa entre o realismo, o fantástico, delírio
e sonho.
As Filha do
Fogo nos oferece uma
verdadeira lição de como o horror pode ser construído sem qualquer efeito
especial, mas apenas assentado na edição, montagem, deslocamentos de câmera e
uma sugestiva trilha musical. O que é demonstrado em duas sequências chave do
filme: o momento em que Dagmar revela as vozes dos mortos contidas em gravações
da floresta e no final onde a mãe finalmente se materializa para a filha – a
beleza assombrosa de Selma Egrei, que jamais fala uma linha de diálogo. Mas
apenas sua presença em um vestido negro e o olhar são capazes de gelar a alma.
Elementos de um clássico gótico
Walter Hugo Khouri consegue nos anos 1970,
com os parcos recursos de produção na época da Embrafilme e o desmonte do
cinema brasileiro pela ditadura militar, construir um clássico filme gótico e
gnóstico – cult, é verdade, com pouco apelo popular.
Primeiro, a condição gnóstica de estrangeiros
tanto dos vivos quanto dos mortos: há uma espécie de espelhamento entre os dois
mundos no filme. O mundo dos vivos parece espelhar a miséria espiritual dos
mortos. Por isso, a tensão da narrativa cresce na medida em que os dois planos
aos poucos vão se confundindo.
Todos parecem estar ali apenas de passagem.
Querem libertar-se, mas alguma coisa prende a todos. Aqui temos o elemento
essencialmente gnóstico em uma narrativa: há um mundo que nos envolve e nos
aprisiona, os personagens sentem o mal estar e estranhamento sem conseguir
verbaliza-los.
Dessa maneira é introduzida o segundo
elemento de um clássico gótico: a matriz edipiana e freudiana. A mãe falecida
que aparece vestindo a mesma roupa de quando estava grávida de Diana, um plano
de câmera que focaliza uma folhagem de heras em uma gaiola na parede que, na
sequência final, envolverá uma casa espectral que impede a filha sair diante de
uma assombrosa mãe materializada, o espelhamento entre mãe e filha (ambas vivem
relações lesbianas, nos dois planos), e uma sexualidade latente que jamais se
realiza entre o casal de protagonistas “estrangeiros”. Apenas a bem
estabelecida governanta Mariana terá uma noite de sexo com o misterioso
viajante pedinte.
Por isso, As
Filhas do Fogo merece ser revisitado. É um marco na cinematografia de
horror nacional. Embora Walter Hugo Khouri fosse sempre criticado por fazer
apenas “filmes vazios” e sem “brasilidade”, hoje reconhece-se a busca da
universalidade dos filmes do diretor. E principalmente como Khouri tinha uma
predileção e o encantamento pelo protagonismo feminino.
No caso de As Filha do Fogo, o engajamento na temática GLS em plena ditadura
militar e a figura da mãe que, de tão idealizada, transforma-se em uma sombra
envolvendo os vivos.
Cópias desse filme hoje se encontram em
arquivos na Internet ripados de velhos vídeos VHS gravados diretamente da TV na
exibição dentro do programa Made In Brazil que era exibido na Band nos anos 80
e 90.
Abaixo, uma cópia completa do YouTube.
Abaixo, uma cópia completa do YouTube.
Ficha Técnica |
Título:
As Filhas do Fogo
|
Diretor:
Walter Hugo Khouri
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Roteiro:
Walter Hugo Khouri
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Elenco:
Paola Morra, Karin Rodrigues, Rosina
Malbouisson, Maria Rosa, Serafim Gonzalez, Selma Egrei
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Produção: Editora
Três, Lynx Filmes
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Distribuição:
Embrafilme
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Ano:
1978
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País:
Brasil
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