segunda-feira, janeiro 09, 2012

Gnosticismo é o "Jazz" das Religiões

Certa vez Louis Armstrong disse a um jornalista: "Cara, se você for perguntar o que é o Jazz, então nunca saberá". Algo semelhante ocorre com termos como "Gnosticismo" ou "Gnose" na história das religiões: devem ser mais experimentados do que compreendidos. Pelas suas próprias origens sincréticas (uma fusão de platonismo, neo-platonismo, estoicismo, budismo, antigas religiões semíticas e cristianismo), o Gnosticismo poderia ser facilmente comparado ao Jazz que, pelas suas origens, também foi resultante de intensas misturas e adaptações.

O que é Gnosticismo? Seja pelo ponto de vista histórico (conjunto de seitas sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã) ou pelo ponto de vista dos renascimentos na era moderna (grupos e, por analogia, a todos os movimentos que se baseiam no conhecimento secreto da “gnose”) são definições que podem levar à generalização e confusão.

Mesmo com a descoberta, em 1945, de textos gnósticos do século IV em Nag Hammadi (Egito), muitos concordam que o tema ainda continua com muitos pontos dúbios.

Hoeller e Conner preferem abordar o Gnosticismo como uma “atitude da mente” ou uma “predisposição ideológica” que surge em ambientes de grande agitação artística e cultural. “Se você é um artista sério, já é meio gnóstico”, afirma Conner. Nessas condições, o Gnosticismo está fadado a um novo renascimento.

Mas há um consenso: o Gnosticismo e seus derivados esotéricos nunca fizeram parte da cultura sancionada pelas instituições. Desde o triunfo do cristianismo ortodoxo após Constantino, a tradição gnóstica entrou para o subterrâneo dos movimentos sociais. Bem sucedido em seus canais subterrâneos, eventualmente ofereceu a pensadores revolucionários e artistas subsídios importantes para críticas aos sistemas opressivos políticos, sociais ou culturais.

É por esse caminho que Miguel Conner (escritor norte-americano de sci fi e editor/apresentador do programa radiofônico "Aeon Bytes Gnostic Radio" - programa de debates e entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop) vai focar o Gnosticismo ao compará-lo ao Jazz no campo musical. Impossível de ser definido, o Jazz escapa a qualquer descrição ou análise mecanicista. Para Conner, o Gnosticismo se enquadraria nessa mesma natureza. Pelas suas próprias origens sincréticas (uma fusão de platonismo, neo-platonismo, estoicismo, budismo, antigas religiões semíticas e cristianismo), o Gnosticismo poderia ser facilmente comparado ao Jazz que, pelas suas origens, também foi resultante de intensas misturas e adaptações.

sábado, janeiro 07, 2012

Filme "Margin Call" despolitiza Crise Financeira

“Margin Call – O Dia Antes do Fim” (Margin Call, 2011) é um filme de reação ideológica às graves denúncias sobre as origens da crise financeira global de 2008 (cujos desdobramentos ainda continuam) feitas por documentários como “Trabalho Interno” de Charles Ferguson ou “Capitalismo: Uma História de Amor” de Michael Moore. “Margin Call” despolitiza os fundamentos da crise ao se levar a sério como um “thriller” matemático-financeiro. Embarca no hermetismo dos números para subliminarmente provar ao espectador leigo que, no final, toda a turbulência econômica surgiu por  “erros de estimativa de volatilidade” colocando entre parêntesis os fatores demasiadamente humanos: relações promíscuas das elites financeiras com o Estado e a Política.

É bastante conhecido o papel ideológico que Hollywood sempre desempenhou, desde os esforços patrióticos durante a Segunda Guerra Mundial até a chamada “Política de Boa Vizinhança” durante o governo do presidente Roosevelt quando foi incentivada a promoção de artistas latino-americanos ao estrelato cinematográfico como tática de cooptação política.

O que impressiona atualmente é o “timing” da contra-propaganda ideológica dos filmes hollywoodianos.  

Depois da explosão da bolha imobiliária e dos empréstimos hipotecários que arrastaram os mercados globais para a crise em 2008, assistimos às denúncias expostas por documentários como Trabalho Interno (Inside Job, 2010). Premiado com o Oscar de melhor documentário, o diretor Charles Ferguson deu os nomes de diretores, executivos e empresas (de seguros, bancos de investimentos etc.) e descreveu a engenharia financeira irresponsável que torrou dinheiro público e fez poucos ficarem milionários com a explosão da “bolha” financeira. E, o que é mais grave, demonstrou que os artífices dessa engenharia estiveram conscientes o tempo todo, ao jogar em dois lados: ao mesmo tempo em que apostavam deliberadamente na inadimplência das hipotecas, asseguravam aos seus clientes a “saúde” financeira dos papéis podres que comercializavam.

Em seguida Hollywood contra-ataca com duas produções ficcionais: uma que glamouriza a produção de fortunas nos mercados finananceiros; e a outra que traduz as origens da crise financeira global em um “erro de cálculo”.

A primeira reação foi o filme “Sem Limites” (Limitless, 2011) onde toda a suspeita da engenharia financeira de Wall Street é “naturalizada” ou “matematicizada” através da estória da descoberta do algoritmo de sucesso que garante a fortuna e o sucesso. Se o documentário “Trabalho Interno” denunciava que todas as fortunas do mercado financeiro provinham de “bolhas” criadas por falcatruas possibilitadas pela desregulamentação e relações promíscuas entre Estado e especuladores, em “Sem Limites”, ao contrário, o sucesso provém de fórmulas matemáticas e a utilização total do cérebro através de “smart drugs”.

A segunda reação é o recente filme “Margin Call – O Dia Antes do Fim”. Se no filme “Sem Limites” temos a história do algoritmo de sucesso inventado por uma mente esperta, em “Margin Call” temos a estória de algoritmos que produzem “números que não se somam” reduzindo a explicação da crise financeira global a um “erro de estimativa dos índices de volatilidade”.

quarta-feira, janeiro 04, 2012

Há Semelhanças entre Jesus Cristo e Harry Potter?


O que há em comum entre a figura bíblica de Jesus Cristo e o blockbuster literário e cinematográfico Harry Potter? Segundo Derek Murphy no livro “Jesus Potter, Harry Christ”, mais coisas do que imaginamos. Para ele são “modelos literários” ou “composições de mitológicos e filosóficos símbolos de salvação". Se Henry Potter é a recorrência da narrativa mítica da agonia-morte-ressurreição do herói, Jesus Cristo estaria conectado com toda uma tradição antiquíssima de deuses encarnados destinados à morte e ressurreição.

segunda-feira, janeiro 02, 2012

O Diabo tem um plano em "Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo"

Ter uma segunda chance para voltar no tempo e redimir-se das decisões erradas na vida. Uma velha estória sempre contada pelos filmes hollywoodianos sob um viés moralista. Mas no filme argentino Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo” (2011) o tema vai mais além ao acrescentar o elemento do Fantástico: um homem medíocre e fracassado faz um pacto faustiano com o demônio na tentativa de, através do conhecimento do futuro, manipular o Tempo, o Destino e enganar o próprio demônio. Através de uma narrativa irônica e de humor cáustico, cria-se um clima ambíguo onde é impossível julgar o anti-herói. Indicado pelo nosso leitor Fabio Hofnik, o blog conferiu o filme.

Certa vez ouvi de alguém: “Passamos metade da vida tentando corrigir os erros que cometemos na outra metade.” É possível termos uma segunda chance depois de tomarmos consciência das decisões erradas do passado? E se tivermos essa chance, teremos a sabedoria e o livre-arbítrio para não cair nos mesmos erros?

Uma estória contada seguidas vezes pelo mainstream hollywoodiano, sempre pelo otimista viés moralista e religioso que nunca coloca em questão um aspecto: o homem realmente quer mudar? Ou será que a mediocridade e o obscurantismo a qual a vida nos reserva pode impedir essa mudança?

A dupla de diretores argentinos Mariano Cohn e Gastón Duprat vai mais além ao tratar um tema tão recorrente acrescentando o elemento do Fantástico: a presença do Mal através da figura de uma espécie de demônio e a vitimização humana diante de uma realidade que o condena à mediocridade. De um lado um antigo mercador (Eusebio Poncela) que, no século III no Marrocos, é atingido duas vezes seguida por um raio tornando-se um ser imortal que vaga pelo mundo propondo tratos e fazendo trapaças temporais. Do outro, Ernesto (Emilio Disi), um sessentão que passa os dias queixando-se das oportunidades que teve e fracassou, casado com uma mulher que a todo momento joga na cara o seu fracasso.

sábado, dezembro 31, 2011

Você Sabe que é Gnóstico quando...

Miguel Conner, escritor norte-americano de sci fi e editor/apresentador do programa radiofônico "Aeon Bytes Gnostic Radio" (programa de debates e entrevistas semanais sobre temas do Gnosticismo, literatura e cultura pop), elaborou uma lista de itens que caracterizam se você é gnóstico. Apesar do tom irônico e, às vezes, engraçado, dá para perceber a seriedade das teses do gnosticismo em cada item. Mais do que isso, demonstram que o Gnosticismo não é uma religião, doutrina ou filosofia plenamente sistematizada como afirma Stephen Holler: "O Gnosticismo é uma certa atitude da mente, uma ambiência psicológica (...) um certo tipo de alma é, por sua própria natureza, gnóstica".  Se pelo menos o leitor se enquadrar em um desses itens abaixo, pode se considerar com uma séria inclinação à visão de mundo gnóstica.

sexta-feira, dezembro 30, 2011

Os Fantasmas do Tempo no Filme "Christmas Carol"

O livro “Christmas Carol” (Um Cântico de Natal, 1843) de Charles Dickens é atemporal por apresentar dois grandes arquétipos que marcarão a vida moderna: Fantasmas e o Tempo. Ao fazerem uma adaptação usando animação digital (através da tecnologia de “captura de performance”), a Walt Disney Pictures e o diretor Robert Zemeckis ("De Volta para o Futuro" e "Forrest Gump") produzem um efeito paradoxal: esvaziam o olhar crítico de Dickens sobre o início da modernidade ao reduzir a narrativa à estética videogame por meio de uma tecnologia moderna. O Ocultismo e a problematização do Tempo, marcas da literatura do século XIX como formas de questionar a modernidade, são temas oportunos para uma reflexão nesses momentos que antecedem a celebração de Ano Novo onde todos querem reter um momento do tempo, que então será passado.

O livro clássico de Charles Dickens “Christmas Carol” já recebeu centenas de adaptações. É um dos livros mais lidos, lembrados e citados de todos os tempos. A narrativa conta a estória de Ebenezer Scrooge, velho ranzinza e sovina que passou a vida inteira juntando uma fortuna, desprezando qualquer contato com as pessoas. Ele odeia o Natal por achar que é uma época onde as pessoas gastam mais do que têm e ironiza como gente tão pobre pode ser feliz. Na noite de Natal recebe a visita de três fantasmas (que mostram para ele as visões do passado, do presente e do futuro) levando-o a uma transformação íntima e reavaliando o significado da vida.

Só para ficar no cinema (as adaptações do livro de Dickens abrangem teatro, televisão, ópera, história em quadrinhos etc.) existem adaptações desde 1901. Desde então praticamente toda década há alguma adaptação, referência ou revisitação da obra, passando pelos mais diversos gêneros.

De Walt Disney temos o personagem do Tio Patinhas (Uncle Scrooge) inspirado no protagonista avarento do livro de Dickens, um curta de 1983 “Mickey’s Christmas Carol” e o recente “Os Fantasmas de Scrooge” (Christmas Carol, 2009) dirigido por Robert Zemeckis (“De Volta para o Futuro”, “Forrest Gump” e “Contato”).

Essa produção repete a velha fórmula dos estúdios Disney: a capacidade de lidar com temas trágicos, pesados e adultos de uma forma divertida para crianças e jovens ao diluir simbolismos arquetípicos. No caso da adaptação de Zemeckis, a utilização da tecnologia chamada “captura de performance” onde a animação digital é feita a partir do escaneamento das expressões dos atores. O diretor já havia utilizado essa tecnologia em “A lenda de Bewulf” e “Expresso Polar”, mas em “Os Fantasmas de Scrooge” há um estranho efeito: se a maior qualidade do conto de Dickens é a sua atemporalidade, na produção Disney a tecnologia converte a narrativa, em muitos momentos, em um videogame com cenas de ação desnecessárias. Os grandes temas arquetípicos da obra de Dickens (que induzem à reflexão existencial e moral das ações humanas) são esvaziados pelo ritmo frenético e uma estética cujas opções que o protagonista sovina tem que tomar parecem alternativas de um game em computador.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

O Filme "El Método" e a "Gameficação" da Realidade



Games de simulações de atividades militares, administrativas etc. poderiam representar que a própria realidade pretensamente simulada já é, igualmente, um game? A “gameficação”,isto é, a exploração do elemento “lúdico” como ferramenta de administração treinamento, gestão etc, seria o sintoma da "gameficação" da própria realidade? O filme "O Que Você Faria? (El Método, 2005) remete a essas questões ao denunciar que as organizações atuais estão se convertendo em games perversos e autistas.

quarta-feira, dezembro 21, 2011

Papai-Noel Vinga-se do Cristianismo no Filme "Uma Noite de Fúria"

Um filme “trash” como “Uma Noite de Fúria” (Santa’s Slay, 2005) trás muito mais verdades do que toda a filmografia que pretende trazer fé e esperança por meio de uma figura tão controvertida como Papai-Noel. A recorrência de filmes que apresentam uma visão “pagã” ou “satânica” do mito natalino, confirma as origens histórico-políticas de Papai-Noel: Santa Claus e Satã são os dois lados de uma mesma moeda criada pela Igreja para que o Cristianismo ganhasse hegemonia sobre culturas dominadas por rituais de fertilidade que relembravam os ciclos da natureza, morte e renascimento.

Em postagem anterior, ao analisarmos o filme finlandês “Rare Exports: A Christmas Tale”, cujo diretor foi buscar no folclore finlandês as origens pagãs do Papai-Noel (selvagem, sem nenhuma boa vontade e perseguidor de crianças), discutíamos a existência de um imaginário subterrâneo no mito natalino, muito recorrente no cinema. Um imaginário bem diferente e menos altruísta do que a tradição cristã que credita as origens de Papai-Noel a São Nicolau (século IV DC).

A lista de filmes que apresenta essa visão “alternativa” do Papai-Noel (ou “Santa Claus”) é imensa. Só para listar alguns: Bad Santa (2003), Black Christmas (1974), Christmas Evil (1980), Silent Night, Deadly Night (1984), Jack Frost (1996), Don´t Open Till Christmas (1984) etc. Definitivamente, não são filmes recomendáveis para serem assistidos na noite de Natal, mas dão o que pensar: porque essa recorrência dessa figura maligna do Papai-Noel no cinema? Apenas exemplos da estética trash? Filmes que simplesmente querem romper com a monotonia da figura do bom velhinho? Ou simplesmente diversão sadomasoquista?

Se acreditarmos que os filmes são muito mais do que mero entretenimento, mas documentos primários para estudarmos a sensibilidade, o imaginário ou os sintomas culturais de uma época, então temos que levar a sério a recorrência de certos temas, simbologias ou iconografias nas narrativas fílmicas. Evitar o julgamento simplista que pretende descartar filmes sob rótulos como "comercial", “trash” ou "de entretenimento". Em outras palavras, recorrências no cinema sempre são sintomas de sérios conteúdos antropológicos ou culturais da espécie (mitos, arquétipos, imaginários, mitologias etc.).

O filme “Uma Noite de Fúria” (Santa’s Slay, 2005) é mais um exemplo de filme que explora esse imaginário subterrâneo do Papai-Noel. Mesmo para quem não gosta do gênero, o filme vale pela sequência inicial: uma família vai iniciar a ceia de Natal (com participações especiais de James Caan, Fran Drescher, Chris Kattan etc.) entre diálogos ríspidos e cínicos com acusações veladas e ironias sobre infidelidade, preconceitos e um peru que virou “sola de sapato” de tão duro. De repente, eis que desce pela chaminé, destruindo todos os tijolos da lareira, um Papai-Noel com a aparência de um viking enlouquecido que inicia uma bizarra série de assassinatos, massacrando toda a problemática família.

segunda-feira, dezembro 19, 2011

Papai-Noel Pode Matar em "Rare Exports: a Christmas Tale"


Se Papai Noel é um personagem tão altruísta, por que ele trabalha na clandestinidade? Por que muitas crianças temem a figura de Papai Noel em shoppings e parques? Por que a constante presença de papais-noéis assassinos e aterrorizantes na cinematografia? Essas questões em relação ao mito do Papai Noel são as motivações para o jovem diretor finlandês Jalmari Helander a desconstruir o imaginário desse personagem. Jalmari vai buscar as origens do mito natalino no folclore pagão, anterior à conversão cristã e norte-americana através da publicidade da Coca-Cola: há um imaginário subterrâneo e esquecido em torno do mito do Papai-Noel que insistentemente ressurge na cultura.

Jalmari tem dedicado sua carreira a expor a verdade de que o Papai Noel não é tão bom quanto parece. Após dois curtas premiados sobre o tema (a origem Finlandesa do personagem, antes da sua reconversão pela Coca-Cola no século XX), o diretor nos premia com essa pequena pérola do fantástico: “Rare Exports: a Christmas Tale”, vencedor de festivais do gênero terror e fantástico como Locamo na Suiça e Sitges na Catalunha.


Por que muitas crianças choram de medo na presença dessas figuras que habitam shopping centers e lojas no natal? Por que insistentemente o cinema de terror explora esse lado assustador do personagem (por exemplo: "Elves" - 1989 ou "Santa's Slay" - 2005)? Há até um nome para esse tipo de  fobia infantil: coulrofobia, o medo que se estende, também, para a presença de palhaços ou "clowns". 


Embora as origens oficiais ou cristã do Papai-Noel (ou "Santa Claus") estejam associadas à figura de São Nicolau, um jovem bispo de Myra (Turquia) do século IV DC (conhecido pela generosidade e por dar presentes, tornado-se o santo padroeiro das crianças), há uma origem pagã anterior a sua conversão pela Igreja. Uma origem de moralidade ambígua e cruel, própria das origens dos contos de fadas que acabou sedimentando-se em um imaginário subterrâneo que resiste aos tempos.

sexta-feira, dezembro 16, 2011

Segundo Aniversário do Blog "Cinema Secreto: Cinegnose" - um resumo

Esse mês o blog "Cinema Secreto: Cinegnose" comemora o segundo aniversário. Desde o início seu desafio foi divulgar de forma concisa, didática e compreensível discussões do grupo de pesquisas CNPQ "Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual" e dar continuidade ao projeto de mestrado "Cinegnose" da Universidade Anhembi Morumbi (UAM-São Paulo). Encerramos esse ano atingindo um objetivo: trazer as discussões do Gnosticismo para o cotidiano: o fílmico, o político, o econômico e o cultural.


No dia 8 de dezembro de 2009 era publicado o primeiro post do blog “Cinema Secreto: Cinegnose”: “O Filme Gnóstico: uma Introdução”. O Blog é uma continuidade do projeto de mestrado desenvolvido na Universidade Anhembi Morumbi entre 2007 e 2009 “Cinegnose: a recorrência de elementos gnósticos na recente produção cinematográfica norte-americana (1995 a 2005)” sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antônio Vadico e do Grupo de Pesquisa CNPQ “Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual”.

A principal preocupação editorial do Blog nesse segundo ano foi a de trazer para a prática as reflexões da filosofia gnóstica. Depois do primeiro ano onde a preocupação inicial era amadurecer os principais pontos filosóficos, teológicos e cosmológicos do Gnosticismo, além de dar aos leitores a sua dimensão histórica (origem, evolução e, principalmente, o atual “revival” na indústria do entretenimento), nesse segundo ano procuramos dar uma linha menos “doutrinária”.

Percebíamos na oportunidade que o termo “gnosticismo” estava carregado de uma percepção religiosa, sectária ou doutrinária. A filosofia gnóstica pode ser tudo, menos isso: pelo contrário, ao sustentar posições heréticas e anti-religiosas por oferecer uma compreensão “invertida” e teologicamente “negativa”, o Gnosticismo se situa historicamente numa posição underground de rebelião.

Nesse segundo ano, portanto, o blog procurou seguir duas linhas editoriais: primeiro, uma massiva análise fílmica indo para além dos clássicos filmes gnósticos na área sci fi, fantástico etc. Procuramos demonstrar que as narrativas míticas e arquétipos gnósticos estão presentes em diversos gêneros, desde dramas ou animações hollywoodianos (“O Paraíso é logo Ali” ou “Kung Fu Panda”, filmes “trashs” e indepentes (“Ultrachrist” e “Rubber, o Pneu Assassino”) e produções audiovisuais (Mister Maker: o sabor gnóstico para crianças).

terça-feira, dezembro 13, 2011

O Olhar Gnóstico de Kubrick

Recluso e avesso a jornalistas, o cineasta Stanley Kubrick revela em uma das suas poucas entrevistas um olhar bem particular para a vida: para ele, vivemos em um Universo indiferente e sem sentido que corrói a nossa vontade de viver. Nossa única saída seria desafiar essa indiferença ao suprir de Luz a "vasta escuridão" da existência. Esse olhar gnóstico pode ser a chave de compreensão da obra de Kubrick, principalmente da chamada "Trilogia Star Child": "Dr. Fantástico", "2001" e "Laranja Mecânica".


Semana passada li o livro "Stanley Kubrick Interviews". O diretor de clássicos como "Laranja Mecânica", "O Iluminado" e "Barry Lyndon" era avesso a entrevistas: preferia que os filmes falassem por ele. Esse livro reúne as poucas entrevistas do recluso cineasta falecido em 1999, abrangendo o período que vai de 1959 a 1987, revelando diversos interesses de Kubrick tais como a exploração espacial, psicanálise, efeitos da violência e religião.

O destaque é uma entrevista concedida a Eric Nordern para a revista "Playboy" em 1968. Na oportunidade Kubrick revelou uma surpreendente visão gnóstica da existência cuja convicção pode ser a chave de entendimento na análise dos filmes do diretor, principalmente das produções da trilogia dessa época iniciada com “Dr. Fantástico” em 1964 e encerrada com “Laranja Mecânica” em 1971, a chamada trilogia “Star Child”, como veremos abaixo.

Primeiro, vejamos esse trecho da entrevista de Kubrick a Eric Norden onde discute uma especial forma de niilismo diante da existência: a maneira de lidar com um Universo indiferente e sem sentido a partir do resgate do “imaculado sentido de admiração das coisas simples” da infância, esquecido por nós na medida em que desenvolvemos a consciência da morte na vida adulta:

domingo, dezembro 11, 2011

A Princesa não quer acordar em "A Bela Adormecida"

Concorrente à Palma de Ouro em Cannes, “A Bela Adormecida” (Sleeping Beauty, 2011) da estreante diretora australiana Julia Leigh desconstrói o conto de fadas clássico: e se a princesa não quisesse acordar? O cenário é o de uma sociedade onde o trabalho foi precarizado e a “princesa” é uma “freelance” numa roda-viva de subempregos marcada pela frieza emocional e onde príncipes foram substituídos por um submundo de milionários sexualmente pervertidos em uma mansão de “serviços à inglesa”.

Na versão original do francês Charles Perrault do conto “A Bela Adormecida” uma princesa é amaldiçoada a dormir por cem anos até ser despertada pelo beijo de um belo e corajoso príncipe que enfrentou uma floresta de espinhos venenosos para entrar no castelo. Cinquenta e dois anos depois da última releitura desse conto por Walt Disney em 1959, a escritora australiana Julia Leigh ("The Hunter" e "Disquiet"), em sua estreia como diretora, revisita a clássica estória de uma forma invertida: e se a princesa não quisesse acordar? Ela não possui um reino, mas é solitária. E sempre visitada por homens que não são mais príncipes, mas visitantes de uma só noite que se aproveitam sexualmente dela enquanto está imersa no seu sono voluntário.

Indicado à Palma de Ouro de Cannes nesse ano, o filme “A Bela Adormecida” reduz o clássico conto de fadas ao seu núcleo mítico ou arquetípico: o sono e o esquecimento. Através de uma narrativa estranha, espectral, etérea e fria narra a trajetória de uma “princesa” contemporânea, Lucy (Emily Browning), uma estudante universitária em Sidney, Austrália, de pele branca leitosa e cabelos de cor vermelho-ouro, onde, tal qual um hamster correndo em uma roda de gaiola, vive em uma ciranda de subempregos e identidades fragmentadas: cobaia remunerada de um laboratório, garçonete em um café, operadora de uma fotocopiadora em um escritório e, ocasionalmente, prostituta em pubs frequentados por yuppies.

Como pano de fundo, uma relação complicada com a mãe alcoólatra e com um amigo chamado Birdman que também está lentamente morrendo no alcoolismo e com quem Lucy, estranhamente, tem uma relação de culpa. Aliás, também é estranha a roda-viva de subempregos à qual Lucy se submete: tal como um zumbi, sem expressar sentimentos, automaticamente exerce suas funções. Ela parece uma sonâmbula que voluntariamente quer se esquecer de algo como forma de proteção emocional.

quarta-feira, dezembro 07, 2011

A "Religião das Máquinas" no Filme "13° Andar"

O sucesso de crítica e de público de “Matrix” (1999) acabou, à época, eclipsando o filme “13° Andar” (The Thirteenth Floor, 1999) , considerado muito superior. Embora guardassem aspirações bastante similares (discutir a condição humana diante das tecnologias de simulação e virtualização), “13° Andar” substituiu a profusão de referências e diálogos filosóficos de “Matrix” (uma estratégia desesperada para justificar lutas marciais, ação e bullet-times) por uma narrativa que por si mesma instigava essas questões filosóficas. Porém, ambos os filmes se tornaram documentos do imaginário tecnocientífico dominante no final de século XX onde associava a tecnologia computacional com uma motivação mística por transcendência espiritual, uma verdadeira “religião das máquinas”.

Se o historiador francês Marc Ferro estiver correto, todo filme é uma representação da sensibilidade ou do imaginário de determinada época, tornando, especialmente o cinema de ficção, um excelente caminho para a história psicossocial, nunca atingida pela análise de outros tipos de documentos (Veja FERRO, Marc. Cinema e História, São Paulo: Paz e Terra, 1992.

No final da década de 1990, dois filmes marcaram o ápice de um ciber-imaginário marcado pelo crescimento especulativo da Internet, tecnologias computacionais e realidade virtual: “Matrix” e o “13° Andar”, ambos lançados em 1999.

A partir do lançamento bombástico do Windows 95 toda a imprensa especializada e produções acadêmicas foram tomadas por duas tendências distintas: primeiro, pelo espírito messiânico que via nas tecnologias virtuais o potencial para revolucionar a economia real e, ao mesmo tempo, o crescimento das técnicas motivacionais ou de auto-ajuda explicitamente baseados em modelos computacionais (o cérebro e o próprio Self como um software reprogramável). E, segundo, o espírito distópico que via na virtualização do real uma armadilha na qual a humanidade cairia ao esquecer as demandas da realidade.

Porém, essas duas visões distintas guardavam algo em comum: o ciber-misticismo. Os filmes “Matrix” e o “13° Andar” representaram essa síntese de final de século ao unir através do cibermisticismo esses dois enfoques opostos dos mundos tecno-empresarial e acadêmico. Ambos os filmes aproximam tecnociência e misticismo ao apresentarem a tecnologia computacional como mediação possível para a transcendência espiritual.

segunda-feira, dezembro 05, 2011

"O Clube da Luta": a Busca da Gnose entre o Consumismo e a Violência

A atmosfera distópica e niilista do filme “O Clube da Luta” (Fight Club, 1999) do diretor David Fincher (“A Rede Social”) cria um cenário trágico, mas, principalmente, ambíguo. O filme parece ter sido composto dentro de uma “zona cinza”, entre a vida obscura e anônima onde alimentamos sonhos de consumo e a busca de alguma saída messiânica, negativa e totalitária. A narrativa procura o meio termo: a busca da iluminação espiritual por meio da busca de si mesmo através do silenciamento do corpo e do pensamento, nem que seja através da violência. Buscar a iluminação através do desprezo pelo “mísero composto universal” do qual fazemos parte.

Incomunicabilidade, alienação e impossibilidade de transformação são temas recorrentes na filmografia do diretor David Fincher: entre o recente “A Rede Social” (onde um gênio em algoritmos de Havard com grande dificuldade em se relacionar desconta sua ansiedade difamando pessoas em um blog) e o mais antigo “Vidas em Jogo” de 1997 (um milionário frio e solitário é submetido a um tratamento de choque por meio de um "roller play game" contratado pelo irmão na esperança de conscientizá-lo), temos o cultuado e enigmático “Clube da Luta” com os mesmos temas, porém carregado de uma ambiguidade explosiva como veremos abaixo.

Baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk de 1996, para Fincher o grande tema de “Clube da Luta” era a emancipação assim como os filmes “A Primeira Noite de um Homem” (The Graduate, 1969) ou “Juventude Transviada” (Rebel Whithout a Cause, 1955), mas, dessa vez, para jovens adultos na faixa dos 30 que vivem na sociedade atual que impede o amadurecimento: “fomos projetados para sermos caçadores, mas vivemos em uma sociedade de shoppings. Não há mais pelo que caçar, pelo que lutar, superar ou explorar. No interior dessa sociedade da castração é que foi criado o protagonista do filme”, afirma Fincher para completar: “para o protagonista encontrar a felicidade o único caminho possível será viajar através de uma iluminação no qual mate seus familiares, seu deus e seu professor” (VEJA Smith, Gavin (Sep/Oct 1999). "Inside Out: Gavin Smith Goes One-on-One with David Fincher". Film Comment 35 (5): pp. 58–62, 65, 67–68.)

sexta-feira, dezembro 02, 2011

Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 3) - Filmes "Mad City" e "Wag the Dog"

Com essa postagem encerramos a trilogia sobre as mutações na percepção da realidade. Na década de 1990 dois filmes iniciam uma nova visão crítica da mídia e do Jornalismo: “O Quarto Poder” (Mad City, 1997) de Costa Gavras e “Mera coincidência” (“Wag The Dog”, 1997) de Barry Levinson. Em ambos os filmes a crítica não está mais na manipulação política dos fatos por jornalistas e interesses econômicos, mas em uma denúncia “metafísica” de que a realidade estaria tornando-se um “constructo” do próprio aparato midiático que pretende representá-la como notícia e informação. A realidade progressivamente assume aspectos de um estúdio de TV a céu aberto a tal ponto que não mais se distingue a verdade e a mentira, a ficção e a realidade.

A década de 1990 foi marcada por uma safra de filmes hollywoodianos que começam a tematizar as relações da mídia e jornalismo não apenas com os fatos ou as notícias, mas com a própria realidade. Se em outras décadas tivemos diversos filmes que denunciavam o caráter manipulador dos interesses políticos e econômicos de repórteres e dos conglomerados midiáticos (A Montanha dos Sete Abutres, 1951; Todos os Homens do Presidente, 1976; Network: Rede de Intrigas, 1976 etc.), na década de 1990 acompanhamos produções que vão além da denúncia da manipulação ao lançar uma estranha suspeita: o que entendemos como “realidade” pode estar se tornando um gigantesco estúdio onde acontecimentos são produzidos direta ou indiretamente pela presença dos aparatos de captação do real (câmeras, microfones, repórteres etc.): Ed TV (1999), Show de Truman (Truman Show, 1998), Herói por Acidente (Hero, 1992), O Quarto Poder (Mad City, 1997), Mera Coincidência, (Wag the Dog, 1997) etc.

Vejamos o caso do filme “O Quarto Poder”. Desde o filme “Z” (1969) sobre abusos da ditadura militar na Grécia, Costa Gavras se notabilizou como adepto do cinema político, mas nesse filme em particular o diretor abandona o campo da política institucional (o Estado, o Poder, a Repressão Política etc.) para entrar no ambíguo tema do jogo de mútuos reflexos entre mídia e realidade.

terça-feira, novembro 29, 2011

Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 2) - Umberto Eco

O italiano Umberto Eco no seu livro "Travels in Hyperreality" de 1983 (no Brasil, “Viagens na Irrealidade Cotidiana”) fez uma série de observações extremas que, três décadas depois foram confirmadas e, em alguns casos, até superadas: imitações e réplicas ficarão tecnologicamente superioras à própria realidade a tal ponto iriam contaminar o real e a História. Isso Umberto Eco verificou no mundo dos museus e do turismo, mas é na TV que essa tendência seria mais dramática: de janela aberta para o mundo e testemunha ocular da História, a TV se transformaria em uma entidade autista e em um aparato criador de realidades: os chamados "eventos-encenação".

Ao lado do norte-americano Daniel Boorstin (discutido na postagem anterior), o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco foi um dos primeiros teóricos da simulação. Nos anos 70 Eco empreendeu uma excursão pelos EUA para obter, em primeira mão, um olhar para as imitações e réplicas que estavam expostas em museus e parques temáticos e turísticos no país. O resultado foi uma série de ensaios que resultou no livro clássico “Travels in Hiperreality”.

Lendo hoje, percebemos no trabalho uma estranha qualidade: a combinação de filosofia pós-moderna com o estilo das colunas de turismo dos jornais de final de semana, porém, cheio de descrições sardônicas.

Desempenhando o papel simultâneo de crítico cultural e guia turístico, leva o leitor através da paisagem americana que, ele diz, estaria recriando uma falsa História, uma falsa arte, natureza e cidades. Ao longo do caminho, ele examina uma reprodução do Salão Oval do ex-presidente Lyndon Johnson, e passa por uma reconstrução do laboratório de uma bruxa medieval, onde gritos gravados do que parecem ser de bruxas na fogueira podem ser ouvidos ao fundo. Ele visita museus de cera onde obras de arte são recriadas e, muitas vezes, reinventadas de forma inesperada, resultando em mutações culturais como uma estátua de cera da Mona Lisa e uma cópia da Vênus de Milo "restaurada", com braços.

O mais notável nesses ensaios é que, três décadas depois de publicados, muito das suas observações extremas foram confirmadas e, em alguns casos, superadas.

O melhor exemplo é o do ensaio “Televisão: a Transparência Perdida” onde cria dois conceitos hoje clássicos na Teoria da Comunicação – Paleotevê e Neotevê.

domingo, novembro 27, 2011

Será a Realidade um Filme Mal Produzido? (Parte 1)

Daniel Boorstin
Com essa postagem iniciamos uma trilogia que discutirá as mutações que historicamente vêm ocorrendo em torno da noção de Realidade. Matéria-prima das notícias, os acontecimentos sempre tiveram o estatuto de fatos reais e o Jornalismo e as Ciências Humanas como áreas do conhecimento que deveriam primar pela objetividade, seja ela profissional ou metodológica. O historiador Daniel Boorstin foi o primeiro pesquisador a questionar isso ao propor a noção de "pseudoevento":  os acontecimentos e as mídias cada vez mais estariam sendo contaminados por estratégias de simulação que, para além de serem simples manipulações, estariam alterando a própria percepção da realidade. 

“(...) a sociologia, a análise econômica, a análise de poder etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um filme mal produzido.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados”).

E se considerarmos que a própria realidade, cercada por um ambiente altamente midiatizado pelas tecnologias de comunicação e informação, estivesse se tornando, ela própria, um campo de eventos cada vez mais artificiais? Explicando melhor, e se a própria estrutura dos acontecimentos fosse cada vez mais moldada ou influenciada pela presença massiva dessas tecnologias ao ponto de que os eventos progressivamente se esvaziassem em seu estatuto ontológico, isto é, como fatos fechados em si mesmo, espontâneos, históricos?
O “erro fundamental” a que se refere a citação acima do teórico de mídia e filósofo Boris Groys seria o de que as metodologias das ciências humanas ainda não perceberam esta espécie de paradoxo quântico na relação das mídias diante da própria realidade: o olhar do observador altera o transcorrer dos próprios fenômenos que ele quer observar. E se o social, o político e o econômico tiverem o seu vir-a-ser determinado pela existência das mídias que os observam? Ao Consumir as imagens dos eventos através das mídias ainda as tomamos pela tradicional noção ontológica de realidade, mas, ao contrário, há muito tempo deixaram de serem imagens da realidade para se tornarem cada vez mais representações de representações (simulacros) que tomamos como o próprio real. O que chamamos de realidade já teria se reduzido a uma fina interface gerada pelos códigos midiáticos.
Essa dúvida epistemológica levantada por Groys em relação às ciências sociais de que o próprio objeto de estudos estaria perdendo o status ontológico se insere em toda a discussão dos pós-modernos sobre os conceitos de Simulacro e Simulação e a suspeita de que a realidade é um “constructo” ao melhor estilo “Show de Truman” ou “Matrix”.

sábado, novembro 26, 2011

Alquimia e Morte em "Perfume: a História de um Assassino"

Considerado inadaptável à linguagem cinematográfica, o livro “Das Parfum” de Patrick Süskind foi finalmente roteirizado para o cinema em 2006. O resultado  foi o filme “Perfume: a História de um Assassino” (Das Parfum) pelo diretor Tom Tykwer de “Corra, Lola, Corra” (1998). O filme narra como a busca alquímica da quintessência dos perfumes (a soma das flagrâncias das mais belas mulheres do mundo) pode resultar em uma série de assassinatos. O anseio pela experiência do sublime e do espiritual pode se converter no seu oposto: a morte e o horror.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro "Perfume" de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça ao seu livro: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”


Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.



Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

quinta-feira, novembro 24, 2011

No Filme "Zelig" Woody Allen faz uma Fábula sobre a Psicologia de Massas do Século XX

Woody Allen conseguiu transformar o seu filme “Zelig” (1983) em uma narrativa que se mantém sempre atual: por meio do humor sardônico do gênero pseudo-documentário conseguiu didaticamente apresentar as origens da cultura narcísica das celebridades contemporâneas e, através da personagem da doutora Eudora Fletcher (Mia Farrow) descrever as principais teses do século XX sobre a Psicologia de Massas.

“Zelig” talvez seja o primeiro filme do gênero "mockmentary" ou pseudo-documentário. Satírico por natureza, nesse gênero o diretor tem a liberdade de construir argumentos baseando-se em falsas premissas para, dessa forma, criar um fato hipotético. O semiólogo italiano Umberto Eco chamaria isso de “verdade parabólica”: criar uma relação indireta com o real por meio de simbolismos, paródias, paráfrases etc. É um gênero que ganha cada vez mais força como o controverso “Borat” (2006), “Cloverfield: Monstro” (Cloverfield, 2008) e “A Bruxa de Blair” (The Blair Witch Project, 1999).

Mas o filme “Zelig” estava à frente do seu tempo. O pseudo-documentário é ambientado na década de 1920 e 30 e fala sobre Leonard Zelig (Woody Allen), um homem pacato e desinteressante que passaria anônimo na história, não fosse a estranha capacidade de transformar sua aparência na das pessoas que o cercam (na presença de chineses adquire traços orientais, na presença de judeus transforma-se num rabino etc.). É o “camaleão humano”, estranho caso que intriga psicólogos, psiquiatras e neurologistas que não conseguem chegar a um diagnóstico. Com o auxílio da técnica do “croma key” Woody Allen inseriu seu personagem e outros atores em imagens reais de cinejornais da época, antecipando técnicas usadas em filmes como “Forrest Gump” (1994). 

Para diluir ainda mais os limites entre realidade e ficção, o filme conta ainda com a participação de figuras reais do mundo acadêmico como a ensaísta Susan Sontag, o psicólogo Bruno Bettelheim e o escritor vencedor do prêmio Nobel Saul Bellow, entre outros.

quarta-feira, novembro 23, 2011

O Futuro como Profecia Auto-Realizadora no filme "O Pagamento"

Embora seja a pior adaptação no cinema de uma obra do escritor norte-americano de sci fi Phip K. Dick, o Pagamento (Paycheck, 2003) propõe a discussão de um interessante paradoxo temporal: a profecia auto-realizadora como tática de engenharia de opinião pública para que futuros alternativos sejam induzidos e manipulados. Mentiras ou boatos podem paradoxalmente se auto-realizarem como verdades. Isaac Assimov chamava isso de "Psicohistória".

Desde o filme “O Caçador de Andróides” (Blade Runner, 1982), Hollywood descobriu o escritor de ficção científica assumidamente gnóstico Philip K. Dick. A maioria das adaptações de seus contos ou livros completos obtiveram sucesso comercial ou crítico: “O Caçador de Andróides”, “O Vingador do Futuro”, “Screamers”, “Minority Report”, “Scanner Darkly” e o recente "Agentes do Destino". Porém, o filme “O Pagamento” foi certamente a pior das adaptações.

Logicamente, a culpa não foi de K. Dick mas dos produtores por convidarem John Woo, diretor que se notabilizou pela prioridade às cenas de ação em seus filmes (“A Outra Face” e “Missão Impossível 2”). Para quem está familiarizado com a obra e filmes baseados em Philip K. Dick facilmente reconhecemos em “O Pagamento” alguns dos seus temas mais caros: perda da memória e paradoxos temporais. Mas John Woo, ao adaptar a estória de ficção científica transformou-a, no final, em uma mera narrativa de ação.

Por isso, vamos resgatar nessa postagem o tema que acreditamos seja o principal na obra “Paycheck” e que foi pouco desenvolvido pela direção de John Woo: o paradoxo do tempo recursivo.

Primeiro vamos fazer uma breve sinopse: Michael Jennings (Ben Affleck) é um especialista em engenharia reversa: analisa o produto da empresa concorrente e desenha uma nova versão que excede as características originais. Ao finalizar esse trabalho, suas memórias correspondentes ao período de tempo em que trabalhou são apagadas com a ajuda técnica do seu amigo Shorty (Paul Giamatti) para proteger a propriedade intelectual de seus clientes.

James Hethrick (Aaron Eckhart), CEO da empresa Allcom, oferece um misterioso trabalho que envolve um projeto ultra-secreto da área de ótica, com uma duração de no mínimo três anos. Em troca do apagamento das memórias desse período, Hethrick oferece participação nas ações da empresa. Ele completa o trabalho e descobre que desistiu dos milhões de dólares em ações em troca de um enigmático envelope contendo uma série 20 diferentes objetos, aparentemente sem nenhum nexo: chave, um maço de cigarros, óculos de sol, uma bala de revólver.

Por que desistiu de uma fortuna em ações por um envelope contendo esses prosaicos objetos? Perplexo, Jennings se vê numa situação onde a Allcom tenta matá-lo, ao mesmo tempo em que agentes do FBI tentam capturá-lo por suspeita de um crime que não lembra ter cometido.

sábado, novembro 19, 2011

O Western Espiritual "Dead Man"

De todos os subgêneros e revisionismos criados a partir do western clássico, o que mais chama a atenção é o “acid western” pelo seu caráter “underground” místico e messiânico: todos os personagens do gênero estão lá (caçadores de recompensas, prostitutas, cowboys errantes etc.), porém eles não lutam mais por vingança, conquista ou justiça: buscam a iluminação espiritual. “Dead Man” (1995) do diretor Jim Jarmuch se insere nesse subgênero ao rechear as linhas de diálogos com inúmeras referências ao poeta e pintor inglês místico e herético William Blake e construir uma narrativa hipnótica como um mantra ao som da guitarra de Neil Young.

O gênero western é um produto tipicamente norte-americano que passou por uma série de renovações, sempre com a preocupação da indústria do entretenimento universalizá-lo para torná-lo um produto com um mercado globalizado: do western clássico desde a era do cinema mudo que retrata a luta do homem para conquistar a natureza infestada por índios e animais selvagens, passando pelo diretor John Ford (culturalmente mais neutro onde os nativos passam a ter um melhor tratamento) que vai construir aprofundamentos psicológicos em toda a galeria dos personagens do gênero (caçadores de recompensas, cowboys errantes etc.) até chegar a autoconsciência paródica do chamado “spaghetti western”de Sérgio Leone e o revisionismo de Sam Peckinpah onde pretendia arrancar poesia da violência representada em câmera lenta.

Para além dessa trajetória “mainstream”, o crítico de cinema Jonathan Rosenbaun aponta para um subgênero underground: o “acid western”subgênero que se inicia com o filme “El Topo” (The Mole, 1970), um western místico Cult recheado de referências ao tarot, messianismo e referências bíblicas em linguagem lisérgica. “Dead Man” de Jim Jarmuch se insere claramente nessa linha ao criar um protagonista que não busca mais conquista, vingança ou justiça, mas iluminação espiritual através de uma “poesia escrita com sangue”.

É a estória de um jovem homem que realiza uma jornada espiritual em uma terra estranha para ele, nas fronteiras extremas do oeste americano, em algum momento da segunda metade do século XIX. William Blake (Johnny Deep) é um contador que recebe convite para trabalhar em uma metalúrgica em uma cidade chamada Machine. Em seus bolsos alguns dólares e a carta de promessa de emprego na metalúrgica. Chegando lá, descobre que outro homem já ocupava a vaga de contador e que ele, Blake, chegou com um mês de atraso.

Deprimido, vai para um saloon, onde encontra com uma mulher, ex-prostituta, Thel (Mili Avital). Defende-a da agressividade dos homens do local, sendo convidado por ela para ir até seu quarto. Lá, ambos são flagrados pelo noivo Charlie Dickinson (Gabriel Byrne) que dispara um revólver, atingindo os dois. Em legítima defesa, Blake o mata e foge, depois de constatar que Thel estava morta. A partir desse ponto, começa o purgatório de Blake: Charlie era, na verdade, filho do proprietário da metalúrgica, que contrata três pistoleiros para matá-lo em vingança.

sábado, novembro 12, 2011

Editor do Blog “Cinema Secreto: Cinegnose” sofre acidente


Vejam o estado do capacete

Esse blog ficará temporariamente sem atualizações devido a acidente ciclístico sofrido por mim neste último domingo. Treinava, como de rotina, no Rodoanel aqui da Grande São Paulo. Na saída de um túnel que dá acesso ao Rodoanel Sul e a Régis Bittencourt fui pego de surpresa com um desnível entre as placas de concreto do pavimento (alías, placas que estão progressivamente se deteriorando com o peso dos caminhões, em todo Rodoanel). A roda dianteira travou e fui projetado para frente em cambalhota.

Um dia após a cirurgia, internado
Resultado: uma fratura grave na coluna sob risco de ficar paraplégico. Fui submetido a cirurgia ontem (11/11) no Hospital Leforte, em São Paulo. A cirurgia foi um sucesso e estou no quarto onde digito essas mal traçadas linhas.

Portanto, leitores e seguidores, as atividades do blog estão temporariamente suspensas. Segundo o prognóstico da junta médica, uma semana;
Abraços e até a volta, porque o pior já passou.

quinta-feira, novembro 03, 2011

A Ilusão do Mundo e o Mundo da Ilusão no filme "O Fundo do Coração"


À época do seu lançamento o filme "O Fundo do Coração" (One From the Heart, 1982) foi fracasso de crítica e de público e a falência do diretor Coppola. Ninguém entendeu nada. Não é para menos, pois o filme estava à frente da sua época: um musical romântico hiper-estilizado e metalinguístico reproduzindo Las Vegas em estúdio com um assombroso número de cenários antevia a sensibilidade atual onde, com a proliferação das tecnologias das imagens e virtualização do real, passamos a conviver com a suspeita de que o mundo possa ser uma ilusão fabricada, como um gigantesco estúdio. Parece que Coppola anteviu "Show de Truman" e "Matrix".

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