Há
algo estranho no material de divulgação do II Congresso Nacional do Movimento
Brasil Livre, a ser realizado esse mês em São Paulo. Um dos principais
protagonistas no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o MBL divulga uma
rodada de palestras encabeçada pela foto do ministro do STF Gilmar Mendes. Mas
há anomalias semióticas: para começar, a foto com o rosto soturno e patibular do ministro emoldurado por uma composição gráfica de estilo visual vintage e retro-futurista que
lembra alguma coisa entre os créditos de um filme sci-fi dos anos 1970, os bitmaps
de um game Atari ou Nintendo ou capas de discos New Wave dos anos 1980. Para um
movimento que vê a si mesmo como o “novo” e o “futuro”, o que representa esse
irônico futuro retro-vintage? Ato falho? Ou há algo mais? A intenção de
produzir uma comunicação visual deliberadamente pastiche e de mal gosto para
ocultar alguma outra coisa?
“Os homens não são o que pensam que são, mas sim aquilo que produzem” (Karl Marx)
Certa
vez Umberto Eco resumiu o projeto da Semiótica da seguinte maneira: “é a
disciplina que, a princípio, estuda tudo aquilo que possa ser usado para
mentir”. À primeira vista os signos parecem sempre “alguma coisa que está no
lugar de outra”, um mero decalque da realidade, sempre apontando para uma
referência. Mas, em dadas circunstâncias, essa impressão ingênua do signo, por
trás da qual a mentira se esconde, é traída pela semiose – a possibilidade
infinita de interpretações e produção de novos significados.
E a
semiose pode oferecer para um atento leitor de signos (tal como aquele
idealizado por Eco em O Nome da Rosa, o detetive Guilherme de Bascerville)
verdadeiros atos falhos que traem e escancaram a verdadeira intencionalidade do
emissor de signos aparentemente inocentes.
O
signo linguístico (convencional, unívoco e intencional) pode ser atravessado
por sinais, indícios ou sintomas (não-convencional, significado aberto,
inconsciente).
Um
caso exemplar é o material de divulgação do II Congresso Nacional do Movimento
Brasil Livre (MBL) que será realizado este mês em São Paulo, composta por
rodadas de palestras encabeçadas por nomes como o ministro do STF Gilmar Mendes
e a jurista Janaína Paschoal, peças importantes no xadrez do impeachment da
presidenta Dilma Rousseff.
O
MBL é uma ONG cujo material promocional do evento se define como “o grupo de
desacreditados que liderou a revolta contra o PT e venceu”. Os integrantes
tornaram-se símbolos de uma suposta geração “apartidária, ética e politizada”,
embora seus jovens participantes tenham caído nas graças do PSDB (recebendo
apoio financeiro do partido mais interessado pelo impeachment) e ter conseguido
eleger nove vereadores e seis suplentes nas últimas eleições.
MBL: o "novo" retro e vintage |
Por
isso, desde o início o MBL identificou-se com o “novo”, com uma “linguagem
jovem e dinâmica”, preocupada com “cenários futuros”. Como também sobre o
“futuro” fala o documento do PMDB “Uma Ponte para o Futuro”, entusiasticamente
apoiado pelo MBL por tornar o Brasil um país “fiscalmente responsável e sem
medo de encarar de frente uma agenda liberal”.
O logotipo do Governo Temer
Porém
o curioso é que, assim como o logotipo do governo do desinterino Michel Temer,
o material promocional do II Congresso da MBL parece se descolar, como em um
ato falho, desse discurso futurista e inovador.
Cores,
fontes, mancha gráfica, layout e dominantes visuais vão por um caminho semiótico
que aponta para outra direção: o retro, o vintage e, no caso dos jovens da MBL
da paradoxal nostalgia pós-moderna – saudades de épocas que não foram vividas.
Em
postagem anterior vimos como a marca do governo Temer já nasceu velha: um
“novo” governo que pretende ser a “ponte para o futuro” com uma identidade
visual retro-futurista ao estilo Hans Donner (que a própria Globo abandonou),
lembrando a computação gráfica das vinhetas televisivas dos anos 1990 com seus
efeitos em degrades e sólidos geométricos.
O
processo criativo da marca inconscientemente expressou a vocação pelo
retrocesso – um governo formado por membros eminentemente brancos e ricos (num
país marcado pela diversidade étnica) que, numa canetada, pretende anular
conquistas sociais e trabalhistas – clique aqui.
O
mesmo ato falho semiótico parece saltar aos olhos quando nos deparamos com o
material de divulgação do Congresso da MBL. Vamos fazer uma breve (devido ao
espaço desse blog) leitura semiótica a partir da clássica tricotomia dos
signos: Primeiridade (fenômeno);
Segundidade (signos); Terceiridade (conceito).
MBL 1 |
(a) Fenômeno
Ao
bater os olhos no material promocional (o Cinegnose analisou duas peças visuais),
há uma primeira sensação de que alguma coisa está fora do lugar: a figura
soturna e patibular de Gilmar Mendes (figura MBL 1) dentro de uma composição visual
cujo estilo das fontes do texto lembra os créditos de algum filme sci-fi
dos anos 1970-80 ou a estética daqueles velhos games Atari, Nintendo ou
Game Boy.
Poderíamos
imaginar naquela foto personagens como Super Mário, Luigi ou a Princesa Peach
etc., menos a figura do Ministro do STF. O mesmo se aplica à peça “MBL 2” (veja abaixo) onde
as figuras da “possuída” de Janaina Paschoal ou “Tim Burtoniana” de Pedro
D’Eyrot parecem mais protagonistas de algum outro gênero cinematográfico. Estão
estranhamente deslocadas dentro do visual sci-fi
retro.
O
degrade dominante e a cor verde vintage estranhamente contrastam com as
palmeiras monocromáticas no fundo – frondosas palmeiras tropicais em uma imagerie retro-futurista?
E
também o contraste da composição visual cuja dominante de forma é o quadrado (composição
estática e conservadora) nas fotos e diagramação no interior de uma composição
retro-futurista.
Figura MBL 2 |
(b) Signos
Há um pastiche retro explícito: fontes
standard bitmap lembrando os velhos videogames de console dos 80’s se justapõe ao
grafismo New Wave da mesma década (as palmeiras com o conjunto do título em
pink que lembram as clássicas capas de bandas como Duran Duran ou B-52.
A
associação aos créditos de algum filme sci-fi dos 70-80’s é ainda mais
reforçada com os pontilhados que acompanham o dia da semana à data do mês nas
duas peças visuais.
O
verde vintage, marcante nos tons pasteis dos anos 1950, presente na moda femininas
nos 60’s e retomado pela New Wave nos 80’s, principalmente em contrastes
fortes, como com a cor pink nesse
material visual do MBL.
(c) Conceito
É a
primeira vez que esse humilde blogueiro vê um material de divulgação de evento
de um partido ou movimento político tão explicitamente retro. Em geral, a
estética retro reflete uma sensibilidade alinhada com o chamado gênero camp, uma atitude irônica, artificialmente
exagerada, deliberadamente de mal gosto ou “brega”. Trata-se de um exemplo de
sensibilidade pós-moderna de auto-distanciamento irônico.
Por isso, esse tipo de sensibilidade é mais
comum no campo cultural – cinema, teatro, arte e literatura. Mas incomum no
campo da política, no qual as mensagens devem ser necessariamente assertivas,
emergenciais, declaratórias, afirmativas, prescritivas. Portanto, muito
distante da ambiguidade irônica da estética retro ou vintage.
A
cara sisuda do Ministro Gilmar Mendes em um pôster de ironia camp? Ou os materiais promocionais do
MBL revelam um inesperado ato falho? Enquanto o discurso político do MBL
reivindica para si a marca do “novo”, “juventude” e “futuro”, na verdade suas
ideias são tão velhas quanto o retrocesso semiótico estampado nos pôsteres do
II Congresso Nacional MBL.
Ou
mais do que ideias velhas, a ação: na prática, o retrocesso em conquistas
sociais, de gênero, políticas e trabalhistas ao congelar o próprio futuro com a
famigerada PEC 241.
O
mesmo raciocínio poderia ser aplicado a um evento de algum movimento de
esquerda cujo material promocional retrocedesse à estética do realismo
socialista – certamente seria o ato falho que revelaria o viés marxista
ortodoxo sob o qual a agenda do evento seria discutida...
Intencionalmente tosco?
Ato
falho semiótico: a estética vintage-retro do MBL se descola da retórica do
“novo” e do “futuro” para revelar aquilo que está além das ideologias: as
próprias ações. As duas peças visuais do evento analisadas estão repletas de
indícios ou sintomas que contradizem o signo linguístico que o MBL pretende
comunicar.
Ou
talvez essa análise semiótica do Cinegnose
esteja sobrevalorizando o material promocional do MBL ao interpretá-lo como um
ato falho retro-vintage. Quem sabe, tudo não passou de um material mal
produzido, um trabalho de computação gráfica esteticamente ingênuo, brega e de
mal gosto, sem nenhuma intenção irônica camp.
Só faltou texto apresentar a fonte mais odiada pelos designers: a Comic Sans.
É
visível que o material de divulgação do MBL é tosco. A questão é: essa
“tosquisse” é um ato falho retro-vintage que contradiz o discurso que fala em
“novo” e “futuro”?
Ou,
então, a precariedade da comunicação visual é proposital para transmitir uma
impressão de que o MBL é um grupo de jovens idealistas, com poucos recursos
materiais para produzir um material publicitário profissional? Material de
divulgação propositalmente de mau gosto e semioticamente confuso e de difícil
leitura para criar percepção de improviso “nas coxas” e ocultar a máquina
(nacional ou internacional?) do profissionalismo político que o sustenta?
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