sexta-feira, novembro 18, 2016

Em "Sid & Nancy" lixo e fúria no drama gnóstico do Punk Rock


Poucos meses depois da suspeita de ter matado a própria namorada, Nancy Spungen, o baixista da banda punk Sex Pistols, Sid Vicious, morreu numa overdose de heroína aos 21 anos. O que lhe valeu um lugar no panteão dos ícones trágicos, ao lado de James Dean, Marilyn Monroe e Elvis Presley. Nele, lixo e fúria se encontraram em um drama muito maior do que a história de um menino que não estava preparado para a fama. “Sid & Nancy – O Amor Mata” (1986), de Alex Cox, mais do que um Romeu e Julieta entre cuspes e palavrões, expõe um drama arquetípico para todas as sociedades: o drama gnóstico do último grito de revolta do jovem antes de ser sacrificado nos rituais de passagem para a vida adulta sem esperança. E como a Luz espiritual do jovem (alegria, confiança, boa fé, fúria e revolta) é roubada como combustível que dá vida a uma indústria de entretenimento vazia, assim como mostrado em filmes gnósticos como “Show de Truman” e “Matrix” – protagonistas prisioneiros para servirem de estoque de energia para manter funcionando seja um reality show ou um mundo virtual.

Muito antes da Internet e redes sociais, nos anos 1970 as gravadoras sempre tinham um freak remunerado de plantão, invariavelmente chapado de drogas e antenado nas novas tendências do rock e do pop. Séries como Vinyl, da HBO, mostram como esses freaks participavam de reuniões com executivos bem “caretas”. Eram fundamentais na descoberta de novas bandas e  talentos, minas de ouro para as gravadoras.

 Até o momento em que o empresário Malcolm McLaren, dono de uma bizarra loja de roupas sadomasoquistas chamada Sex em Kings Road, Londres, e de bandas covers do The Who, percebeu que esses freaks poderiam se rebelar, e deixar de ser meros cães farejadores da indústria fonográfica.

Percebeu uma comunhão entre os jovens que frequentavam sua loja: jovens que vestiam roupas rasgadas e perfuradas por alfinetes, cortavam os cabelos de um jeito esquisito, contestavam instituições como a monarquia e a Igreja e desprezavam o elaborado rock progressivo e clássico.

Era início de 1975 e McLaren via nesses jovens entediados e desajustados ecos de um movimento surgido em casa noturnas de Detroit e Nova York com bandas como Ramones e MC5 e nomes como Iggy Pop nos EUA. Era um rock de garagem e visceral que logo seria chamado de Punk.

Já em 1977, MacLaren pressentiu a estagnação da cena do Punk Rock pela repetição das mesmas atitudes nas quais a ideologia anarquista logo se esvaziaria na rebeldia sem causa. Ele viu em um fã da sua banda punk Sex Pistols a imagem perfeita para o estilo e que poderia dar a virada pop: era John Ritchie, conhecido por Sid Vicious, cuja agressividade, imprevisibilidade e inconsequência compensavam sua falta de talento musical – não sabia tocar o baixo.

Sid Vicious e Nancy Spungen em 1978

Segundo relatos da época, Sid Vicious era um completo alienado, desajustado, desempregado, silencioso, fechado, sem falar coisa com coisa. Em seu talento empresarial, McLaren viu nele a possibilidade de um novo script para o Punk, visceral, uma “bomba atômica em potencial”.

Sid & Nancy - O Amor Mata, de Alex Cox (Straight To Hell, Repo Man), é um filme sobre tumulto, violência, amor e dor. Narra a meteórica trajetória de Sid Vicious, a sua ascensão a ícone do Sex Pistols e do próprio Punk Rock, o turbulento romance com a groupier norte-americana Nancy Spungen temperado com muita heroína, até a suspeita de ter assassinado a própria namorada e a morte por overdose aos 21 anos.

Romeu e Julieta entre cuspes e palavrões

 Alex Cox faz questão de mostrar que por baixo do couro e correntes, camisetas rasgadas e botas negras de aço há uma relação basicamente convencional entre uma mulher ambiciosa e um homem que ainda era um menino.

Porém, há um drama muito maior do que uma história de Romeu e Julieta traduzida por cuspes e palavrões – há um drama arquetípico na ascensão e morte de Sid Vicious, tão universal que o transformou em ícone pop, no mesmo panteão de Elvis Presley, Marilyn Monroe e James Dean.

Um drama gnóstico no qual, seja a indústria do entretenimento ou o próprio cosmos, necessitam confinar o ser humano em scripts ou estruturas vazias para extrair dele fagulhas de Luz que ponham em movimento sistemas caóticos constantemente ameaçados pela entropia e morte. Pessoas que, ao seu tempo, são pinçadas do anonimato por suas características únicas (vitalidade, boa fé, alegria, entrega, espontaneidade etc.) para dar energia a estruturas ocas e sem vida.


Mas também angústia, raiva e fúria, energias da revolta juvenil que, no caso do Punk Rock, os demiurgos do entretenimento descobriram que também poderia ser o combustível de uma cena pop que, nos anos 1970, tendia rapidamente para a inércia e morte.

Na trajetória de Sid Vicious um drama microcósmico e macrocósmico se encontraram. Assim como no drama de tantos outros tantos anônimos.

O Filme


Na primeira sequência acompanhamos policiais e investigadores invadindo o apartamento número 100 do decadente Chelsea Hotel em Nova York. Lá encontram Sid Vicious (Gary Oldman) catatônico sentado na cama, mãos ensanguentadas e uma faca na mão. No outro cômodo, o corpo inerte de Nancy Spungen – Chloe Webb. Suspeito por assassinato, foi liberado sob fiança. As evidências é que a morte não foi deliberada, mas que Nancy e Sid foram vítimas de um desses acidentes desordenados que sempre ocorrem com toxicodependentes.

O filme retrocede para os tempos em que os Sex Pistols eram a banda mais infame do mundo e o vocalista Johnny Rotten e o recém-chegado à banda Sid Vicious viviam no apartamento de Linda Ahsby, uma prostituta dominatrix. Lá, Vicious conheceu Nancy, uma stripper de Nova York cuja razão de viver era ir para a cama com roqueiros famosos.

Entre conflitos por drogas e dinheiro, logo cresceu entre Sid e Nancy uma estranha relação afetiva: ele, orgulhoso por ter uma namorada de Nova York. E para ela, Sid era alguém que ajudava a lembra-la que ainda estava viva entre um coquetel e outro de drogas.


Cox retrata muito bem a presunção Punk – a rejeição total à sociedade convencional por meio do seguinte credo: “Tenho um problema, e o problema é você!”. Para os Pistols ficarem frente à frente com uma turba de jovens sem emprego, educação e nenhuma oportunidade, deveriam ser mais violentos e negativos do que seus seguidores.

O filme retrata como Sid Vicious era alguém provinciano, alienado e raivoso que lhe foi entregue a fama e uma certa quantidade de poder e dinheiro. Mas, paradoxalmente, o seu sucesso dependia de estar sempre fodido: nos shows, os fãs jogavam papelotes de drogas para Vicious, enquanto ele tentava tocar o baixo. Queriam vê-lo morrer numa overdose, ao vivo. A mesma coisa viveu David Bowie (um dos inspiradores do visual Punk) – o público esperava que um dia ele morresse no meio de um show.

Bowie fugiu de tudo isso  auto exilando-se em Berlim. Mas Sid Vicious se dirigiu para o olho do furacão (Nova York), ao lado de Nancy, após a última turnê dos Sex Pistols em 1978, nos EUA.

Um drama gnóstico


O leitor do Cinegnose certamente já deve ter assistido aos filmes gnósticos clássicos Show de Truman e Matrix. Em ambos os filmes, a razão pela qual os protagonistas são prisioneiros (no primeiro, um reality show e no segundo, o mundo virtual da Matrix) é porque seus demiurgos (o diretor do reality show e as máquinas que conceberam a Matrix) querem extrair deles algum tipo de energia vital – a alegria de Truman “que inspira milhões” e o élan vital dos corpos em suspensão em incubadoras que funcionam como pilhas que mantêm a Matrix em funcionamento.


Esse drama remete a arquetípica cosmologia gnóstica: uma divindade que decaiu (o Demiurgo) cria um cosmos material imperfeito e vazio que necessita das partículas de Luz arrancada dos humanos para por o universo em funcionamento. Prisioneiros nesse universo e seduzidos pela ilusão, estão alheios ao próprio drama cósmico que os cerca.

A indústria do entretenimento é uma dessas ilusões cujos arcontes que a gerenciam necessitam igualmente da luz espiritual dos humanos para dar vida a scripts, clichês e estruturas vazias e sem vida dos seus produtos. No campo do entretenimento, o drama micro e macrocósmico se encontram.

Desde o Pós-Guerra, com o decorrente crescimento da sociedade de consumo, o jovem foi a grande descoberta dessa indústria como um vasto estoque de energia disponível para por uma indústria em funcionamento – o culto à juventude, à novidade como um fim em si mesmo: tudo que é novo é moralmente bom; ao contrário, tudo que for velho é mau.

A Luz espiritual jovem oferece alegria, confiança, entrega, vitalidade, boa fé, esperança etc.

Mas também, fúria, raiva, revolta, angústia, melancolia e depressão da adolescência, quando o jovem pressente que será oferecido em sacrifício para os rituais de passagem para a vida adulta sem esperanças.


Desde 1774, quando Wolfgang von Goethe publicou o best-seller Os Sofrimentos do Jovem Werther, cujo protagonista se mata, para depois ser imitado por inúmeros jovens leitores (por isso, o livro foi banido em vários países europeus), a indústria do entretenimento, a cada década, cria novas tendência para explorar essas tendências depressivas e de revolta nos jovens: o Punk e o Glam Rock de David Bowie nos anos 1970; o Dark pós-punk nos 80’s; o Gótico de Marilyn Mason e a revolta grunge do Nirvana nos 90’s; e nos anos recentes Emos, vampiros melancólicos da franquia Crepúsculo e as distopias teen de filmes como Jogos Vorazes.

Por isso, ao assistirmos ao filme Sid & Nancy, talvez não choremos por Vicious ou Spungen, mas talvez por todos nós que fomos colocados em um mundo onde seja possível que as pessoas se tornem tão infelizes. Não por excesso de auto-indulgência, mas porque o drama de Sid Vicious é muito maior do que a história de um menino que não estava preparado para a fama, assim como tantos como Kurt Cobain ou mesmo James Dean.

É o drama gnóstico do grito do último momento de raiva e fúria da juventude, até ser sacrificada e enquadrada no mundo adulto, enquanto sua energia é roubada para manter em funcionamento a própria prisão que nos condena.


Ficha Técnica

Título: Sid & Nancy – O Amor Mata
Diretor: Alex Cox
Roteiro:  Alex Cox, Abbe Wool
Elenco:  Gary Oldman, Chloe Webb, David Hayman, Andrew Schofield
Produção: Initial Pictures, Zenith Entertainment
Distribuição: Samuel Goldwyn Company
Ano: 1986
País: Reino Unido

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