O filme “Beleza Americana” (American Beauty, 1999), premiado com o Oscar
de melhor filme, é uma narrativa sobre a transformação íntima de um
protagonista que causa um turbilhão em todos ao redor. Associado ao princípio
revelado logo no início de que acompanhamos a trajetória de um ano de vida de um
protagonista que diz que já está morto, o filme propicia uma difícil questão: um filme que segue as convenções de gênero hollywoodiano pode criar no espectador um
acontecimento de transformação semelhante ao que vemos no protagonista? Apesar das convenções de gênero, “Beleza
Americana” do diretor Sam Mendes é um tipo especial de filme, pois explora
mitologias e arquétipos da transmutação alquímica da matéria, onde rosas, a cor
vermelha, o sangue e a morte criam uma complexa simbologia, bem diferente da
Jornada do Herói clássica – trevas, caos e morte não é destruição, mas momentos
de regeneração e redenção.
Um espectador vai
assistir ao filme Beleza Americana no
cinema. Quebra a sua rotina e vai ao cinema para ficar sentado por duas horas
em uma sala escura vendo a narrativa fílmica que começa com uma locução em of do protagonista chamado Lester
dizendo que contaria a história da sua vida e que, em um ano, estaria morto.
Após uma narrativa
convencional pelos parâmetros hollywoodianos do gênero, o filme termina de
forma abrupta em mais uma locução em of
de Lester, dessa vez após tomar um tiro mortal e descrever a sua própria
experiência desse momento. Lester faz um balanço sobre “os pequenos momentos”
de sua “estúpida vida”, e fala que apesar disso “é difícil ficar bravo quando
há tanta beleza no mundo”. E profeticamente fala ao espectador: “um dia você
saberá do que estou falando”.
Corta! A tela fica
escura por longos segundos, jogando esse espectador em uma escuridão e silêncio
totais, até começar a aparecer os créditos e as primeiras luzes da sala de projeção
ser acesas, chamando-o de volta a sua rotina. O abrupto final revela que toda a
narrativa, na verdade, é contada por Lester no momento de sua morte, como
sugere no início. Como poderemos retornar à rotina linear e repetitiva do tempo
do relógio do cotidiano depois dessa experiência? Afinal,acompanhamos uma
inusitada perturbadora experiência temporal: toda a narrativa do filme sobre um
ano da vida de Lester se passou em uma fração de temponum estado límbico entre
a vida e a morte, onde o protagonista diz que, ao contrário do que pensamos, a
vida não passa diante dos olhos, mas se “se alonga eternamente como um oceano
de tempo”.
O filme de Sam
Mendes, Beleza Americana, é um trabalho
que merece ser visto e revisto porque podemos considerá-lo um tipo de filme
gnóstico bem especial: um filme alquímico,
tanto pela sua narrativa como pelo conteúdo. Como todo filme alquímico, são
estórias de transformação do protagonista através da transmutação e dissolução
que parecem provocar o espectador: será que, assim como o personagem, também o
espectador será mudado? Como ele retornará à sua rotina após acompanhar a experiência
de um protagonista que rejeita uma ordem pré-estabelecida e intencionalmente
conduz sua vida ao caos e morte em busca da regeneração? E, o que torna o filme
ainda mais complexo, é possível essa transformação alquímica acontecer dentro
das convenções hollywoodianas de gênero? Afinal, foi um filme premiado com o
Oscar.
O filme Beleza Americana nos oferece a
possibilidade de entender essa especificidade de filme gnóstico, aquele que
trabalha com mitologias e arquétipos alquímicos. Um tipo bem peculiar de
Jornada do Herói: diferente da convencional, onde o herói seja extrovertido (que quer transformar o
mundo como Neo em Matrix, por exemplo) ou introvertido
(através da contemplação cultiva seus próprios valores internos, como Truman em
“Show de Truman”), no filme alquímico teríamos a centroversão - não há mais o externo e o interno, o herói quer
perder o ego e entrar em harmonia com energias e formas inconscientes que
estruturam a existência e o Universo. Ele busca as trevas, o caos e a morte
como forma de regeneração ou redenção.O herói consome-se a si mesmo.
O Filme
Beleza Americana acompanha a trajetória da crise de
meia idade e o despertar de Lester Burnham (Kevin Spacey). A esposa (Carolyn –
Annette Bening) é uma workaholic frígida e envolvida totalmente com a ideia de
sucesso, consumidora ávida de livros de autoajuda. Vive repetindo como mantras
frases do seu guru, um corretor de imóveis bem sucedido. Lester vive em uma rua
agradável, ladeada de árvores agradáveis, em uma bela casa, e tendo como
vizinhos, de um lado, gays encantadores e simpáticos, e, do outro, um coronel linha-dura
da reserva. Sua filha adolescente Jane é uma típica adolescente tímida e
introvertida e que tem vergonha dos pais.
Tudo dentro da
expectativa média da normalidade de classe média, até que ele começa a olhar tudo
mais de perto. Ao conhecer a amiga da sua filha, a cheerleader Ângela (Mena Suvari), Lester tem uma espécie de
epifania: a vê em uma chuva de pétalas de rosas, flutuando em torno do seu
rosto paralisado. Os sentimentos que a adolescente desperta nele desencadeará
uma revisão da sua carreira, seu estilo de vida e a relação com todos ao seu
redor: abandona seu emprego, fuma maconha, tenta mostrar a sua esposa o quão
absurdo são os valores de competição e sucesso para tentar fazê-la retornar a
ser ela mesma, começa a fazer musculação na garagem de sua casa, busca
trabalhos em que tenha a mínima responsabilidade etc.
Perdemos a capacidade de ver a beleza
O tema recorrente
do filme é a beleza. Cada personagem perdeu a capacidade de vê-la: Carolyn
tenta criar uma aparência de sucesso nos mínimos detalhes da sua vida; Jane
tenta criar um vínculo com o mundo através de Ângela, a cheerleader fútil cujo
único sonho e o de ser uma garota popular; o coronel aposentado que tenta criar
uma aparência de rigidez moral para encobrir suas inseguranças etc. E Lester
quer criar situações que conduzam todos a um ponto de ruptura.
Quando alguém como
Lester começa a ver a beleza do que é realmente viver a vida, as pessoas ao
redor começam a sentir seu modo de vida ameaçado. O que significa morte certa
para ele, cujo destino já nos é avisado por Lester logo nas primeiras linhas de
diálogo do filme.
As fases da transmutação alquímica
Diferente da
Jornada do Herói tradicional (plenitude, queda, martírio, morte e ressureição),
na jornada de transmutação do herói alquímico teríamos as seguintes fases que
são bem distintas em Beleza Americanae
que, na Alquimia, seriam as fases da transmutação da própria matéria:
Nigredo (enegrecimento); o caos
primário de indiferenciação. Seus símbolos são o oceano, a serpente ouroboros e
o caduceu de Mercúrio. O estado psicológico é a melancolia, associada à
influência de Saturno.Vemos nas primeiras sequências Lester
melancólico dentro da rotina e mesmice da vida familiar e trabalho. Tudo é a
mesma coisa, não há singularidade, sentido ou beleza.
As três fases alquímicas da transmutação: nigredo, albedo e rubedo |
Albedo (enbranquecimento):
Sob a influência da Lua o caos é estabilizado, imobilizado em um estado
abstrato, ideal. É o momento em que Lester está calmo e sereno em meio ao
turbilhão que criou em todos ao redor. Seus sonhos e fantasias podem torná-lo
um “lunático”, pois sua experiência temporal é de suspensão: epifania, imagens
de pétalas de rosas suspensas em torno dele enquanto vê o corpo nu de Ângela
deitado sobre um colchão de rosas.
Rubedo (enrubescimento): a
esse estado ideal e congelado é injetado o sangue, o Sol, a vida. O microcosmo
encontra sua conexão com o macrocosmo. O sangue jorrando da sua cabeça ao ser
assassinado pelo seu vizinho psicótico sugere conter as sementes de rubedo:
Lester descobre o “oceano do tempo” em um segundo e descobre “toda a beleza do
mundo”. Seu ser é transmutado e redimido ao ter o insight do Todo em sua “estúpida vida”.
Por isso as
rosas vermelhas (americanbeauty,
espécie de rosa híbrida trazida da França para os EUA em 1875) são a chave de
compreensão alquímica do filme: no início do filme vemos Carolyn, descrita por
Lester como uma esposa triste, meticulosamente cortando e uniformizando as
rosas do jardim – um sinal de beleza manipulada para tentar criar a aparência
de um lar bem sucedido. O símbolo de rubedo
subjugado por um mundo de aparências. Em
sua epifania da fase alquímica de albedo,
Lester vê um momento do tempo suspenso, congelado na imagem ideal das pétalas
de rosas flutuando em torno dele. Imagem ideal que será colocada em movimento
com o seu próprio sangue, momento em que Lester encontrará “toda a beleza do
mundo”.
A ambiguidade de Beleza Americana
Somado a essa
estória que acompanha arquetipicamente as fases da transmutação alquímica da
matéria, temos uma perturbadora estrutura narrativa que confronta o tempo
newtoniano da vida cotidiana (repetições, iconografia de objetos alinhados,
uniformizados e proporcionais como salas de jantar, fachadas de casas e
escritórios) com o tempo psicologicamente relativo de Lester, ora suspenso e congelado,
ora em ritmo lento ou frenético. Sugere que esse modelo temporal
particularmente humano pode nos fornecer uma saída para a estrutura de tempo
homogênea e repetitiva das nossas vidas diárias.
Mas a
ambiguidade de Beleza Americana está
nesse duplo vínculo de ser, ao mesmo tempo, um filme libertário e também
comercial que segue as convenções industriais de gênero. Claramente, o filme
obedece ao clichê tradicional da quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem:
quem quebra a ordem social, moral ou política nos filmes hollywoodianos
deve ser punido no final para que a ordem seja restabelecida e o espectador
volte tranquilo e resignado para casa. Lester é punido com a morte, numa
leitura tradicional dessa fantasia-clichê.
Mas Sam Mendes
ofereceu mais ao espectador: o monólogo final de Lester mostra que por trás da
punição forçada pelo clichê hollywoodiano há regeneração e redenção na fala
conclusiva de Lester. O corte seco e os segundos de escuridão que se seguem
antes dos créditos finais parecem sugerir ao espectador que inicie também a sua
fase de nigredo: ao invés de retornar
resignado para a sua rotina, sinta a melancolia de uma realidade em que algum
momento a beleza se perdeu.
Ficha Técnica
- Título: Beleza Americana
- Direção: Sam Mendes
- Roteiro: Alan Ball
- Elenco: Kevin Spacey, Annette Bening, Thora Birch, Wes Bentley, Mena Suvari
- Produção: DreamWorks SKG
- Distribuição: Universal Home Video
- Ano: 1999
- País: EUA