A cada ano
milhares de pessoas simplesmente desaparecem no mundo sem deixar pistas.
Misture esse dado estatístico real à influência do horror fantástico de H.P.
Lovecraft com a simbologia arquetípica dos túneis. O diretor independente Mike
Flanagan fez isso e resultou no filme “Absentia” (2011), um “terror silencioso”
que pode causar estranheza aos espectadores incautos acostumados ao “gore” da
violência e sangue. Como a dor psicológica da perda inexplicável evolui para o
medo do sobrenatural, em uma narrativa que mistura dramas familiares e
conjugais com o sobrenatural que jaz em
um túnel para pedestres no final da rua de um subúrbio de Los Angeles. Filme
sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
Nos EUA são
registrados em torno de 700.000 desaparecimentos de pessoas. No Brasil, a cada
11 minutos, uma pessoa desaparece – 40 mil por ano. Isso apenas em
levantamentos feitos a partir de estatísticas oficiais. Junte as especulações em
torno desse fenômeno (organizações criminais especializadas em raptos de crianças
para escraviza-las, tráfico de órgão, abduções extraterrestres, seres
interdimensionais etc.) com os contos fantásticos de terror de H.P. Lovecraft e com o simbolismo
arquetípico dos túneis e teremos o argumento de Mike Flanagan para o terror
independente Absentia (2011).
Fã
dos contos de Lovecraft (1890-1937, escritor norte-americano que revolucionou o
gênero terror ao inserir elementos fantásticos típicos dos gêneros ficção
científica e fantasia), Flanagan ficou fascinado com lendas urbanas sobre a
concentração de desaparecimentos em certas ruas, praças ou parques. Chegar ao
insight de um local específico que seria uma espécie de vórtice da luz para as
trevas (um túnel para pedestres que passa por baixo de uma highway em um subúrbio de Los Angeles) foi um passo.
Com
baixíssimo orçamento e com a maioria de atores que jamais atuaram em um filme
longa metragem, Flanagan contou com a força da sugestão de edição e montagem
mas, principalmente, com um recurso que o velho horror do expressionismo alemão
(estilo cinematográfico da década de 1920 baseado na distorção de cenários e
fotografia) criou: a força do extracampo na linguagem cinematográfica - tudo é muito mais sugerido do que mostrado a
partir das expressões de horror dos protagonistas para algo que ocorre fora do
plano da câmera.
Absentia
talvez seja o melhor exemplo em décadas de um “terror silencioso” sem gritos,
sangue em profusão, vísceras e monstros em primeiríssimo plano. A força do seu
horror é originado da linguagem fílmica e do poderoso simbolismo arquetípico
dos túneis como passagens interdimensionais da luz para as trevas.
O
gênero “terror silencioso” é sucesso na literatura de horror mas considerado
por muitos “infilmável” por basear-se apenas atmosferas, humores, sugestões e
implicações, e, portanto, difícil de ser capturado para a tela do cinema. Mas Flanagan acreditou que esse tipo de gênero se daria melhor com um típico filme independente de baixíssimo orçamento. E foi bem sucedido.
O Filme
Absentia
abre com uma mulher grávida andando pelas ruas em um tranquilo bairro
suburbano. Esta é Trícia (Courtney Bell) arrancando dos postes panfletos velhos
e substituindo por novos. São cartazes sobre Daniel (Morgan Peter Brown), seu
marido inexplicavelmente desaparecido há sete anos.
Trícia
tenta reconstituir a vida com um novo companheiro, Mallory (Dave Levine), um
detetive da polícia de LA. Mas Trícia agora enfrenta uma difícil decisão: preencher
um documento legal que declare Daniel como oficialmente morto “in absentia” –
“à revelia” ou “na ausência do arguido”.
Trícia
está relutante, principalmente quando começa a ter visões sobre o que teria
acontecido com o seu marido e assustadoras presenças. Trícia recebe a visita da
sua irmã que há tempos não via – Callie (Catherine Parker) que saiu em viagens
errantes fugindo dos seus dramas pessoais e com um histórico de drogas pesadas.
Aos
poucos Callie vai descobrir que o bairro esconde segredos muito mais sombrios
por trás do súbito desaparecimento de Daniel. E o centro de tudo parece estar
em um sujo túnel para pedestres localizado no final da rua.
Normalmente
os filmes de terror são construídos a partir do sofrimento dos personagens
diante de eventos que levam à dor e à morte. Mas em Absentia, a narrativa começa a ser construída a partir dos
destroços emocionais deixados para trás – a relação de Trícia com sua irmã
problemática, o desaparecimento de Daniel, a gravidez como tentativa de
reconstruir uma vida ao lado de um novo companheiro etc.
A
experiência de uma perda inexplicável é o elemento central do filme: a
alienação relacional e geográfica da perde de um ente querido, e,
principalmente, não só a dor do não saber para onde foi, mas por que ele
foi perdido de nós.
Aos
poucos essa experiência da perda prepara o espectador para a presença do
elemento sobrenatural. Embora existam alguns momentos de violência, estes são
rápidos e oblíquos. Há até flashes de bizarro e gore, mas tudo é quebrado pelas
sugestões de extracampo e as possíveis hipóteses sobre que ocorre: alucinações
de Callie provocadas pelo vício das drogas? Daniel transformou-se em um morador
de rua, assim como aquele que aparece naquele túnel no final da rua? Discussões
conjugais e relacionamento complicado com a irmã fizeram Daniel desistir de
tudo?
Por
isso, Absentia pode se tornar um
filme de terror estranho para o espectador incauto. A atenção aos detalhes
psicológicos é a maneira como o filme vai criando um ambiente de terror, a princípio,
moderado. As revelações são deliberadamente lentas para, no final, Flanagan
transformar o filme em uma espécie de conto de fadas aparentemente sem
respostas.
Próximo
do final, Callie tentará juntar as peças deste quebra-cabeças com o auxílio do
histórico de desparecimentos na própria rua. Mas, será Callie confiável com seu
histórico de vícios e fugas dos problemas familiares?
O Túnel
O
estreito, sujo e misterioso túnel é o centro arquetípico da trama que rende as
principais cenas mais próximas do visual gore
que os espectador comum espera ver em um filme de terror.
Filmes
como a minissérie de TV Stand (baseada no livro de Stephen King), com a
inesquecível imagem do Lincolm Tunnel com o protagonista atravessando entre
corpos espalhados, ou o filme A Passagem (Stay, 2005) onde o metrô é o
simbolismo de contato entre o mundos dos vivos e mortos ou o terror The Tunnel
(misterioso labirinto escuro de túneis do metrô sob a cidade de Sidney), são
exemplo da recorrência desse arquétipo no cinema.
São
representações simbólicas de viagens e passagens, desde a referencia bíblica de
“um canal através da rocha” em busca daquilo que é verdadeiramente precioso
–como no livro de Jó.
O
que é interessante no simbolismo do túnel é que ele não é abstrato como a pomba
(“paz”). O túnel é a passagem do concreto para o abstrato, desse mundo para o
espiritual – seja de luz ou sombras. Simboliza a metamorfose – a passagem de
uma vida para outra, assim como a nossa primeira viagem para essa vida por meio
do parto.
Talvez
poderíamos até especular como o desestímulo do parto natural pela cesariana
talvez tenha esse componente repressivo de anulação de um simbolismo importante
para a compreensão dessa existência. Mais um dispositivo da sociedade de
consumo que pretende eliminar das nossas vidas qualquer simbolismo mais
espiritual ou metafísico.
Metamorfose
que no filme parece se transformar no retorno do reprimido: o poder da mudança,
que é reprimido em nossas vidas, que repentinamente retorna como um monstro
assustador – seres interdimensionais que nos arrastam através de túneis para
nos escravizar.
Ficha Técnica |
Título:
Absentia
|
Diretor:
Mike Flanagan
|
Roteiro:
Mike Flanagan
|
Elenco:
Catherine Parker, Courtney Bell, Dave
Levine, Justin Gordon, Doug Jones
|
Produção:
FallBack Plan Productions
|
Distribuição:
Moving Pictures Film and
Television
|
Ano:
2011
|
País:
EUA
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