Poucos meses
depois da suspeita de ter matado a própria namorada, Nancy Spungen, o baixista
da banda punk Sex Pistols, Sid Vicious, morreu numa overdose de heroína aos 21
anos. O que lhe valeu um lugar no panteão dos ícones trágicos, ao lado de James
Dean, Marilyn Monroe e Elvis Presley. Nele, lixo e fúria se encontraram em um
drama muito maior do que a história de um menino que não estava preparado para
a fama. “Sid & Nancy – O Amor Mata” (1986), de Alex Cox, mais do que um
Romeu e Julieta entre cuspes e palavrões, expõe um drama arquetípico para todas
as sociedades: o drama gnóstico do último grito de revolta do jovem antes de
ser sacrificado nos rituais de passagem para a vida adulta sem esperança. E
como a Luz espiritual do jovem (alegria, confiança, boa fé, fúria e revolta) é
roubada como combustível que dá vida a uma indústria de entretenimento vazia,
assim como mostrado em filmes gnósticos como “Show de Truman” e “Matrix” –
protagonistas prisioneiros para servirem de estoque de energia para manter funcionando
seja um reality show ou um mundo virtual.
Muito antes da
Internet e redes sociais, nos anos 1970 as gravadoras sempre tinham um freak remunerado de plantão,
invariavelmente chapado de drogas e antenado nas novas tendências do rock e do
pop. Séries como Vinyl, da HBO,
mostram como esses freaks
participavam de reuniões com executivos bem “caretas”. Eram fundamentais na
descoberta de novas bandas e talentos,
minas de ouro para as gravadoras.
Até o momento em que o empresário Malcolm
McLaren, dono de uma bizarra loja de roupas sadomasoquistas chamada Sex em
Kings Road, Londres, e de bandas covers do The
Who, percebeu que esses freaks
poderiam se rebelar, e deixar de ser meros cães farejadores da indústria
fonográfica.
Percebeu uma
comunhão entre os jovens que frequentavam sua loja: jovens que vestiam roupas rasgadas e
perfuradas por alfinetes, cortavam os cabelos de um jeito esquisito,
contestavam instituições como a monarquia e a Igreja e desprezavam o elaborado
rock progressivo e clássico.
Era início de 1975 e McLaren via
nesses jovens entediados e desajustados ecos de um movimento surgido em casa
noturnas de Detroit e Nova York com bandas como Ramones e MC5 e nomes como Iggy
Pop nos EUA. Era um rock de garagem e visceral que logo seria chamado de Punk.
Já em 1977, MacLaren pressentiu a
estagnação da cena do Punk Rock pela repetição das mesmas atitudes nas quais a
ideologia anarquista logo se esvaziaria na rebeldia sem causa. Ele viu em um fã
da sua banda punk Sex Pistols a
imagem perfeita para o estilo e que poderia dar a virada pop: era John Ritchie,
conhecido por Sid Vicious, cuja agressividade, imprevisibilidade e
inconsequência compensavam sua falta de talento musical – não sabia tocar o
baixo.
Sid Vicious e Nancy Spungen em 1978 |
Segundo relatos da época, Sid Vicious era
um completo alienado, desajustado, desempregado, silencioso, fechado, sem falar
coisa com coisa. Em seu talento empresarial, McLaren viu nele a possibilidade
de um novo script para o Punk, visceral, uma “bomba atômica em potencial”.
Sid
& Nancy - O Amor Mata,
de Alex Cox (Straight To Hell, Repo Man),
é um filme sobre tumulto, violência, amor e dor. Narra a meteórica trajetória
de Sid Vicious, a sua ascensão a ícone do Sex
Pistols e do próprio Punk Rock, o turbulento romance com a groupier
norte-americana Nancy Spungen temperado com muita heroína, até a suspeita de
ter assassinado a própria namorada e a morte por overdose aos 21 anos.
Romeu e Julieta entre cuspes e
palavrões
Alex Cox faz questão de mostrar que por baixo
do couro e correntes, camisetas rasgadas e botas negras de aço há uma relação
basicamente convencional entre uma mulher ambiciosa e um homem que ainda era um
menino.
Porém, há um
drama muito maior do que uma história de Romeu e Julieta traduzida por cuspes e
palavrões – há um drama arquetípico na ascensão e morte de Sid Vicious, tão
universal que o transformou em ícone pop, no mesmo panteão de Elvis Presley,
Marilyn Monroe e James Dean.
Um drama
gnóstico no qual, seja a indústria do entretenimento ou o próprio cosmos,
necessitam confinar o ser humano em scripts ou estruturas vazias para extrair
dele fagulhas de Luz que ponham em movimento sistemas caóticos constantemente
ameaçados pela entropia e morte. Pessoas que, ao seu tempo, são pinçadas do
anonimato por suas características únicas (vitalidade, boa fé, alegria,
entrega, espontaneidade etc.) para dar energia a estruturas ocas e sem vida.
Mas também
angústia, raiva e fúria, energias da revolta juvenil que, no caso do Punk Rock,
os demiurgos do entretenimento descobriram que também poderia ser o combustível
de uma cena pop que, nos anos 1970, tendia rapidamente para a inércia e morte.
Na trajetória
de Sid Vicious um drama microcósmico e macrocósmico se encontraram. Assim como
no drama de tantos outros tantos anônimos.
O Filme
Na primeira
sequência acompanhamos policiais e investigadores invadindo o apartamento
número 100 do decadente Chelsea Hotel em Nova York. Lá encontram Sid Vicious
(Gary Oldman) catatônico sentado na cama, mãos ensanguentadas e uma faca na
mão. No outro cômodo, o corpo inerte de Nancy Spungen – Chloe Webb. Suspeito
por assassinato, foi liberado sob fiança. As evidências é que a morte não foi
deliberada, mas que Nancy e Sid foram vítimas de um desses acidentes
desordenados que sempre ocorrem com toxicodependentes.
O filme
retrocede para os tempos em que os Sex
Pistols eram a banda mais infame do mundo e o vocalista Johnny Rotten e o
recém-chegado à banda Sid Vicious viviam no apartamento de Linda Ahsby, uma
prostituta dominatrix. Lá, Vicious conheceu Nancy, uma stripper de Nova York
cuja razão de viver era ir para a cama com roqueiros famosos.
Entre conflitos
por drogas e dinheiro, logo cresceu entre Sid e Nancy uma estranha relação
afetiva: ele, orgulhoso por ter uma namorada de Nova York. E para ela, Sid era
alguém que ajudava a lembra-la que ainda estava viva entre um coquetel e outro
de drogas.
Cox retrata
muito bem a presunção Punk – a rejeição total à sociedade convencional por meio
do seguinte credo: “Tenho um problema, e o problema é você!”. Para os Pistols ficarem frente à frente com uma
turba de jovens sem emprego, educação e nenhuma oportunidade, deveriam ser mais
violentos e negativos do que seus seguidores.
O filme retrata
como Sid Vicious era alguém provinciano, alienado e raivoso que lhe foi
entregue a fama e uma certa quantidade de poder e dinheiro. Mas,
paradoxalmente, o seu sucesso dependia de estar sempre fodido: nos shows, os
fãs jogavam papelotes de drogas para Vicious, enquanto ele tentava tocar o
baixo. Queriam vê-lo morrer numa overdose, ao vivo. A mesma coisa viveu David
Bowie (um dos inspiradores do visual Punk) – o público esperava que um dia ele
morresse no meio de um show.
Bowie fugiu de
tudo isso auto exilando-se em Berlim.
Mas Sid Vicious se dirigiu para o olho do furacão (Nova York), ao lado de
Nancy, após a última turnê dos Sex Pistols em 1978, nos EUA.
Um drama gnóstico
O leitor do Cinegnose certamente já deve ter
assistido aos filmes gnósticos clássicos Show
de Truman e Matrix. Em ambos os
filmes, a razão pela qual os protagonistas são prisioneiros (no primeiro, um
reality show e no segundo, o mundo virtual da Matrix) é porque seus demiurgos
(o diretor do reality show e as máquinas que conceberam a Matrix) querem
extrair deles algum tipo de energia vital – a alegria de Truman “que inspira
milhões” e o élan vital dos corpos em suspensão em incubadoras que funcionam
como pilhas que mantêm a Matrix em funcionamento.
Esse drama
remete a arquetípica cosmologia gnóstica: uma divindade que decaiu (o Demiurgo)
cria um cosmos material imperfeito e vazio que necessita das partículas de Luz
arrancada dos humanos para por o universo em funcionamento. Prisioneiros nesse
universo e seduzidos pela ilusão, estão alheios ao próprio drama cósmico que os
cerca.
A indústria do
entretenimento é uma dessas ilusões cujos arcontes que a gerenciam necessitam
igualmente da luz espiritual dos humanos para dar vida a scripts, clichês e
estruturas vazias e sem vida dos seus produtos. No campo do entretenimento, o
drama micro e macrocósmico se encontram.
Desde o
Pós-Guerra, com o decorrente crescimento da sociedade de consumo, o jovem foi a
grande descoberta dessa indústria como um vasto estoque de energia disponível
para por uma indústria em funcionamento – o culto à juventude, à novidade como
um fim em si mesmo: tudo que é novo é moralmente bom; ao contrário, tudo que
for velho é mau.
A Luz
espiritual jovem oferece alegria, confiança, entrega, vitalidade, boa fé,
esperança etc.
Mas também,
fúria, raiva, revolta, angústia, melancolia e depressão da adolescência, quando
o jovem pressente que será oferecido em sacrifício para os rituais de passagem
para a vida adulta sem esperanças.
Desde 1774,
quando Wolfgang von Goethe publicou o best-seller Os Sofrimentos do Jovem
Werther, cujo protagonista se mata, para depois ser imitado por inúmeros jovens
leitores (por isso, o livro foi banido em vários países europeus), a indústria
do entretenimento, a cada década, cria novas tendência para explorar essas
tendências depressivas e de revolta nos jovens: o Punk e o Glam Rock de David
Bowie nos anos 1970; o Dark pós-punk nos 80’s; o Gótico de Marilyn Mason e a
revolta grunge do Nirvana nos 90’s; e nos anos recentes Emos, vampiros
melancólicos da franquia Crepúsculo e
as distopias teen de filmes como Jogos Vorazes.
Por isso, ao
assistirmos ao filme Sid & Nancy,
talvez não choremos por Vicious ou Spungen, mas talvez por todos nós que fomos
colocados em um mundo onde seja possível que as pessoas se tornem tão
infelizes. Não por excesso de auto-indulgência, mas porque o drama de Sid
Vicious é muito maior do que a história de um menino que não estava preparado
para a fama, assim como tantos como Kurt Cobain ou mesmo James Dean.
É o drama
gnóstico do grito do último momento de raiva e fúria da juventude, até ser
sacrificada e enquadrada no mundo adulto, enquanto sua energia é roubada para
manter em funcionamento a própria prisão que nos condena.
Ficha Técnica |
Título:
Sid & Nancy – O Amor Mata
|
Diretor:
Alex Cox
|
Roteiro:
Alex Cox, Abbe Wool
|
Elenco:
Gary Oldman, Chloe Webb, David Hayman,
Andrew Schofield
|
Produção: Initial
Pictures, Zenith Entertainment
|
Distribuição:
Samuel Goldwyn Company
|
Ano:
1986
|
País:
Reino Unido
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