Ao lado do Halloween, o Black Friday é mais um desses mega eventos
importados que, repentinamente, se transformaram em pauta da agenda midiática
nacional. Imagens na TV de corredores de lojas congestionadas com gente se
acotovelando e consumidores denunciando descontos maquiados. Mas estamos
importando mais do que um evento de promoções e descontos: no interior do
conceito de Black Friday importamos também o DNA da cultura norte-americana: a
mentalidade “minimalista” de um delírio de vitória no vazio e a “lógica do
Papai Noel” do consumo onde a estratégia supostamente racional custo/benefício
das promoções serve de álibi para o consumidor conviver mais facilmente com a
sua má consciência. O que significa para nós importarmos esse DNA desesperançado da cultura norte-americana?
Talvez o grande mérito de Freud
e da Psicanálise não tenha sido a descoberta do inconsciente – inacreditavelmente
ainda sem credibilidade científica para muitos setores da psicologia por supostamente
não ter comprovação “empírica”, ao contrário das noções de comportamento e cognição. Talvez o principal mérito do psiquiatra vienense tenha sido a
descoberta de que o homem não é um ser racional, mas acima de tudo
racionalizante. Isto é, o que verdadeiramente nos distinguiria dos animais não seria
tanto a razão, mas a capacidade de encontrar álibis e justificativas
(racionalizações) para cada ato impulsivo ou irracional que nos pegamos
cometendo.
Ao lado do Halloween, o Black Friday
é mais uma dessas efemérides importadas e pautadas de um momento para o outro
na agenda midiática anual. Termo criado pelo varejo nos EUA para o dia das
grandes ações de vendas com descontos e promoções após o feriado de Ação de
Graças, vem desde 2010 sendo adotado pelas grandes lojas tanto on line como físicas no Brasil. E todo
ano, sob as denúncias de consumidores, o Procon notifica grandes empresas que
teriam maquiado os descontos: pouco antes teriam aumentado os preços em dobro
para depois cobrar a metade.
A gritaria dos consumidores
“conscientes” parece menos querer desmascarar as artimanhas do comércio e muito mais salvaguardar alguma racionalidade ou sentido em tudo isso: buscam na suposta
luta pelos direitos do consumidor, encobrir que o Black Friday é, na verdade, mais uma racionalização com o apoio
midiático e publicitário para que os consumidores possam exercer seus impulsos
e compulsão sem culpa. Em outras palavras, o evento Black Friday (verossímil por trazer a marca da mídia e dos EUA)
libertaria as pessoas da má consciência de saberem que estão em um evento que
apenas simula ter algum sentido ou racionalidade.
Freud certamente veria em tudo
isso um ato falho: querem que as empresas sejam honestas assim como os
consumidores tentam ser honestos consigo mesmos, através do álibi da
racionalização que tenta fugir da culpa do desejo impulsivo. A chave para a
compreensão desse paradoxo do Black Friday talvez seja um conceito básico para
a compreensão de como funciona o discurso publicitário e a lógica da sociedade
de consumo: a “lógica do Papai Noel”.
A Lógica do Papai Noel
Em um telejornal vemos imagens
de multidões se esbarrando nos apertados corredores de uma grande loja de
eletrodomésticos no Black Friday. Uma
senhora aposentada é sincera com uma repórter, vira para a câmera e dispara:
“vim aqui para comprar outra coisa, mas acabei vendo uma TV de 50 polegadas em promoção
e acabei comprando!”. Nem dezenas de sessões de psicanálise fariam alguém
aflorar tal sinceridade: o ato impulsivo e irracional (de fato, ela precisava
da TV?) foi racionalizado por uma palavra mágica: “promoção”. A aparência
racional da lógica do custo/benefício contida na palavra /promoção/ serve como
um placebo psíquico que nos liberta da má consciência da culpa.
Nos tempos da sua fase
semiológica, em 1973 o pensador francês Jean Baudrillard, em seu livro O Sistema dos Objetos, criou um dos
conceitos talvez menos compreendidos da sua obra: a “Lógica do Papai Noel”. Ele via na Publicidade muito mais uma lógica da fábula e da adesão,
semelhante o que as crianças fazem com seus mitos sem se interrogar sobre a
existência deles.
Assim como o Papai Noel, onde crianças e
adultos não creem nele e nem na sua relação de causa e efeito com os
presentes.
“A crença no Papai Noel é uma fábula racionalizante que permite preservar na segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais (mais precisamente pela mãe) que caracteriza a relação da primeira infância. (...) se fundamenta no interesse recíproco que as duas partes têm em preservar a relação. O Papai Noel em tudo isso não tem importância e a criança só acredita nele porque no fundo não tem importância.” (BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos,São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 176).
Para Baudrillard a operação publicitária
seria da mesma ordem: nem slogans, textos publicitários ou informações são
decisivos para a compra. As pessoas não acreditam em Publicidade mais do que
acreditam em Papai Noel. Então para que serve a Publicidade? Para racionalizar o
desejo da compra.
Aqui Baudrillard aproxima-se da noção
freudiana da racionalização como um álibi perfeito. O ser humano não é um ser
propriamente racional, mas racionalizante: a maior parte do tempo agindo por
impulso ou compulsão, sem ser “racional” no sentido de pensar antes de agir.
Por isso o indivíduo necessita de um álibi para justificar diante dos outros e
de si mesmo a razão dos seus atos. Tal como o criminoso que sabe que cometeu o
crime, ele necessita de um álibi. Assim como o criminoso que não acredita no
álibi porque sabe que cometeu o crime, da mesma forma o consumidor acha
bastante útil o álibi: para fazê-lo esquecer do crime.
Slogans e toda a retórica publicitária nada
mais seria do que o Papai Noel oferecido para o consumidor criar uma “desculpa” para si mesmo e aos outros sobre o porquê da aquisição. Um motivo nobre, aqui, uma
promoção ali ou uma “relação custo benefício” acolá. Ou um evento midiático
como o Black Friday, o Papai Noel dos
adultos.
“I Did it!”
O minimalismo da Maratona de Nova York: milhares de anônimos e solitários sem espíritode vitória |
Mas o Black
Friday ainda possui outra dimensão para além do psiquismo, culpas e
consumismo. Tem um elemento pós-moderno que pertence propriamente ao DNA cultural
norte-americano que importamos em eventos como este: o “sobrevivencialismo” ou “minimalismo”,
conceitos criados pelo sociólogo norte-americano Christopher Lasch.
O imaginário do “minimalismo” seria uma
espécie de resignação ou sentimento de derrota na cultura após as falhas nas
tentativas de transformação do mundo, principalmente após as ondas libertárias
dos anos 60 e 70. (veja o livro LASCH, Christopher, "O Mínimo Eu",
São Paulo: Brasiliense, 1987). Por “minimalismo” Lasch queria se referir ao
momento em que o desejável é substituído pelo possível. Após desistirem das
transformações por meio das lutas do campo da Política, resignados, as pessoas
passariam a se entregar a pequenas práticas solitárias e socialmente vazias de
significado. Demonstrações públicas de autoprivações, de superações de
barreiras corporais, psíquicas ou imaginárias, de autocontrole frente a
situações limites, superação do medo diante da morte, a frieza diante da dor
etc. Tudo amplificado pelas “histórias de superação” relatada de forma
sensacionalista pelas mídias.
A filosofia mimimalista criaria um prazer
masoquista do indivíduo fazer parte de mega eventos gregários para desempenhar publicamente
performances fetichistas, para viver um delírio da vitória no vazio, para
apenas dizer “I did it!”, “Eu consegui!” ou a variação atual: “Eu estive lá!”.
Os primeiros colocados que ficaram dias na fila do mega lançamento da nova
versão de um Ipad; os milhares de corredores solitários e anônimos sem espírito
de vitória da maratona de Nova York; os milhares de jovens que ficaram dias circulando
em dezenas de palcos em um mega festival musical sem prestar atenção em nada.
Performances limite da resistência física,
privações e paciência, sem nenhum resultado, conquista ou aquisição reais.
Apenas para dizer “Eu consegui!”, “Eu estive lá!”... ou “Black Friday, eu
sobrevivi!”: sobreviveu a multidões se acotovelando, congestionamentos, filas imensas
de pessoas na aprovação do crédito, grandes caixas carregadas sob o sol a
pino...
E o que significa para nós importarmos esse
DNA desesperançado da cultura norte-americana? Certamente a inoculação do
veneno do vazio e do niilismo inerente à sociedade de consumo: o abandono da
ação pública e coletiva substituída pela impulsividade das demonstrações
solitárias e vazias de estoicismo ou pelos protestos de consumidores
supostamente conscientes de seus direitos, reclamando da má consciência dos
comerciantes que, na verdade, reflete a dos próprios consumidores.