Sem querer o estudante da USP que simulou ser um candidato atrasado do
Enem, cujas fotos ocuparam primeiras páginas de jornais e portais de Internet,
acabou abrindo uma perspectiva de contra-ataque na verdadeira guerrilha semiológica que
toma conta da opinião pública brasileira: contra a manipulação midiática, a
simulação; contra a mentira, o seu paroxismo: o simulacro! É a “bomba
pós-moderna”, que ajudou não só a implodir como colocou a nu o processo de
construção de bombas semióticas, como as que a mídia detona contra o Enem. A estratégia irônica do
contra-ataque através da simulação como forma de desmoralizar a mídia segue a tática como a do agitador cultural Joey Skaggs (famoso nos EUA por "pegadinhas" contra a
TV e jornais) e de manifestantes em Portugal contra as políticas de austeridade.
Nessa semana, uma pessoa fez
mais estragos que dezenas de black blocks depredando fachadas de bancos e de lanchonetes multinacionais. Trata-se de um aluno do curso de Ciências
Contábeis da USP, Flávio de Queiroz, que simulou diante de fotógrafos e
jornalistas ser um candidato atrasado na prova do Enem realizado no último domingo. A
foto dele dramaticamente tentando escalar as grades da Uninove, na Barra Funda,
São Paulo, saiu em portais da Internet e primeira página do jornal Folha de São
Paulo ao lado de uma sombria manchete: “Quase um terço dos candidatos não faz
Enem”.
Ao lado
da barrigada da rádio CBN em que uma ansiosa repórter confundiu um aviso de um
curso de alemão na USP como um aviso cifrado da bandidagem sobre a chegada da
polícia para apressadamente confirmar uma pauta estipulada pela reportagem (veja links abaixo), o
episódio da simulação do aluno atrasado do Enem pôs a nu o processo de montagem
da notícia com a finalidade de torná-la uma bomba semiótica.
Enem na mídia: sempre à beira da fraude com jornalistas em busca de índices da sua ineficiência |
A bomba semiótica do Enem
Assim
como a ansiosa repórter da rádio CBN que foi a campo cobrir a greve na
FFLCH-USP com a missão de trazer evidências que confirmassem as convicções da
chefia, da mesma forma os jornalistas da grande mídia vão cobrir cada Enem com
uma pauta bem clara: registrar qualquer episódio, imagem, declaração que,
ligadas metonimicamente na diagramação de primeira página ou nos planos das
imagens televisivas, comprovem que o Enem é uma catástrofe sempre à beira da
fraude.
E assim
é todo ano: imagens de estudantes chegando atrasados lutando contra portões,
fotos da prova postadas na Internet, tentativas de fraude e print screens de tweets da debochada série “Aprendi No Enem” onde se ridiculariza
conteúdos e enunciados de questões. A missão dos jornalistas é, portanto,
coletar o máximo que puder índices, fragmentos, indícios potenciais que ajudem
a configurar para a opinião pública um clima generalizado de fraude.
Mas
dessa vez uma contra-estratégia irônica interveio em pleno momento de coleta de
material para a montagem das habituais bombas semióticas: um aluno da USP,
Flávio de Queiroz Segundo, aluno de Ciências Contábeis, simulou ser mais um
desses índices que os repórteres desesperadamente buscam para garantir seus
empregos e carreiras no jornalismo atual da grande mídia. Apareceu em primeiras
páginas sem sequer ser entrevistado e, quando foi, serviu a mais requintada
matéria-prima para ansiosos repórteres: colocou a culpa pelo seu atraso no
transporte, no trem, enfim, no poder público. O Jornal Folha de São Paulo foi
ainda mais sinistro, ao aproximar sua foto a uma manchete sobre o crescimento
de abstenções no exame.
E ainda para piorar, uma matéria
do portal IG foi mais dramática e carregou no tom ao relatar que o candidato
estava “de mãos trêmulas” ao descer das grades do portão da Universidade.
Portal iG: "ele estava de mãos trêmulas" |
Ao
saber da “barriga”, a reposta da grande mídia foi ironizar o estudante, falando
que conseguira os seus “quinze minutos de fama”. Porém, nenhum veículo da
grande mídia publicou o deboche e ironias do estudante da USP: “a imprensa é
muito ingênua”, “nem dei entrevista e saí na primeira página”, “Eu disse que
queria fazer ciências econômicas na UFSCar. Só que nem existe esse curso...”,
sugerindo a ausência de apuração nas reportagens.
A bomba pós-moderna
Era 1995. No último bloco o
telejornal Bom Dia Brasil da TV Globo apresentou uma notícia que o terapeuta internacionalmente
famoso chamado Baba Wa Simba, queniano e filho de missionários
norte-americanos, estava desembarcando em Londres. Nas imagens uma demonstração
que ele fez em pleno saguão do aeroporto de um método que inventara para que
homens e mulheres desenvolvessem “seu lado animal” e liberassem “instintos
reprimidos”. Diversos pacientes de quatro no chão urrando, grunhindo e
devorando um pedaço de carne crua que Bamba Simba jogava. Tudo diante de uma
patuleia de jornalistas e fotógrafos, ávidos por sensacionalismo para preencher
blocos de notícias diversas dos telejornais.
Depois, o choque. Tudo era uma
simulação na qual os repórteres prontamente caíram, sem sequer apurarem minimamente
quem era “Baba Simba”. O terapeuta, na verdade, era o artista plástico Joey
Skaags, famoso nos Estados Unidos pelas “pegadinhas” que apronta contra TV e
jornais com um objetivo estético (ter a sua “arte” captada pela mídia) e outro
ideológico-político: desmoralizar a própria mídia.
O episódio involuntariamente
criado pelo estudante da USP se enquadra nessa estratégia de enfrentar a manipulação midiática com a simulação. Para entendermos a eficácia
dessa bomba pós-moderna é necessário estabelecermos a diferença entre a manipulação e a simulação.
A manipulação, técnica de montagem da bomba semiótica, está no campo
dos signos. Todo signo é uma representação de um referente – evento, objeto,
ideia, imagem mental etc. Os signos podem tanto apresentar como mascarar a
realidade, ou seja, manipular: dizer que algo não existe quando na verdade você
o esconde.
A bomba semiótica é uma
manipulação de um tipo especial: esconde mostrando, por meio de técnicas
metonímicas de justaposição de imagens e áudios. Obriga repórteres a serem
meros coletores de índices (sem apuração ou crítica) para se tornarem depois
símbolos ideologicamente direcionados nas edições e montagens nas ilhas de
edição e reuniões nos “aquários” das redações.
Pensando no diagrama do processo
da comunicação, a manipulação ocorre no canal e na mensagem.
Ao contrário, a simulação ocorre na própria fonte, pois
aparenta ser um evento autêntico, simula ser um índice que docilmente se
oferece aos jornalistas para ser encaixado aos seus scripts e pautas
pré-estabelecidas. Na simulação temos o inverso da manipulação, o blefe: dizer
que possui algo, quando na verdade nada tem. Ao contrário da manipulação que
está no campo dos signos, a simulação está no campo de influência dos
simulacros no sentido atribuído pelo pensador francês Jean Baudrillard.
Blefe: a principal arma contra a mídia
Matéria-prima da Bomba Pós-moderna: simulações e simulacros |
E por que uma “bomba pós-moderna?”
A simulação é uma sensibilidade e, ao mesmo tempo, uma metodologia da nossa era
do espetáculo e das imagens que muitos estudiosos qualificam como pós-moderna:
a massificação e fixação dos clichês e estereótipos cria uma espécie de
autoconsciência da sociedade em relação ao funcionamento e demandas midiáticas.
Fraudes e boatos se sucedem através das mídias, sempre ávidas por notícias,
seja por finalidade ideológica (fazer bombas semióticas) ou por necessidades
mercadológicas (conteúdo para atrair publicidade).
Em 1962 o historiador Daniel
Boorstin no livro The Image – A guide of
pseudoevents in America, apresentou essa contradição interna na expansão
dos meios de comunicação: o crescimento exponencial da necessidade por notícias
– a demanda por notícias é maior do que a capacidade do mundo produzir fatos
novos para as mídias. Para suprir essa “deficiência” do mundo, boatos, mentiras
e fraudes ganham espaço midiático.
O jornalista norte-americano
Chris Berdik classifica cinco tipos de fraudes das fontes midiáticas (veja "Duped! When Journalists Fall for Fake News"): primeiro,
eventos criados por pessoas em busca de fama e publicidade; segundo, eventos,
boatos ou falsos comunicados à imprensa criados por empresários ou CEOs para
manipular mercados de ações; terceiro, citações ou personagens falsos criados
por jornalistas para “apimentar” as notícias e alavancar suas carreiras;
quarto, brincadeiras de jornalistas que normalmente não se destinam a serem
levadas à sério.
E finalmente o quinto: simulações
encenadas por não-jornalistas para satirizar a imprensa, no qual se enquadram
Joey Skaggs e o gozador estudante da USP.
A simulação armada pelo
estudante Flávio de Queiroz abre uma nova perspectiva na guerrilha semiológica
atual: combater a manipulação com a simulação. Como fizeram um grupo de
manifestantes em Lisboa em outubro: para furar o bloqueio midiático, através de
redes sociais fizeram uma simulação de uma manifestação supostamente a favor da
política de austeridade imposto pela “Troika” (Banco Central Europeu, FMI e
Comissão Européia) à Portugal. Os jornalistas foram na onda e, depois,
descobriram que se tratava de uma estratégia irônica de atrair a atenção dos
portugueses para o verdadeiro manifesto: “Que se lixe a Troika!”.
Postagens relacionadas
- A bomba semiótica do resgate dos cães de laboratórios
- Rei do Camarote e Huck "Gigante": bombas semióticas no front da guerrilha dos memes
- Tem alemão no campus? Repórter sofre acidente com bomba semiótica na USP
- Bombas semióticas explodem na mídia
- O ceticismo gnóstico de Jean Baudrillard (parte 2) - os simulacros nada têm a esconder
- O que há em comum entre a fotografia e o dinheiro?