Cresce o número de artistas digitais que tem se dedicado a colorizar
através de computação gráfica fotografias de personagens e eventos históricos do
século XIX e começo do século XX. É como se quisessem transformar sombras de um
passado distante em eventos e pessoas mais próximas e familiares ao nosso
presente. Ao mesmo tempo temos o revisionismo do politicamente correto que
retira digitalmente cigarros de fotografias de antigos personagens da política
e do cinema. Essa obsessão revisionista da História seria o sintoma do fim do
chamado “tempo histórico” pela expansão do presente. Uma forma alterada de
tempo que substituiu o tempo histórico onde o presente foi tão inflacionado
pelas tecnologias virtuais e hiper-reais que começou a absorver todo o passado
segundo a sua imagem e semelhança.
No final do filme Obrigado por Fumar (2005), o senador
ambientalista líder de uma feroz cruzada antitabagista defende em uma
entrevista na TV a utilização de tecnologia digital para “atualizar filmes
antigos, tirando de cena os cigarros”, que seriam substituídos, por exemplo,
por pirulitos inseridos digitalmente. “Mas isso não é mudar a História?”,
pergunta uma assombrada repórter. “Não, eu acho que estamos melhorando a
História”, responde convicto o senador.
Pois essa tendência revisionista
em relação ao passado parece ser uma obsessão na atualidade. Artistas como
Jordan Lloyd, Dana Keller e Sanna Dullaway são alguns exemplos dessa tendência
de colorizar digitalmente fotografias históricas do final do século XIX e
início do século XX. A cuidadosa adição de cor produz o efeito de alterar dramaticamente
nossa percepção da História: de uma relíquia do passado, as fotos passam a
adquirir um estranho brilho de ser uma extensão do presente.
Elizabeth Taylor (crédito: Sanna Dullay) |
Por exemplo, as fotos
colorizadas de Audrey Hepburn ou de Elizabeth Taylor as transformam de atrizes
da história do cinema em estrelas sexy de hoje. A foto de Einstein sentado em
uma praia nos dá uma nova dimensão do gênio: como se a textura dos tecidos das
roupas, o brilho do sapato da companhia do cientista e o cabelo branco
brilhando ao sol conferissem uma percepção de atualidade. As fotos não parecem
mais representar algo do passado, mas
presentificar, atualizar.
Audrey Hepburn (crédito: Sanna Dullaway) |
Na opinião da artista Dana
Keller, fotos de figuras históricas, eventos famosos e velhas fotos de famílias
deixam de ser “sombras de um passado de um tempo muito longo para nos lembrar
ou se relacionar”. Com a colorização estabelecemos uma “familiaridade renovada
com o passado, forçando a ver uma fotografia antiga com uma nova perspectiva,
como se o passado não fosse há tanto tempo assim”.
Se de um lado nessa tendência
revisionista do passado temos a colorização digital, que esses artistas definem
como um “hobby” pessoal, de outro lado temos outro caso mais agressivo: o
revisionismo politicamente correto da censura do cigarro nas fotos. Como o caso
do pôster de uma mostra de filmes de Jacques Tati na França onde a famosa
silhueta instantaneamente reconhecida do personagem Monsieur Hulot com o
cachimbo na boca é substituída digitalmente por um catavento. O olhar
politicamente correto do presente não suportaria em uma foto tão icônica a
convivência de uma criança com a presença do cachimbo e do tabaco.
O que há em comum nessas duas
atitudes revisionistas é o de olhar o passado como algo que talvez não esteja a
tanto tempo assim distante de nós. É como se o passado fosse uma “familiaridade
renovada”, isto é, uma espécie de extensão do presente. Essa compressão do
tempo torna-se tão violenta que muitos espectadores ao assistirem filmes western de John Wayne em preto e branco
feitos na década de 1950 passam a acreditar que são realmente contemporâneos da
época das diligências do século XIX.
Monsieur Hulot não deve mais usar cachimbo |
O paradoxo dessa colorização
digital de documentos históricos é que se o objetivo declarado é de encontrar
neles o mundo “real e vibrante” da época, ao mesmo tempo revela um desejo
arbitrário de submeter a alteridade do passado à banalidade do presente.
O que está por trás dessa
presentificação do passado? Que sintoma do imaginário social representaria essa
atitude revisionista de tornar o passado familiar ao nosso olhar do presente?
O presente extenso
Hans Gumbrecht, professor de
literatura da Universidade de Stanford, tenta explicar o porquê dessa obsessão
contemporânea com a memória: de querer restaurar cada peça de mobília, cada
calhambeque, museus e parques temáticos que cada vez mais tentam reconstituir
ou simular o passado por meio de sofisticados aparatos
tecnológicos e a constante comemoração de centenários ou aniversários de
eventos históricos que motivam grandes eventos, feiras, congressos e
festividades. Gumbrecht vê nesse grande número de fenômenos culturais um
sintoma dos novos tempos marcados por uma crise do chamado “tempo histórico” e
o surgimento do que ele chama de "presente extenso": um presente que se expandiu, uma forma
alterada de tempo que substiuiu o tempo histórico onde o presente foi tão
inflacionado que começa a absorver todo o passado segundo os seus próprios parâmetros.
O que era o tempo histórico?
Para Gumbrecht, foi uma força cultural que se desenvolveu passo a passo desde os
séculos da Renascença europeia que deu um perfil à nossa experiência de mundo
durante muito tempo, e que agora chegaria ao seu fim. Esse tempo seria marcado
por uma assimetria entre passado e presente da seguinte maneira: enquanto
acreditávamos escolher o nosso futuro a partir de um horizonte de futuros
possíveis, apostávamos na possibilidade de adaptarmos o nosso presente pelas
experiências extraídas do passado. Essas lições se tornavam pontos de
orientação para a escolha de um futuro ideal.
Experimentávamos cada novo
presente como uma etapa de transição em direção ao futuro. Queríamos deixar o
passado para trás que se figurava diferente em relação ao futuro que queríamos
alcançar. Agora, tudo indica que esse presente de transição se expandiu a tal
ponto que passou a ver o passado a sua imagem e semelhança. O passado passa a
ficar simétrico ao presente, sem conseguirmos tirar qualquer lição dele: por
isso, o futuro torna-se incerto e fechado.
Albert Einstein, 1939 (crédito: Paul Edwards) |
Nessa tese de Gumbrecht há dois
paradoxos: de um lado o fato de quanto mais estamos obcecados com o passado,
menos lições tiramos dele; e do outro quanto mais o progresso tecnológico
supostamente acelera o tempo histórico transformando o mundo mais rapidamente
do que em qualquer época anterior, mais o presente se estende bloqueando
qualquer visão de futuro.
A explicação desse paradoxo
estaria no avanço tecnológico que cada vez mais determina uma posição
revisionista do passado como no exemplo da colorização digital das fotos
históricos e do revisionismo do politicamente correto que, por exemplo, retira
digitalmente os charutos dos rostos de Winston Churchill ou que vê na obra do
escritor Monteiro Lobato racismo e machismo.
Esse fenômeno cultural do
presente extenso estaria por toda parte, da extensão da adolescência e o
adiamento da entrada do jovem no mercado de trabalho até o surgimento dos
jovens adultos que estendem a irresponsabilidade e imaturidade de sentimentos a
faixas etárias cada vez mais elevadas como um elogio ao “espírito jovem”.
O passado hiper-real
Charlie Chaplin, 1916 (crédito: Sanna Dullay) |
Mas há algo de mais profundo
nessas intervenções digitais em documentos históricos: a virtualidade
e a hiper-realidade que ameaçam destruir o passado por meio da “perfeição”.
Semioticamente falando, toda fotografia poderia ser descrita como a presença de
uma ausência: signos que representam um momento que já passou, imagens de alguém
que já morreu, testemunhos de eventos que aconteceram. Essa irredutibilidade do
signo fotográfico como o grão da luz de um momento que já passou, mas que foi
capturado pelo negativo e revelado para nós é o que é destruído por essa “familiarização
do passado”.
As imagens digitais tornam-se
mais reais do que a própria realidade. Se a fotografia é uma ilusão poética de
presença, ela passa a ser ameaçada por aquilo que o pensador Jean Baudrillard
chamava de “ilusão da recriação”: revivalística, realista, mimética,
hologramática. Abole o jogo da ilusão proposto pelo signo fotográfico pela
perfeição da reprodução. Para Baudrillard, essa virtualização trazida pelas
potencialidades da tecnologia digital seria a última ameaça pela absoluta
auto-identidade, autocontemporaneidade, proximidade absoluta.
Vemos Audrey Hepburn estranhamente com uma sensualidade do cinema atual. De tantas revisões possíveis que cada época poderá fazer das fotos de Audrey Hepburn de acordo com a tecnologia disponível no momento, ela poderá, dessa forma, sofrer o mesmo destino de Marilyn Monroe que profeticamente Andy Warhol apontou na década de 1960: reproduções sucessivas com uma curva de alteração em relação ao original até o ponto em que, como no caso de Marilyn, não saberemos mais quem, de fato, foi ela.
Vemos Audrey Hepburn estranhamente com uma sensualidade do cinema atual. De tantas revisões possíveis que cada época poderá fazer das fotos de Audrey Hepburn de acordo com a tecnologia disponível no momento, ela poderá, dessa forma, sofrer o mesmo destino de Marilyn Monroe que profeticamente Andy Warhol apontou na década de 1960: reproduções sucessivas com uma curva de alteração em relação ao original até o ponto em que, como no caso de Marilyn, não saberemos mais quem, de fato, foi ela.
Com essa crescente perda de
assimetria do presente em relação ao passado, como sugere Gumbrecht, perdemos a
chance de aprendermos as lições da História. O passado torna-se uma imagem
simétrica e espelhada de nós mesmos. Talvez, por isso, a propensão de
repetirmos os erros do passado. As religiões hindus chamam isso de karma.