Numa dos mais ousados planos-sequência do
cinema recente, 40 minutos acompanhando a viagem do protagonista no interior de
pequenos povoados da China, o diretor Gan Bi busca uma sensibilidade budista
mística sobre os pequenos eventos do cotidiano. O filme “Kaili Blues” (2015) é
um desafio para um espectador ocidental: enquanto estamos acostumados com um
cinema que tematiza as crises existenciais e da perda de identidade, o cinema
chinês de Gan Bi busca, ao contrário, o fluxo e a superfície das águas de um rio
– a crise surge quando tentamos buscar a permanência nas memórias e na própria
identidade. Ilusões que escondem o fluxo contínuo (“samsara”) da vida. Fluxo
tão desafiador como o plano-sequência no qual acompanhamos a viagem de um
médico que retorna a sua terra natal passando por uma estranha cidade.
Nos filmes ocidentais a crise existencial
toma a forma da crise de identidade em questões como a memória, a morte, o amor
e a juventude – o medo do fim e da busca de uma essência interior que faça
alguém permanecer autêntico no devir dos acontecimentos. O melhor exemplo é o
cinema existencial de Ingmar Bergman (Juventude,
O Sétimo Selo, Morangos Silvestres) que explora aquilo que chamamos de
“humano, demasiado humano”, marca do cinema europeu.
Ao contrário, o cinema asiático,
particularmente o chinês, descreve a concepção budista da fluidez das almas e
da arbitrariedade da experiência individual. O “humano, demasiado humano”
ocidental é substituído pelas reflexões do ser no fluxo de um rio que chamamos
de existência (“samsara” ou “fluxo contínuo”): a busca da permanência ou de
algum sentido é cair na ilusão de permanência.
Enquanto o cinema ocidental é hermenêutico
(busca um sentido ou permanência), o cinema asiático é fenomenológico – busca o
fluxo, movimento numa realidade que é apenas um ilusão, um sonho.
O filme chinês Kaili Blues (2015) é um bom exemplo que comprova essa tese. Um
filme que busca no cotidiano ordinário de pequenos vilarejos na China uma
sensibilidade budista mística, onde memória e passado são apenas impressões de
uma realidade ilusória e a identidade nada mais é do que uma expressão
convencional – estados mentais passados, presentes e futuros não têm substância
ou existência.
Na estreia do escritor e poeta Gan Bi, Kaili Blues tenta encontrar na
superfície da banalidade do dia-a-dia as manifestações da ilusão do “samsara”.
Um desafio para o espectador ocidental
Nesse filme há muito para um espectador
ocidental desvendar. Digamos que o filme exija de nós uma paciência zen para
capturar conexões que dificilmente em apenas uma visualização será possível.
Estranhas transmissões de TV sobre reportagens sobre avistamentos de um “homem
selvagem” (algum tipo de “pé grande”), cenas com uma bola de discoteca,
relógios desenhados na parede que funcionam, um trem tridimensional que emerge
da parede em uma projeção, imagens de sonhos subaquáticos e uma viagem
deslumbrante por meio de paisagens de pequenos vilarejos onde casa e costumes
antigos estão sendo substituídos pela modernidade chinesa.
E muitos fragmentos de diálogos espalhados
por várias cenas cujas conexões são sutilmente implícitas. Realidade e memória,
vivos e mortos vão se fundindo na narrativa. Chegando até sugerir que alguns
personagens aparecem em idades diferentes na viagem do protagonista da pequena
província de Kaili para um vilarejo chamado Zhenyuan.
Uma viagem na qual passado, presente e futuro
irão se fundir, comprovando a epígrafe que abre o filme, extraído do Sutra do
Diamante:
“não importa quão numerosos são os seres vivos na terra de Buda. Porque as mentes particulares não têm existência real, são somente formas de expressão convencional. E por que? Porque é impossível apreender estados mentais passados, presente e futuros, já que nenhuma das suas atividades da mente tem substância ou existência”.
O Filme
O
argumento de Kaili Blues é aos poucos
introduzido nos diálogo ao longo dos diálogos da primeira meia hora. O médico
Chen Seng (Yongzhong Chen) atende pacientes com a ajuda da sua idosa paciente (Daqing
Zhao) na pequena cidade de Kaili. Entre as consultas eles discutem sonhos
significativos que envolvem os calçados da mãe falecida que flutuam em um rio e
amantes que se perderam há muito tempo.
Em meio a essas viagens pela memória, Chen
entra num conflito com o meio irmão chamado “Crazy Face” (Lixun Xie) que negligencia
seu filho Weiwei (Feiyang Luo). Chen fica enfurecido, por razões que são ao
mesmo tempo óbvias (manda o filho embora para Zhenyuan), mas também
misteriosas. Crazy Face está mais interessado em fumar, beber e jogar bilhar
nos bares com os amigos.
Essa introdução é sugerida de forma elíptica,
já que a proposta do diretor é mostrar as ações de forma fluida. Aos poucos
descobrimos que Chen é um ex-presidiário, a sua ligação com Monk, um
ex-gangster para quem Crazy Face entregará o filho. Monk tem uma estranha
fixação por relógios, que os coleciona e os utiliza das maneiras mais
inusitadas.
Determinado a recuperar o sobrinho, Chen
embarca em uma viagem para Zhenyuan numa
das mais impressionantes utilização da técnica de plano-sequência: são 40
minutos em uma única tomada, em tempo real, com giros de 360 graus, travelings,
zoons in e out em torno dos personagens e ações que faria o pioneiro russo
Dziga Vertov (O Homem da Câmera,
1929) aplaudir de pé.
A viagem de trem e motocicleta e a chegada à
lamacenta Zhenyuan na qual engata um passeio em um moto-táxi com um adolescente
pouco confiável, viaja por um breve tempo em uma pick-up junto com uma banda de
rock pop (com a qual mais tarde fará uma apresentação em um karaokê improvisado)
tem sua camisa remendada por uma famosa costureira da província (que é seguida
pelo adolescente da moto-táxi e sonha virar guia-turístico em Kaili) para
depois ter o seu cabelo lavado por uma esteticista antes da apresentação da
banda pop.
Em constantes movimentos da câmera, o diretor
rastreia os diálogos das pessoas através das ruas enlameadas, escadarias
estreitas e becos. Há uma desordem autoconsciente e uma coreografia magistral
que criam uma inquietação que está em sintonia com as próprias inquietações de
Chen.
Plano-sequência como “samsara”
Mas percebe-se que o diretor Gan Bi não quer
chamar a atenção para si mesmo com o virtuosismo de cinematografia. Kalil Blues quer contrapor o fluxo da
realidade com as feridas antigas inescapáveis de Chen. Associado a trens,
motocicletas, os relógios, o sonhos dos calçados da mãe sendo levados pelo rio
e o inacreditável plano-sequência, tudo conduz à tomada de consciência de Chen
(gnose?) de que ele deve se desprender de tudo que estático ou aspira a permanência,
como os traumas e conflitos.
O que se impõe é o fluxo do samsara. Kaili Blues é dominado por performances impregnadas de uma tristeza
quase imperceptível, arrependimentos e desejo de todos entrar em algum acordo
com aquilo que foi perdido. Mas tudo aquilo no qual todos querem se apegar é
ilusão.
Não é por acaso que Zhenyuan é uma
cidadezinha dividida por um rio que parece ser a única coisa paradoxalmente
estável. Ao redor, as margens são lamacentas, ameaçam desmoronar e as velhas
casas estão sendo derrubadas para a chegada de prédios e negócios de uma nova
China.
Talvez para um espectador ocidental, Kaili Blues seja um filme que parece não
ter um ponto, um tema ou um foco. Parece dispersivo e uma verdadeira perda de
tempo.
Propositalmente, tudo no filme é superfície,
fenomenal. Dores, memórias e conflitos estão diluídos em uma narrativa oblíqua.
O que se impõe é apenas o fluxo, tanto do plano-sequência, da câmera, do rio e
dos relógios. Não é um filme sobre crises existenciais, mas sobre a inexorabilidade
do tempo, da morte e do devir. E como essas crises são apenas ilusões diante do
fluxo do rio da existência.
O filme pode ser encontrado em arquivos torrent na Internet e legendas em espanhol no site Opensubtitles.org.
O filme pode ser encontrado em arquivos torrent na Internet e legendas em espanhol no site Opensubtitles.org.
Ficha Técnica |
Título:
Kaili Blues (Lu Bian Ye Can)
|
Diretor:
Gan Bi
|
Roteiro:
Gan Bi
|
Elenco:
Yongzhong Chen, Yue Guo, Linyan Liu,
Feiyang Luo, Lixun Xie
|
Produção: China
Film International Media Co.
|
Distribuição:
Grasshopper Film,
Caprici Films
|
Ano:
2015
|
País:
China
|
Postagens Relacionadas |