Depois de uma safra de filmes de ficção científica que vai de “Cidade
das Sombras”, passando por “Matrix” até chegar a “Distrito 9”, assistir ao
filme “Jogos Vorazes” (The Hunger Games, 2012) é um retrocesso. Seu mundo distópico
inspirado no imaginário orwelliano do Big Brother do livro clássico “1984” daria uma aparência supostamente “contestadora” e "crítica" a um produto que tenta reproduzir o
sucesso de franquias como “Crepúsculo” e “Harry Potter” com um produto "diferenciado". Porém, a crítica cinematográfica parece desatualizada: o sistema que banca o discurso “contestador”
de filmes como esse há muito superou o Big Brother de Orwell e é capaz de
ironicamente brincar com seus mundos distópicos e fazer o reality show rir de
si mesmo.
Adaptado do livro voltado ao
público juvenil The Hunger Games de
Suzanne Collins, o filme Jogos Vorazes
foi saudado pela crítica como um produto diferenciado dentro da estratégia
hollywoodiana de produção de franquias como Crepúsculo
ou Harry Potter. Ao lado dos
indefectíveis amores impossíveis e adolescentes incompreendidos e melancólicos
com os tradicionais problemas de relacionamentos familiares, Jogos Vorazes teria um conteúdo “mais
contestador”, por ser inspirado em obras distópicas como 1984 e Admirável Mundo Novo
com discussões sobre o autoritarismo, exploração de classes, culto a
celebridades, poder, obediência e controle.
Como explicar que um blockbuster hollywoodiano tenha um “conteúdo
contestador”, ainda mais em se tratando de obras para um público juvenil cujos
filmes se caracterizam pela aplicação rígida das regras do gênero? Parece que a
crítica cinematográfica anda desatualizada em relação à indústria de
entretenimento contemporânea: há algum tempo o modelo distópico de Orwell e
Huxley se tornou tema dileto de Hollywood, pelo fato de que se tornou um clichê em filmes do gênero ficção-científica pretensamente contestadores.
Principalmente, porque com a nova configuração do Estado e do Poder criada pela
Globalização, esse modelo orwelliano de controle social e dominação ficou
ultrapassado.
Mas antes de tratarmos dessa
questão que é central numa crítica a Jogos
Vorazes, vamos fazer uma breve sinopse da narrativa do filme.
O filme
Um Estado ditatorial comandado
por uma elite ociosa e cruel domina uma sociedade pós- apocalíptica a partir de
uma capital central que subjuga 12 distritos periféricos. São distritos que
oferecem força de trabalho farta e barata, cada um com a sua especialidade
(mineração, metalurgia, alimentos etc.), todos servindo à elite que habita a
Capital.
Depois de uma tentativa de
revolução, os distritos foram derrotados e submetidos a um sistema de dominação
onde a Capital exige um “tributo”: cada distrito oferecerá através de um
sorteio um casal, jovens entre 12 e 18 anos, para competir em um reality show
transmitido ao vivo pela TV chamado The
Hunger Games. Todos lutando até a morte em uma grande região florestal que
faz lembrar o gigantesco estúdio do filme Show
de Truman onde todas as variáveis são controladas computacionalmente pela
produção do programa. O vencedor garante para o seu distrito regalias e bônus
em suprimentos para o próximo ano.
Como afirma o presidente da
Capital (Donald Sutherland), um sistema ideal de dominação onde a esperança
substitui o medo. E para a ociosa elite da Capital, um show de deleite sádico.
O filme acompanhará a trajetória
nos jogos de um casal do distrito 12, Katniss Everdeen (Jennifer Lawrence) e
Peeta Mellark (Josh Hutcherson).
A superação do modelo orwelliano
Depois de filmes com o tema
pós-apocalipse como Matrix, Cidade das Sombras, A Estrada ou de Show de
Truman onde o gênero reality show
foi explorado aos limites metafísicos e teológicos, assistir ao filme Jogos Vorazes é uma experiência
regressiva: soa como algo antigo e ultrapassado.
O modelo de Estado orwelliano
como um gigantesco Big Brother tornou-se tão antigo frente à nova ordem mundial
da Globalização, que se tornou tema dileto para Hollywood parecer
“contestador”, para se confrontar à crítica comum feita a ela de produzir filmes
alienantes e conformistas.
De Cidade das Sombras, passando por Matrix até chegar ao recente Distrito
9, temos filmes inovadores ao apresentar formas cruéis de dominação não
mais regidas pelo modelo orwelliano de Estados opressivos guiados por uma elite
que explora a força de trabalho de humanos inferiorizados. Esse modelo estaria
inserido no paradigma do desumano, discussão ainda dentro
campo da discussão do Humanismo, da Ética e da Moral. Torturas, humilhações e
assassinatos são impingidos por máquina virtuais, produtores de TV indiferentes
ou elites que exploram a força de trabalho ou riquezas. É o campo da luta de
classes.
Ao contrário, filmes como Matrix ou Distrito 9 (de forma alegórica) mostram o inumano: seres humanos
que nem mais para serem explorados ou dominados servem. São considerados
redundantes e, portanto, devem ser confinados, excluídos ou eliminados. No
máximo, como em Matrix, servem como pilha para fornecer energia às máquinas dominantes. O Estado já não mais existe
(foi privatizado ou reduzido à função mínima de polícia) e corporações assumem
o papel de excluir ou eliminar a população “redundante”, seja por meio do
genocídio através de jogos de caça, como no filme de ficção científica mexicano
2033 (2009) ou reduzir o ser humano a
uma atração de entretenimento como em Show
de Truman.
Esses filmes estariam
sintonizados com aquilo que Zygmunt Bauman descreve como “baixas colaterais”
trazidas pelo processo de Globalização econômica: um sistema econômico que não
cria mais desigualdades, crescimento dos abismos
das classes ou pobreza como nos sistema econômicos clássicos marcados pela
exploração da força de trabalho. Simplesmente, o pleno desenvolvimento
econômico trouxe a exclusão ou “baixas colaterais”: lixo tóxico, tecnológico e
refugos humanos – velhos, estrangeiros, imigrantes etc., todos sem
possibilidade de serem integrados. Assim como o lixo informático (baterias,
placas etc.) são enterrados em contêineres em algum país africano, da mesma
forma uma massa de “redundantes” são empurrados para periferias, guetos ou
caçados ou barrados pela polícia de imigração, sem possibilidades de
integração. Para o novo sistema global nem são considerados “exército
industrial de reserva”, mas “redundantes” e “superpopulação” - veja BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas, Jorge Zahar Editores, 2005.
Assistir ao filme Jogos Vorazes
faz parecer que Hollywood descobriu a luta de classes e se tornou
“contestadora”. O filme apresenta uma crítica tão ingênua quanto o público ao
qual se destina. É um discurso crítico que poderíamos chamar de complacente, já
que deliberadamente se baseia em um modelo distópico de dominação já antigo e
superado por uma forma mais cruel trazida pela Globalização: a transformação de
humanos em inumanos, sem chance de integração, nem mesmo para serem objetos de
exploração, refugos que tornam problema de controle populacional ou de saúde
pública pandêmica.
O inumano no gênero reality show
Nem mesmo a “denúncia” que o
filme apresenta sobre a manipulação nos bastidores de um reality show (a manipulação das variáveis feitas pela produção, a
roteirização do programa que elimina a sua suposta natureza reality, a deliberada elaboração de
papeis ou scripts para cada
competidor etc.) pode ser levada a sério como “contestadora”. Desde a série da
TV inglesa Dead Set (2008), uma sátira crítica aos reality shows
ironicamente produzida pela empresa holandesa Endemol (cujo maior produto é o reality Big Brother), sabemos que esse
gênero aprendeu a rir de si mesmo – sobre isso, veja links abaixo.
Criticar as supostas
manipulações e conchavos de bastidores (como aborda o filme Jogos Vorazes) é supérfluo e até os
próprios programas desse gênero já apresentam isso em seus making of e na imprensa especializadas em fofocas.
Tanto isso é verdade que
ironicamente a maior franquia de programas do gênero é o Big Brother, numa referência irônica ao imaginário orwelliano do
sistema autoritário de vigilância. Sintoma de que a distopia de Orwell há muito
já perdeu o seu pode crítico e de contestação: a evolução político-econômica e
tecnológica contemporânea já há muito superou o Estado Big Brother.
Uma verdadeira crítica ao gênero
reality show teria que sair do campo
do escândalo moral para aprofundar a sua natureza inumana, assim como o
filme Show de Truman fez: o protagonista
era criança adotada de uma mãe que o rejeitou, e toda a sua vida foi simulada –
inclusive seus traumas e psiquismo, elementos que supostamente nos tornariam
humanos. A essência do reality show não é a crueldade sádica ou o voyeurismo
desavergonhado dos espectadores: mas a espetacularização da exclusão, a naturalização
de um sistema que exclui estrangeiros, velhos e derrotados em geral. Tão
derrotados, que nem mais para serem explorados servem, a não ser para
oferecerem-se como espetáculo da sua própria eliminação.
Em síntese, Jogos Vorazes é o
último truque de um discurso “contestador” patrocinado pelo próprio sistema que
sabe que já há muito superou as imagens distópicas e George Orwell e Adous Huxley.
Ficha Técnica
- Título: Jogos Vorazes (The Hunger Games)
- Diretor: Gary Ross
- Roteiro: Gary Ross baseado no livro homônimo de Suzanne Collins
- Elenco: Stanley Tucci, Wes Bentley, Jennifer Lawrence, Josh Hutcherson, Donald Sutherland
- Produção: Lionsgate
- Distribuição: Paris Filmes
- Ano: 2012
- País: EUA