O mundo da Moda
como máquina que tritura a inocência e juventude de modelos é um tema nada novo
no cinema. Mas ao contar a história de uma modelo iniciante que entra no
universo de estilistas e fotógrafos de Los Angeles que mais parece um clube
soturno relacionado com o ocultismo de Aleister Crowley ou o satanismo de
Charles Manson, o filme “Demônio de Neon” (2016) aproxima-se da mitologia gnóstica –
rostos robóticos e sorrisos frios de um mundo sem vida que necessita sugar
vitalidade e inocência dos mais jovens. Um mundo que necessita do neon e
maquiagem para criar a aparência de glamour e brilho, para atrair a juventude
que ponha em funcionamento um mundo que aprisiona a todos. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende
O neon é um gás
que ocupa apenas 0,00046% da atmosfera do planeta. Foi descoberto em 1898 e
começou sua carreira como um produto orgânico para, uma década depois,
transformar-se na metáfora de tudo aquilo que é artificial e superficial –
tubos coloridos com o gás já eram utilizados em letreiros comerciais em 1912 na
França: Opera de Paris, bancos, lojas de luxo e até mesmo igrejas. Era símbolo
de sofisticação.
Mais tarde, o
neon desapareceu na sociedade de consumo Pós-Guerra, associando-se ao visual
decadente de motéis baratos e bares de beira de estrada suspeitos.
Mas o neon
reaparece décadas depois nos anos 1970-80 com a estética pós-moderna new wave
associado a um futurismo-retrô, frivolidade e superficialidade. Passou a ser
identificado com o mundo do design, moda e decoração.
Filmes como
underground Liquid Sky (1982), sobre
o submundo de modelos em Nova York, foi mais além mostrando não só como o neon
se incorporou à própria maquiagem de modelos e desfiles, mas como essa
associação possui um simbolismo mortício, fúnebre, beirando o horror – como se
o brilho tentasse dar vitalidade a personagens esquálidos, heroin heroes sem futuro, à beira da morte final – sobre o filme clique aqui.
O
filme Demônio de Neon é uma fábula sobre o
mundo da alta moda, com inflexão de horror, sobre uma jovem modelo iniciante em
Los Angeles em desfiles e lounges
adornados pelo neon no qual a maquiagem e cirurgias plásticas são os elementos
centrais que conferem uma superficial impressão de vitalidade ou élan.
A
ironia do filme do diretor holandês Nicolas Winding Refn (Drive, Bronson e a trilogia Pusher)
está em torno da maquiagem: se nas suas origens está associada à mitologia e
ritual (rituais xamânicos, cultos funerários ou cultos à fertilidade), isto é,
formas dos vivos criarem um canal de contato com os mortos ou mundos
espirituais, agora é a forma dos mortos-vivos criarem uma aparência de
vitalidade e juventude.
Tudo
gira em torno de Jesse, a neófita no mundo altamente competitivo e intoxicado
pela inveja, ressentimento, medo e ciúmes. “Entrando numa sala, é como se no
meio do inverno você fosse o Sol”, diz a certa altura uma modelo invejosa para
Jesse, menor de idade mas que a agência de modelos diz ter 19 anos.
Em
Neon Demon, o mundo da Moda tende à morte precoce: “quando você completa 21,
nessa indústria você se torna irrelevante”, diz uma modelo. Em um mundo onde
tudo é manufaturado, a beleza natural e espontânea de Jesse é a faísca de vida
ambicionada por fotógrafos e estilistas.
Por
isso, o filme ingressa em um mitológico tema gnóstico – o mundo material é
decadente, pálida cópia da Plenitude. Por isso, o Demiurgo necessita arrancar
dos humanos sua “fagulha espiritual” (alegria, boa-fé, brilho, vitalidade,
confiança) para manter em funcionamento um cosmos que tende à entropia. Neon e
maquiagem tentam esconder essa imperfeição ontológica do mundo, iscas que
atraem a confiança de pessoas como Jesse.
Jesse
pensa que poderá manter o controle da narrativa (“todas injetam coisas em si,
morrem de fome, torcem, rezam para parecerem uma versão em segunda mão de
mim”). Mas descobrirá, da pior forma possível, que um moderno conto de fadas
pode literalmente devorá-la.
O Filme
Demônio de Neon abre com uma sequência que dará
o tom ambíguo da narrativa: vemos Jesse (Elle Flanning) em um vestido tubinho
azul-elétrico, reclinada em um sofá, pálida e encharcada de sangue. Estamos em
um cena de crime ou em um editoral fotográfico de moda?
Com
essas fotos, tiradas pelo seu amigo Dean (um fotografo também aspirante na
indústria da moda), monta o book que será o cartão de visitas em uma grande
agência de modelos em LA, que lhe promete uma carreira internacional.
Em
meio a sorrisos endurecidos pela competitividade do meio, rostos robóticos com
olhares metálicos, o olhar juvenil e o jeito de adolescente vulnerável logo se
tornam objeto de fetiche de desejos obscuros.
Enquanto
todas as modelos se esfalfam em cirurgias plásticas e dietas insanas, Jesse tem
uma beleza natural. Por isso, olhando para o céu noturno aberto, ela acha que a
Lua é um olho que a observa. Ela sabe que é desejada, e que, por isso, também
se tornará uma predadora daquele meio, assumindo o controle da sua vida e do
sucesso.
Uma
maquiadora chamada Ruby (Jena Malone) logo se torna a amiga confidente de
Jesse. Mas logo percebemos que há nela pretensões obscuras. A personagem de
Ruby é uma das chaves de compreensão do filme: sua jornada de trabalho
divide-se em dois lugares aparentemente opostos – maquiar modelos para desfiles
e editoriais de moda e maquiar mortos em um necrotério preparando-os para o
último adeus dos familiares.
Onírico e realista
Por
isso a narrativa de Demônio de Neon é ao
mesmo tempo onírica e realista: cercada de espelhos e neons, pirâmides
misteriosas, estroboscópios vermelhos e festas ocultistas que lembram Stanley
Kubrick em De Olhos Bem Fechados.
Parece que Jesse está entrando em algum clube soturno futurista ao som retro do
synth-pop dos anos 1980.
Muitas
cenas jogam com a exposição do cruel mercado da moda, com modelos vestindo
unicamente underwear e situações
humilhantes de entrevistas, esperas e demissões arbitrárias, forçadas a
suportar o caminho da vergonha. A trilha musical retro-futurista, a profusão de
cores primárias, objetos pontiagudos e pirâmides lembrando o cinema dos anos
1970 de Dario Argento passa uma sensação de que todos vivem entre a condição de
robôs ou mortos-vivos.
E
Jesse é o “Sol que ilumina o inverno” – parece que aquele clube soturno (que
parece a todo tempo evocar alguma coisa entre o ocultismo Aleister Crowley,
Drácula e o satanismo ritual de Charles Manson) pretende de alguma forma
absorver a vitalidade de Jesse. Neons e maquiagem são apenas simulações de
beleza e vida. Eventualmente necessita de alguma verdade e espontaneidade
representada por modelos iniciantes como Jesse. Parece que o desejo obscuro que
todos acalentam é, de alguma forma, absorver sua vitalidade.
Thanatos aprisiona Eros
O
tema da exploração consumista da juventude é tão antigo quanto as colinas de LA
que emolduram o drama de Jesse. Demônio de Neon poderia ser mais um filme a explorar esse tema, porém a narrativa faz
uma abordagem mitológica ou arquetípica: ciclos lunares, o arquétipo do espelho
e o seu duplo, pirâmides misteriosas, estilistas e estranhas modelos que mais
parecem fazer parte de alguma irmandade ocultista.
Por
isso, Demônio de Neon aproxima-se da
mitologia gnóstica sobre demiurgos e arcontes aprisionando a raça humana no
cosmos material em busca da fagulha espiritual que pulsa dentro de cada um de
nós, para colocar o mundo físico em
funcionamento. Morte dominando a vida, Thanatos aprisionando Eros.
Assim
como em toda sociedade de consumo e indústria de entretenimento modelos mortos
e abstratos de sedução e prazer se oferecem como iscas para extrair de nós não
só dinheiro, mas principalmente o élan espiritual.
Demônio de Neon é uma fábula com um moral
sombria: assim como Jesse, acreditamos que temos nossas vidas e o mundo na
palma da mão – tudo seria apenas uma questão de querer, acreditar, ter otimismo
e confiança. Mas não percebemos que é exatamente essa vitalidade que perpetua
um mundo inautêntico que nos aprisiona. Assim como um rato correndo numa roda spinner, preso no interior de uma gaiola,
diante do olhar atento do seu dono.
Ficha Técnica |
Título:
Demônio de Neon
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Diretor:
Nicolas Winding Refn
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Roteiro:
Nicolas Windin Refn
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Elenco:
Elle Fanning, Christina Hendricks, Jena
Malone, Keanu Reeves
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Produção:
Space Rocket Nation, Bold Films
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Distribuição:
California Filmes
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Ano:
2016
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País:
França, Dinamarca, EUA
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