quarta-feira, novembro 27, 2013

Fotos colorizadas digitalmente fazem revisão hiper-real da História


Cresce o número de artistas digitais que tem se dedicado a colorizar através de computação gráfica fotografias de personagens e eventos históricos do século XIX e começo do século XX. É como se quisessem transformar sombras de um passado distante em eventos e pessoas mais próximas e familiares ao nosso presente. Ao mesmo tempo temos o revisionismo do politicamente correto que retira digitalmente cigarros de fotografias de antigos personagens da política e do cinema. Essa obsessão revisionista da História seria o sintoma do fim do chamado “tempo histórico” pela expansão do presente. Uma forma alterada de tempo que substituiu o tempo histórico onde o presente foi tão inflacionado pelas tecnologias virtuais e hiper-reais que começou a absorver todo o passado segundo a sua imagem e semelhança.

No final do filme Obrigado por Fumar (2005), o senador ambientalista líder de uma feroz cruzada antitabagista defende em uma entrevista na TV a utilização de tecnologia digital para “atualizar filmes antigos, tirando de cena os cigarros”, que seriam substituídos, por exemplo, por pirulitos inseridos digitalmente. “Mas isso não é mudar a História?”, pergunta uma assombrada repórter. “Não, eu acho que estamos melhorando a História”, responde convicto o senador.

Pois essa tendência revisionista em relação ao passado parece ser uma obsessão na atualidade. Artistas como Jordan Lloyd, Dana Keller e Sanna Dullaway são alguns exemplos dessa tendência de colorizar digitalmente fotografias históricas do final do século XIX e início do século XX. A cuidadosa adição de cor produz o efeito de alterar dramaticamente nossa percepção da História: de uma relíquia do passado, as fotos passam a adquirir um estranho brilho de ser uma extensão do presente.


Elizabeth Taylor (crédito: Sanna Dullay)
Por exemplo, as fotos colorizadas de Audrey Hepburn ou de Elizabeth Taylor as transformam de atrizes da história do cinema em estrelas sexy de hoje. A foto de Einstein sentado em uma praia nos dá uma nova dimensão do gênio: como se a textura dos tecidos das roupas, o brilho do sapato da companhia do cientista e o cabelo branco brilhando ao sol conferissem uma percepção de atualidade. As fotos não parecem mais representar algo do passado, mas presentificar, atualizar.
Audrey Hepburn (crédito: Sanna Dullaway)


Na opinião da artista Dana Keller, fotos de figuras históricas, eventos famosos e velhas fotos de famílias deixam de ser “sombras de um passado de um tempo muito longo para nos lembrar ou se relacionar”. Com a colorização estabelecemos uma “familiaridade renovada com o passado, forçando a ver uma fotografia antiga com uma nova perspectiva, como se o passado não fosse há tanto tempo assim”.

Se de um lado nessa tendência revisionista do passado temos a colorização digital, que esses artistas definem como um “hobby” pessoal, de outro lado temos outro caso mais agressivo: o revisionismo politicamente correto da censura do cigarro nas fotos. Como o caso do pôster de uma mostra de filmes de Jacques Tati na França onde a famosa silhueta instantaneamente reconhecida do personagem Monsieur Hulot com o cachimbo na boca é substituída digitalmente por um catavento. O olhar politicamente correto do presente não suportaria em uma foto tão icônica a convivência de uma criança com a presença do cachimbo e do tabaco.

O que há em comum nessas duas atitudes revisionistas é o de olhar o passado como algo que talvez não esteja a tanto tempo assim distante de nós. É como se o passado fosse uma “familiaridade renovada”, isto é, uma espécie de extensão do presente. Essa compressão do tempo torna-se tão violenta que muitos espectadores ao assistirem filmes western de John Wayne em preto e branco feitos na década de 1950 passam a acreditar que são realmente contemporâneos da época das diligências do século XIX.

Monsieur Hulot não deve mais usar cachimbo
O paradoxo dessa colorização digital de documentos históricos é que se o objetivo declarado é de encontrar neles o mundo “real e vibrante” da época, ao mesmo tempo revela um desejo arbitrário de submeter a alteridade do passado à banalidade do presente.

O que está por trás dessa presentificação do passado? Que sintoma do imaginário social representaria essa atitude revisionista de tornar o passado familiar ao nosso olhar do presente?

O presente extenso


Hans Gumbrecht, professor de literatura da Universidade de Stanford, tenta explicar o porquê dessa obsessão contemporânea com a memória: de querer restaurar cada peça de mobília, cada calhambeque, museus e parques temáticos que cada vez mais tentam reconstituir ou simular o passado por meio de sofisticados aparatos tecnológicos e a constante comemoração de centenários ou aniversários de eventos históricos que motivam grandes eventos, feiras, congressos e festividades. Gumbrecht vê nesse grande número de fenômenos culturais um sintoma dos novos tempos marcados por uma crise do chamado “tempo histórico” e o surgimento do que ele chama de "presente extenso": um presente que se expandiu, uma forma alterada de tempo que substiuiu o tempo histórico onde o presente foi tão inflacionado que começa a absorver todo o passado segundo os seus próprios parâmetros.

O que era o tempo histórico? Para Gumbrecht, foi uma força cultural que se desenvolveu passo a passo desde os séculos da Renascença europeia que deu um perfil à nossa experiência de mundo durante muito tempo, e que agora chegaria ao seu fim. Esse tempo seria marcado por uma assimetria entre passado e presente da seguinte maneira: enquanto acreditávamos escolher o nosso futuro a partir de um horizonte de futuros possíveis, apostávamos na possibilidade de adaptarmos o nosso presente pelas experiências extraídas do passado. Essas lições se tornavam pontos de orientação para a escolha de um futuro ideal.

Experimentávamos cada novo presente como uma etapa de transição em direção ao futuro. Queríamos deixar o passado para trás que se figurava diferente em relação ao futuro que queríamos alcançar. Agora, tudo indica que esse presente de transição se expandiu a tal ponto que passou a ver o passado a sua imagem e semelhança. O passado passa a ficar simétrico ao presente, sem conseguirmos tirar qualquer lição dele: por isso, o futuro torna-se incerto e fechado.

Albert Einstein, 1939 (crédito: Paul Edwards)
Nessa tese de Gumbrecht há dois paradoxos: de um lado o fato de quanto mais estamos obcecados com o passado, menos lições tiramos dele; e do outro quanto mais o progresso tecnológico supostamente acelera o tempo histórico transformando o mundo mais rapidamente do que em qualquer época anterior, mais o presente se estende bloqueando qualquer visão de futuro.

A explicação desse paradoxo estaria no avanço tecnológico que cada vez mais determina uma posição revisionista do passado como no exemplo da colorização digital das fotos históricos e do revisionismo do politicamente correto que, por exemplo, retira digitalmente os charutos dos rostos de Winston Churchill ou que vê na obra do escritor Monteiro Lobato racismo e machismo.

Esse fenômeno cultural do presente extenso estaria por toda parte, da extensão da adolescência e o adiamento da entrada do jovem no mercado de trabalho até o surgimento dos jovens adultos que estendem a irresponsabilidade e imaturidade de sentimentos a faixas etárias cada vez mais elevadas como um elogio ao “espírito jovem”.

O passado hiper-real


Charlie Chaplin, 1916 (crédito: Sanna Dullay)
Mas há algo de mais profundo nessas intervenções digitais em documentos históricos: a virtualidade e a hiper-realidade que ameaçam destruir o passado por meio da “perfeição”. Semioticamente falando, toda fotografia poderia ser descrita como a presença de uma ausência: signos que representam um momento que já passou, imagens de alguém que já morreu, testemunhos de eventos que aconteceram. Essa irredutibilidade do signo fotográfico como o grão da luz de um momento que já passou, mas que foi capturado pelo negativo e revelado para nós é o que é destruído por essa “familiarização do passado”.

As imagens digitais tornam-se mais reais do que a própria realidade. Se a fotografia é uma ilusão poética de presença, ela passa a ser ameaçada por aquilo que o pensador Jean Baudrillard chamava de “ilusão da recriação”: revivalística, realista, mimética, hologramática. Abole o jogo da ilusão proposto pelo signo fotográfico pela perfeição da reprodução. Para Baudrillard, essa virtualização trazida pelas potencialidades da tecnologia digital seria a última ameaça pela absoluta auto-identidade, autocontemporaneidade, proximidade absoluta. 

Vemos Audrey Hepburn estranhamente com uma sensualidade do cinema atual. De tantas revisões possíveis que cada época poderá fazer das fotos de Audrey Hepburn de acordo com a tecnologia disponível no momento, ela poderá, dessa forma, sofrer o mesmo destino de Marilyn Monroe que profeticamente Andy Warhol apontou na década de 1960: reproduções sucessivas com uma curva de alteração em relação ao original até o ponto em que, como no caso de Marilyn, não saberemos mais quem, de fato, foi ela.

Com essa crescente perda de assimetria do presente em relação ao passado, como sugere Gumbrecht, perdemos a chance de aprendermos as lições da História. O passado torna-se uma imagem simétrica e espelhada de nós mesmos. Talvez, por isso, a propensão de repetirmos os erros do passado. As religiões hindus chamam isso de karma.

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