terça-feira, novembro 12, 2013

A semiótica do pensamento neoconservador


O episódio da ironia incompreendida do texto da coluna de Antonio Prata no jornal Folha de São Paulo que arrancou uma entusiasmada solidariedade de neoconservadores, revelou um mecanismo mais profundo no qual se baseia a eficiência da ferramenta da simulação como arma para combater bombas semióticas: tanto a pegadinha do falso estudante atrasado do Enem quanto a de Antonio Prata que simulou ter se convertido ao machismo, racismo e homofobia, têm como elemento comum aquilo que pesquisadores como Frederic Jameson apontam na cultura pós-moderna - a sensibilidade pastiche, paródia lacunar porque perdeu o senso de humor, demonstrado em situações como essas quando leitores e repórteres se reconhecem refletidos na sua própria caricatura.

Está comprovado. A estratégia da simulação é a principal ferramenta para desarmar e neutralizar (desmoralizar) as bombas semióticas que semanalmente estão explodindo no contínuo midiático nacional. Na semana retrasada acompanhamos a simulação do estudante atrasado do Enem que sem querer acabou desarmando e expondo à opinião pública o modus operandi de montagem das bombas semióticas (pautas pré-estabelecidas e “hipóteses” definidas à espera de fragmentos de eventos que se transformem em evidências por si mesmas).

Pois nessa última semana acompanhamos a “pegadinha” do colunista do jornal Folha de São Paulo Antonio Prata: simulando ter se convertido definitivamente aos argumentos neocons (abreviação de “neoconservador”), escreveu uma coluna raivosa intitulada “Guinada à Direita” onde denuncia uma suposta conspiração para “levar o País ao abismo”, perpetrada por “gays, negros, índios, vândalos, maconheiros, comunistas, aborteiros, feministas rançosas e velhos intelectuais da USP”. Prata fez um texto que é praticamente um inventário dos principais clichês direitistas e neocons, com o mesmo estilo grosseiro e raivoso.
Uma conspiração gay?

A resposta de alguns leitores foi espantosa: entusiasmado, o roqueiro Roger da banda Ultraje a Rigor congratulou o articulista pela coragem (pelos “culhões”, para ser mais exato). E muitos outros leitores não entenderam o texto ironicamente provocativo e repleto de frases neocons prontas, e passaram a fazer elogios entusiasmados: Sim! O mundo está sendo dominado por gays, comunistas e feministas!

O surpreendente nessa história é o motivo pelo qual os neocons não entenderam a ironia: por que o próprio raciocínio da direita atual é retrofascista: um pastiche de fragmentos de doutrinas, ideologias e discursos conservadores do passado, fragmentados e reunidos em um raciocínio construído como uma colcha de retalhos.

Na verdade, Antônio Prata atirou no que viu e acertou no que não viu: quis provocar a Direita, mas colocou a nu o cerne da mentalidade neocon. Não entenderam o texto porque o raciocínio deles é exatamente como o texto foi construído: uma série de fragmentos de frases prontas e clichês cujas sinapses são feitas por meio de teorias conspiratórias – não é à toa que a maioria dos sites especializados em teorias de conspirações na Internet é ligado a grupos conservadores, fascistas, neonazis e de Direita.

Por isso, dentro dessa série de postagens sobre o monitoramento das bombas semióticas midiáticas atuais, temos que entender duas novidades trazidas nesse episódio:

(a) a confirmação da simulação como ferramenta de contra-ataque;

(b) o retrofascismo como um conceito que explica o mecanismo semiótico do raciocínio não apenas neocon: refletiria, na verdade, uma sensibilidade mais ampla que o pesquisador inglês Frederic Jameson chamava de “pós-moderna” porque baseada no pastiche e na esquizofrenia da cultura contemporânea.

Simulação paródica e da Fonte


Frederic Jameson: o pastiche é
uma paródia que perdeu
o senso de humor
Nessas últimas semanas tivemos duas táticas diferentes de utilização da simulação: no episódio do falso estudante atrasado do Enem poderíamos considerá-lo como uma simulação da fonte: para simular ser um acontecimento (uma “protonotícia”) o simulador deve ser exagerado, overacting, exagerar nos gestos, declarações, ser emotivamente copioso, em síntese, canastrão. O historiador Daniel Boorstin chamava tal situação como “pseudoevento”: protagonistas de eventos moldam seus comportamentos e o timing do acontecimento às expectativas de repórteres e redações sobre o que eles esperam que seja “notícia”. Se isso já é algo intrínseco à mídia atual, imagine então com uma intencionalidade ideológica...

No caso da ironia má compreendida da coluna de Antônio Prata, teríamos a simulação paródica: para Frederic Jameson, na paródia há uma simulação das idiossincrasias e singularidades do original através do exagero e do senso de humor. Reside na paródia uma norma cultural que se quer romper ou criticar. Porém, essa forma de simulação transforma-se numa ferramenta poderosa para a neutralização (desmoralização) como a que ocorreu com os leitores de Prata: ocorre que no raciocínio pastiche dos neocons não há senso de humor, e tudo se torna literal. Isto é, perderam o componente “meta” da linguagem e tudo é lido ao pé da letra, em seu sentido literal. Acompanhemos essa passagem de Frederic Jameson para clarearmos essa questão:
O pastiche é, como na paródia, a imitação de um estilo singular ou exclusivo, a utilização de uma máscara estilística, uma fala em língua morta: mas a prática desse mimetismo é neutra, sem as motivações ocultas da paródia, sem o impulso satírico, sem a graça, sem aquele sentimento latente da qual ainda existe uma norma, em comparação com a qual aquilo que está sendo imitado é, sobretudo, cômico. O pastiche é paródia lacunar, paródia que perdeu o senso de humor” (JAMESON, Frederic. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo” IN: Novos Estudos Cebrap, São Paulo, número 12, junho de 1985, p. 18).

O sintoma cultural do pastiche


Para Jameson o pastiche e o remake são verdadeiros sintomas culturais que expressariam a maneira específica como o indivíduo pós-moderno experimenta o espaço e o tempo. Jameson chama essa experiência especificamente de esquizofrênica: as referências culturais de todas as épocas e signos (símbolos, estilos e fragmentos culturais) tornam-se, assim, um estoque aleatório de referencias que são pilhadas para formar verdadeiras colchas de retalhos (pacthworks) ou colagens estéticas sob uma roupagem de modernidade e inovação.

O caso do neoconservadorismo atual parece refletir essa sensibilidade cultural abrangente expressa, por exemplo, na arquitetura como nos prédios neoclássicos fake com pilastras em gesso colocadas ao lado de palmeiras para dar um toque tropical e acabamento com esquadrias de alumínio. Seguindo a mesma lógica, discursos sobre cidadania e de sustentabilidade convivem tranquilamente com ataques às cotas de negros nas universidades; a defesa dos direitos humanos e da igualdade se coloca ao lado das críticas ao Estado de bem estar social como populista e assistencialista, e assim por diante; um roqueiro que faz nos shows covers da banda punk Ramones e ao mesmo tempo defende uma agenda política conservadora. O filósofo Peter Sloterdijk chamava esse fenômeno de “cinismo esclarecido”: espécie de autodistanciamento irônico, onde todos demonstram ter conhecimento de princípios ético e morais universais embora, na prática, os neguem.

A ferramenta da ironia paródica parece desmascarar publicamente esse cinismo, ao fazer os neocons incautos cometerem o ato falho de se revelarem.

Mas o mecanismo semiótico do pastiche vai para além disso. Mesmo no campo das ideias conservadoras há o fragmento sígnico. Por exemplo, o fenômeno do racismo, homofobia e xenofobia no passado, pelo menos, era justificado ou inserido em um discurso doutrinário que procurava dar um sentido histórico. O caso da doutrina da raça ariana como um conjunto de seres humanos superiores e predestinados que seriam descendentes da elite de seres da antiga Atlântida fez parte de um esforço (delirante) de dar sentido a impulsos instintivos de destruição do outro. Os gastos que o Terceiro Reich despendeu para enviar arqueólogos e antropólogos da SS para o Tibete no Himalaia em busca de provas de que ali estavam os sobreviventes de Atlântida e a prova da existência dos ancestrais dos arianos, foram esforços para tentar racionalizar o preconceito e o ódio.

Banda "Massacration": outra paródia
levada a sério pelos parodiados
Como demonstraram as reações à simulação paródica de Antonio Prata, hoje os neocons tomam essas ideias descontextualizadas, como clichê, como se tivessem valor em si mesmas, sem a necessidade de justificativa, ideologia ou doutrina. Basta ter “culhões”. Se no passado foram tragédias, hoje se repetem como farsa descontextualizada, mas sempre à espera de um movimento político que as traduza. Isso é o que estamos chamando de retrofascismo, tão danoso quanto o do passado, porém mais fácil de ser revelado.

Consequências


O mecanismo semiótico do pastiche, o fenômeno do retrofascismo e sua relação esquizofrênica com a História e o tempo produz algumas consequências:

(a) a colcha de retalhos de signos faz perder o nível “meta”, temporal, tornando tudo exagerado e clichê. A sua repetição como farsa na atualidade é levada tão a sério ao ponto de se perder o senso de humor da paródia. Um exemplo talvez distante da política, mas que exemplifica esse mecanismo: a banda “Massacration”, paródia dos metaleiros posers criado no extinto programa Hermes e Renato da MTV passa a ser levada a sério por metaleiros reais, chegando, inclusive, a abrir festivais do estilo musical como mais uma atração: talvez por que eles sejam tão caricatos quanto a caricatura e acabam, por isso, se reconhecendo nela;

(b) Esses comportamentos clichês e saturados decorrentes do pastiche generalizado na cultura, produz um problema sério para o Jornalismo: repórteres começam a acreditar que os acontecimentos são sempre estrondosos, exagerados, aberrantes, bastando o jornalista abrir os olhos e registrá-los. Rapidamente começa a se perder o “faro jornalístico”, o instinto de achar que é necessário checar a fonte, pressentir armadilhas. Comportamentos exagerados e copiosos de protagonistas de acontecimentos atraem repórteres que, ingenuamente, podem cair em simulações na ansiedade de que esses fatos confirmem pautas.

(c) entre a simulação da fonte e a simulação paródica há um ponto comum: a caricatura e o exagero, sejam dos textos ou de acontecimentos que tanto leitores como jornalistas passam a levar ao pé da letra, porque perderam o senso de humor. Acreditam que a realidade é assim mesma: clichê e exagerada. Por isso, a paródia está perdendo a graça para se transformar em uma poderosa ferramenta de simulação.

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