De maneira cínica e irônica, o filme “Obrigado Por Fumar” (Thank You For
Smoking”, 2005) nos apresenta como se faz uma engenharia de opinião pública: a
forma mais insidiosa e profunda de manipulação baseada numa suposta liberdade
de opinião e escolhas na qual se funda a democracia ocidental baseada na
mediação da opinião pública através dos meios de comunicação. Tal engenharia
chamada de “agenda setting”, e didaticamente mostrada pelo filme, se basearia
no seguinte princípio: se todos os argumentos são válidos e se anulam (“a
beleza da argumentação é que você nunca está errado”), segue-se que o mais
importante é dar às pessoas a impressão de liberdade de opinião quando, na
verdade, uma pauta ou agenda já foi secretamente imposta para a sociedade.
“Com bons argumentos você nunca
está errado”. Essa afirmação que o protagonista Nick Naylor dá ao seu filho
Joey é o mote de todo o filme “Obrigado por Fumar”. Essa afirmação ao mesmo
tempo cínica e irônica esconde uma longa tradição filosófica do ceticismo que
se iniciou com Pirro na antiguidade grega: se toda afirmação pode ser
contraditada por argumentos igualmente válidos, a verdade não existe. Todas as versões
e interpretações sobre qualquer coisa se equivalem, dependendo então os
argumentos tão somente da credibilidade, acumulação, consonância e onipresença
em um ambiente público de debates.
Essa é
a base da moderna engenharia de opinião pública e do filme “Obrigado por
Fumar”, uma verdadeira exposição didática daquilo que os teóricos da
comunicação chamam de “Agenda Setting” ou “Teoria do Agendamento”. A começar
pelo cinismo do título: uma aparência liberal do agradecimento do prestador de
serviços, mas que esconde as táticas de manipulação de opinião.
O filme
acompanha a trajetória de Nick Naylor (Aaron Eckhart), lobista da indústria de
tabaco e de uma academia de estudos a favor do tabaco com uma difícil missão:
fazer o cigarro retornar aos seus bons tempos onde era símbolo da masculinidade,
erotismo, status e prazer. Numa incansável batalha, frequenta programas de
debates na TV onde com muita lábia e retórica desmonta os argumentos de
ativistas e ONGs, liderados pelo seu arqui-inimigo: o senador ambientalista do
Estado de Vermont, Ortolan Finistirre (William Macey). Finistirre empreende uma
feroz campanha pela aprovação de uma lei federal que obrigue os maços de
cigarros a trazer uma advertência com um desenho de uma caveira.
Paralelo
a isso, Naylor é divorciado e se esforça para que seu filho Joey tenha orgulho
dele, embora a sua profissão, legalizada nos EUA, seja muito mal vista pela
opinião pública.
Naylor
é bom no que faz: contesta os antitabagistas e o senador com o argumento do
universo direito humano de escolha - fuma quem quer e todo mundo sabe que o
cigarro mata e, por isso, seria desnecessário e abusivo a imagem da caveira em
cada maço de cigarros.
Uma forma mais profunda de manipulação
Baseado
no livro homônimo de Christopher Buckley, a adaptação de Jason Reitman é
precisa ao narrar a luta de oponentes cuja moralidade é tão flexível como seus
argumentos: não há heróis mas apenas a força da persuasão. De um lado os
antitabagistas usam o sensacionalismo de garotos com câncer expostos em
programas de TV e, do outro, Nick Naylor paga milhões ao velho cowboy da Marlboro,
hoje com câncer, para calá-lo. Além de procurar um produtor de Hollywood para
convencê-lo a colocar Brad Pitt e Catherine Zeta-Jones fumando após uma cena de
sexo em uma ficção-científica no espaço sideral – quem sabe, o cigarro retorne
ao charme dos filmes de antigamente...
O mais
interessante e perturbador do filme é como a narrativa descreve que a
estratégia de relações públicas de Nick Naylor e da indústria de tabacos não é
a de impor alguma mensagem e conteúdo a favor do cigarro. Tanto pesquisas a
favor como contra são paradoxalmente apoiadas pela Academia de Estudos do
Tabaco. Por exemplo, o filme inicia com Naylor solicitando verba para o projeto de uma
campanha com cartazes no metrô desestimulando os jovens a não fumarem. Ele fala
cinicamente: “qual empresa quer matar mais cedo seus clientes?”
Como
afirma Nick Naylor a certa altura, “a beleza da argumentação é que você nunca
está errado”. O filme é cínico ao mostrar que os dois lados, antitabagistas e
indústria de tabaco, estão certos ao seu modo, de acordo com as regras do jogo.
Cabe ao público (e ao espectador) a “liberdade” de escolha. Esse é o
significado mais sinistro do filme: a manipulação da opinião pública não está
no conteúdo (nos argumentos), mas na forma (na definição de uma pauta de
discussões para a opinião pública pensar e decidir).
Pouco
importa para indústria de tabaco provar se o cigarro faz bem ou mal para a
saúde. Argumentos e interpretações se anulam, todos estarão sempre certos. O
que interessa é que a questão do cigarro esteja sempre em pauta na mídia, que
haja uma consonância, acumulação e onipresença do tema. Esse é o verdadeiro
papel do lobista Nick Naylor: manter o cigarro agendado na pauta da sociedade.
E isso se chama agenda setting,
talvez a forma mais insidiosa e invisível tática de engenharia de opinião
pública.
Agenda Setting
Em 1972
Donald Shaw e Maxwell McCombs constataram que o principal efeito da mídia é a
de criar uma pauta, dizendo para as pessoas não “como pensar”, mas “sobre o que
pensar”, isto é, a mídia seria péssima em tentar impor conteúdos, posições ou
valores, mas ela seria exitosa em criar “climas de opinião” ou criar uma
hierarquia de temas pertinentes a serem discutidos pela sociedade.
Impor
uma pauta “A” ao invés de “B” na mídia sempre atende a um determinado interesse
de um setor econômico ou político. A criação de uma pauta é a condição para ser
criado um “clima de opinião” e em consequência uma “espiral do silêncio”.
Como
emplacar uma agenda ou pauta nos meios de comunicação? Martin Howard,
pesquisador e especialista em táticas subliminares, faz o seguinte fluxograma
de uma estratégia de criação de uma agenda – veja imagem abaixo.
Fonte: HOWARD, Martin. "We Know What You Want". Desinformation Books, 2005 |
Para
explicar o funcionamento desse mecanismo, vamos pegar o exemplo de dos setores
que mais investem nesse tipo de engenharia: o farmacêutico. Um grande
laboratório decide lançar uma nova droga antidepressiva no mercado. Em busca de
um posicionamento para o seu novo produto (corporate
message), necessita enfatizar a urgência de uma suposta nova síndrome
depressiva: medo de falar em público. Um plano integrado de comunicação é
mobilizado (focus group), e o tema
“medo de falar em público” é sugerido para os líderes de opinião como tema de
relevância pública. São indicados como fontes de informação para os programas
noticiosos (News Media) ou de
entrevistas líderes de front groups
(ONGs e associações de ajuda mútua) e paid
experts (profissionais da área médica já sensibilizados pela urgência e
pertinência do tema).
Em
pouco tempo o fenômeno do agendamento (acumulação, consonância e onipresença)
se verifica: vira matéria de capa de revistas, portais de saúde na Internet e
tema de postagens nas redes sociais e blogs. O público consome como informação
publicamente relevante sem ter consciência das motivações mercadológicas no
lançamento de uma nova droga no mercado farmacêutico.
O filme “Obrigado
por Fumar” apresenta didaticamente essa estratégia que está além da
manipulação simples pela imposição de determinado conteúdo ou posicionamento
ideológico: querer ou não fumar cigarro seria uma questão que a mídia teria
muito pouca influência. Mas ela seria eficiente em fixar a pauta do tabagismo
como tema pertinente para a opinião pública – e o filme mostra bem ao vermos
como Nick Naylor transita fácil pelas diversas mídias como cinema, TV e jornais.
O filme ironicamente apresenta como a indústria tabagista estaria por trás
tanto de pesquisas que demonstrem os malefícios como as que refutam os danos
maiores do cigarro. O que importa é que o tema tabagismo ganhe espaço e
visibilidade midiática.
O objetivo final dessa
engenharia seria a criação de um “clima de opinião” e a “espiral do silêncio”,
conceitos propostos pela cientista alemã Elisabeth Noelle-Neumann na década de
1960: quanto mais o agendamento de uma pauta cria um clima de opinião de
unanimidade graças a consonância e onipresença nas mídias, mais as vozes
discordantes tendem a silenciar por terem a percepção de serem minoritárias –
tendem ou à cooptação ou ao simples silêncio.
Por isso o filme “Obrigado Por
Fumar” torna-se obrigatório para ser discutido por estudantes ou pesquisadores
em Comunicação: através de linhas de diálogo afiadas e uma narrativa que
equilibra drama e comédia, consegue sintetizar essa simples tese da moderna
engenharia de opinião pública: se todos
os argumentos são válidos e se anulam (“a beleza da argumentação é que você
nunca está errado”), segue-se que o mais importante é dar às pessoas a
impressão de liberdade de opinião quando, na verdade, a pauta ou agenda já foi
secretamente imposta para a sociedade.
Se você é contra ou a favor ao
cigarro pouco importa para um lobista: se a sociedade discute apaixonadamente o
tema, todas as posições são apenas reforçadas com os argumentos fornecidos
midiaticamente por ambos os lados, mantendo o funcionamento da indústria.
Cínico, não?
Ficha Técnica
- Título: Obrigado Por Fumar
- Diretor: Jason Reitman
- Roteiro: Jason Reitman baseado no livro homônimo Christopher Buckley
- Elenco: Aaron Eckhart, Cameron Bright, Maria Bello, J.K. Simons
- Produção: Room 9 Entertainment, TYFS Productions LLC
- Distribuição: 20th Century Fox
- Ano: 2005
- País: EUA