Um espectro ronda a produção cultural contemporânea: o Gnosticismo.
Não, não se trata de uma conspiração ou de alguma seita secreta que
silenciosamente se espreitaria subliminarmente em filmes e animações. Trata-se
de uma mudança de sensibilidade em relação à realidade e aos próprios produtos
culturais que procuram representá-la, um senso mais metalinguístico e auto-referencial
que questiona a representação e a própria natureza da realidade. A animação francesa “The
Painting” (Le Tableau, 2011), dirigida por Jean-
François Laguionie é um flagrante exemplo onde personagens fauvistas no
interior de quadros em um empoeirado estúdio estão em busca do Pintor, numa
evidente analogia com questões teológicas e filosóficas: ele existe? Retornará
um dia para completar suas obras? Quem desenhou o Pintor?
De programas infantis como
“Mister Maker”, passando por animações como “Hora de Aventura” e “Apenas um
Show” ou quadrinhos como “Capitão Cueca”, até os filmes mais elaborados para
adultos como “Matrix”, “Show de Truman” e “A Origem”, a sensibilidade é a
mesma: ironia, auto-referência, discurso indireto, metalinguagem, uma espécie
de autoconsciência dos personagens de que a narrativa em que estão imersos é
ficcional, um constructo de algum autor, demiurgo ou entidade arbitrária, que
algumas vezes quer lhes controlar e confinar.
A animação francesa de Jean-François
Laguionie, “The Paiting” (Le Tableau, 2011) é um bom exemplo dessa
sensibilidade contemporânea, além de ser uma ótima alternativa às animações
computadorizadas das produções norte-americanas. A narrativa é centrada em um
mundo no interior de um quadro em ambientes fauvistas ao estilo de Matisse e
cacos de Chagall. É apenas mais um quadro entre vários que estão no atelier de
um pintor, mas para os habitantes daquela tela é um cosmos fechado em si mesmo.
Apesar da beleza das cores,
texturas e traços, percebemos que aquele mundo não é tão poético: possui uma
rígida ordem social dividida em três castas: a elite formada pelos Toupins que
habitam um castelo. São pinturas finalizadas e de estilo definido. Em seguida
vêm os Pafinis, os “não terminados”: figuras não acabadas nas quais o pintor da
obra não deu um acabamento final ou deixou de pintar um detalhe qualquer. E
abaixo de todos, os Reufs, verdadeiros esboços vivos, personagens cujo pintor
nem iniciou e dotados apenas de linhas e contornos de lápis.
Os Toupins são arrogantes. Os
mais jovens praticam cruéis jogos de caça aos Reufs no meio das florestas que
circundam o castelo situado no alto de um monte. Vivem em constantes festas,
enquanto o seu rei chamado de “Grande Lustre” defende a necessidade da manutenção
da ordem desigual como um destino atribuído pelo Pintor (Deus?) do mundo em que
vivem.
A ordem das castas é perturbada
pelo amor proibido entre um Toupin sensível chamado Ramo, e uma Pafini com um
rosto não terminado (uma espécie de Mona Lisa em estilo Mondigliani) chamada
Claire. Ramo acredita que um dia O Pintor retornará para terminar sua obra
inacabada, instaurando a igualdade. Mas os Toupins ridicularizam a ideia já que
estão decididos a manter seus privilégios no mundo daquele quadro.
Decidido em provar que está
certo, Ramo organiza uma expedição (formada pela melhor amiga de Claire, Lola,
e um mal humorado Reuf) para encontrar O Pintor e perguntar para ele porque não
acabou a obra. Eles terão que penetrar em uma região tabu do quadro, uma
floresta negra que seria habitada por flores carnívoras. Lá encontrarão a
moldura e o fim do quadro (ecos de filmes como “O Décimo terceiro Andar” e a
sequência final de “Show de Truman”, onde Jim Carey vai até o limite da
cenografia do gigantesco estúdio do reality show), numa sequência repleta de
simbolismos cosmológicos e teológicos.
O Pintor é um demiurgo
“Ele pode nos destruir!”,
exclamam chocados Ramo, Lola e Reuf ao verem no estúdio empoeirado e
aparentemente abandonado do Pintor, diversas telas rasgadas, queimadas ou
borradas como trabalhos mal sucedidos que o Pintor tivesse jogado fora e
esquecidos em um canto. Novamente uma sequência de significados teológicos, só
que dessa vez com conotações gnósticas: o encontro do homem com o seu próprio
criador poderá ser frustrante, ao descobrir Nele a figura de um arbitrário
Demiurgo. Tema recorrente na cinematografia atual, como na ficção científica de
Ridley Scott “Prometheus” (2012) onde astronautas vão em busca dos
“Engenheiros” da raça humana e apenas encontram em um planeta distante morte e
“deuses” tão desiludidos como o próprio ser humano. Assim como em “Blade
Runner” (1982), do mesmo diretor, onde o replicante Roy vai ao encontro do seu
engenheiro clamando por mais tempo de vida, e encontra uma arrogante e arbitrária
figura que passa o tempo jogando xadrez no alto de um gigantesco prédio da
Tyrrell Corporation.
Mais
que arbitrário e insensível (ao destruir um quadro, na verdade o Pintor está
destruindo mundos inteiros), os aventureiros descobrem uma o auto-retrato do
Pintor em uma tela: entram na tela e descobrem através do ícone que, na
verdade, o Pintor é inseguro, melancólico e cansado de conviver consigo mesmo.
A pior descoberta possível sobre um Deus que, achavam, viria um dia completar a
sua criação e livrar o mundo de um sistema cruel de castas.
“Na casa de meu Pai há muitas moradas”
Surpresos,
o trio de aventureiros descobre que o seu quadro é apenas um dos mundos no
interior do estúdio do Pintor: há o quadro da odalisca seminua, a pintura de
uma batalha da qual resgatam um garoto que toca um tambor militar, um quadro de
um Harlequim e um autoretrato do Pintor onde vão entrar e participar de um
carnaval em Veneza etc.
Se na
animação “Monstros” (2001) da Pixar a ideia de uma pluralidade de mundos e
dimensões era apenas sugerida (as múltiplas portas dimensionais através das
quais os monstros sequestram os gritos de terror das crianças), em “The
Paiting” é explícito: na casa do Pintor há muitos mundos, lembrando o célebre
versículo bíblico do Evangelho de João (“Na casa de meu Pai há muitas
moradas”). Novamente ecos da cosmologia sugerida pelo filme “O Décimo Terceiro
Andar” onde o universo seria um supercomputador com diversos mundos simulados,
um dentro do outro. O que remete à cosmologia gnóstica de Basilides (117-138 DC - Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário
de Antioquia) de um universo composto por 365 céus, um dos quais seria o nosso
mundo comandado pelo Demiurgo (Yahweh, Jeová ou Javé).
Esse multifacetamento
da realidade é magistralmente expressada pelas alterações de matizes, cores e
técnicas de renderização a cada mudança de “mundos”: os intrépidos aventureiros
que estão em busca do Pintor atravessam diferentes quadros do estúdio, cada um
com paletas diferentes de cores, canvas e texturas diferentes, criando o
aspecto de que a relidade é um dado perceptivo ou construído artificialmente.
Diferente dos quadros, o estúdio do Pintor é renderizado digitalmente em estilo
realístico fotográfico. Essas matizações de cores e texturas lembram filmes
como “O Décimo Terceiro Andar” ou “A Vida em Preto e Branco” (The
Pleasantville, 1998), onde os diferentes mundos virtuais adquirem diferentes
qualidades de fotografia.
A gnose de “The Painting” – alerta de spoilers
Frustrados
por não terem encontrado o Pintor, mas apenas o seu auto-retrato melancólico,
acabam encontrando algo mais importante nesse quadro: pincéis e tintas. Lola, a
mais curiosa e audaciosa do grupo, tem um insight: todos podem aprender a
pintar e completarem por si mesmos a obra inconclusa do Pintor. Perigosa ideia:
politicamente resultará na igualdade (todos os personagens da tela ficariam
completos) e no fim do sistema de castas, o que provocará uma reação violenta
do Grande Lustre, interessado na manutenção da desigualdade.
Mas
toda essa revolução política tem como base espiritual a gnose: a iluminação
espiritual, a descoberta de que o Pintor na verdade está dentro de cada um, nas
cores que cada um poderá descobrir na sua própria paleta. Cor é luz. Dessa
maneira, “The Painting” cria uma interessante simbologia gnóstica da gnose como
a descoberta da fagulha de luz interior que nos ligará, de volta, à Plenitude.
Toda a
animação é atravessada por um mistério: por que o quadro ficou incompleto? O
que aconteceu com o Pintor? Será que ele realmente existe? Um dia ele
retornará? Jean-François Laguionie faz uma proposital analogia com as questões
teológicas com as quais se debate a humanidade por séculos de filosofia. Sua
visão gnóstica dessas questões é ainda reforçada pelo platonismo da narrativa:
se os diferentes quadros/mundos são apenas simulacros da imaginação do Pintor,
quem desenhou o Pintor? Essa é a proposta final da animação: criar uma sensação
de vertigem no espectador em uma narrativa em abismo sobre mundos dentro de
mundos.
Ficha Técnica:
- Título: The Painting (Le Tableau)
- Diretor: Jean-François Laguionie
- Roteiro: Jean-François Laguionie e Anik Leray
- Elenco (vozes): Jean Barney, Chloé Berthier, Julien Bouanich
- Produção: BE-Films, Blue Spirit Animation
- Distribuição: GKids, A-Film Home Entertainment
- Ano: 2011
- País: França