A atmosfera
distópica e niilista do filme “O Clube da Luta” (Fight Club, 1999) do diretor
David Fincher (“A Rede Social”) cria um cenário trágico, mas, principalmente,
ambíguo. O filme parece ter sido composto dentro de uma “zona cinza”, entre a
vida obscura e anônima onde alimentamos sonhos de consumo e a busca de alguma
saída messiânica, negativa e totalitária. A narrativa procura o meio termo: a
busca da iluminação espiritual por meio da busca de si mesmo através do
silenciamento do corpo e do pensamento, nem que seja através da violência.
Buscar a iluminação através do desprezo pelo “mísero composto universal” do
qual fazemos parte.
Incomunicabilidade, alienação e impossibilidade de
transformação são temas recorrentes na filmografia do diretor David Fincher:
entre o recente “A Rede Social” (onde um gênio em algoritmos de Havard com
grande dificuldade em se relacionar desconta sua ansiedade difamando pessoas em
um blog) e o mais antigo “Vidas em Jogo” de 1997 (um milionário frio e
solitário é submetido a um tratamento de choque por meio de um "roller play game" contratado pelo irmão na esperança de conscientizá-lo), temos o cultuado e
enigmático “Clube da Luta” com os mesmos temas, porém carregado de uma
ambiguidade explosiva como veremos abaixo.
Baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk de 1996, para
Fincher o grande tema de “Clube da Luta” era a emancipação assim como os filmes
“A Primeira Noite de um Homem” (The Graduate, 1969) ou “Juventude Transviada”
(Rebel Whithout a Cause, 1955), mas, dessa vez, para jovens adultos na faixa
dos 30 que vivem na sociedade atual que impede o amadurecimento: “fomos
projetados para sermos caçadores, mas vivemos em uma sociedade de shoppings.
Não há mais pelo que caçar, pelo que lutar, superar ou explorar. No interior
dessa sociedade da castração é que foi criado o protagonista do filme”, afirma
Fincher para completar: “para o protagonista encontrar a felicidade o único
caminho possível será viajar através de uma iluminação no qual mate seus
familiares, seu deus e seu professor” (VEJA Smith, Gavin (Sep/Oct 1999). "Inside Out: Gavin Smith Goes
One-on-One with David Fincher". Film Comment 35 (5): pp. 58–62, 65,
67–68.)
Jack: o mal estar do consumismo - insônia e terapias grupais |
Jack (Edward
Norton) é um executivo yuppie que trabalha como investigador de seguros de uma
grande empresa. Tem uma vida consumista e valores superficiais. Vive em
constantes crises de insônia e extravasa sua ansiedade em sessões de terapia
grupal, ao lado de gente com câncer, tuberculose e outras doenças, pois é só no
meio de moribundos que Jack se sente vivo e assim consegue dormir. Esse
paliativo é interrompido pela chegada de Marla Singer (Helena Bonham Carter),
uma viciada em heroína, café e cigarros com ideia fixa de suicídio.
Repentinamente
entra na sua vida Tyler Durden (Brad Pitt). Eles se conhecem em um voo e mal se
falam, mas quando o apartamento de Jack explode misteriosamente ele vai morar com Tyler, que vive em um casarão caindo aos pedaços. Tyler lhe
oferece uma perigosa alternativa: por à prova seu instintos em combates
corporais. Assim nasce o Clube da Luta, que ganha diversos adeptos onde aliviam suas
tensões arrebentando a cara uns dos outros. Com o tempo,
Tyler demonstra que seus planos vão além da criação do Clube, uma mania que ganha adeptos no país inteiro: Tyler sonha em
concretizar o seu "Projeto Caos" – um projeto de terrorismo e sabotagem cujo objetivo final é
zerar todos os débitos do sistema financeiro mediante a destruição dos prédios
das empresas de cartão de crédito.
Com o passar do tempo, estranhos déjà vus
e lapsos temporais vão crescendo a suspeita de que, na verdade, Jack e Tyler
são a mesma pessoa, os dois lados de uma personalidade dividida por uma clivagem esquizofrênica.
Iluminação espiritual através da luta
“Jack não tem
diante dele um mundo de possibilidades, por isso não consegue imaginar uma
forma de mudar sua vida”, diz Fincher, a não ser criando o alter-ego
esquizofrênico Tyler Durden na sua mente. Durden é um super-homem nietzchiano:
para ele não devemos ter nenhum compromisso ético ou moral com esse mundo (“um
mísero composto universal da qual fazemos parte”) que apenas nos enfraquece e
castra. Portanto, devemos alcançar a disciplina em sistematicamente perdermos
todos os vínculos com o cosmos físico para alcançar a liberdade.
Tal é a proposta
do Clube da Luta. “O quanto
conhece a si mesmo se nunca entrou numa luta?”. Esta questão formulada por
Tyler no filme Clube da Luta dá a
dimensão simbólica do jogo da Luta para a narrativa. O Clube da Luta é o tema
central em torno do qual todos os caminhos de busca da gnose partem. O caminho para encontrar a verdade está
dentro de si mesmo, na procura do silêncio interior pela negação da linguagem,
do pensamento, pela procura do silêncio e do grau zero de sentido.
A Luta: dor, disciplina e ascese |
A Luta tem um
aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os pensamentos e a
racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se convertam no
oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da consciência. Faz
parte dessa emancipação o descarte de todo que é externo ao ser: “Você não é a
sua conta bancária. Nem as roupas que usa. Você não é o conteúdo da sua
carteira. (...)”. A partir do momento em que o apartamento de Jack é
misteriosamente destruído por um incêndio, acaba a sua vida consumista. Muda-se
para o casarão de Tyler, caindo aos pedaços, e, em pouco tempo, estão se
esmurrando na frente de um bar. Jack vai perdendo tudo, do apartamento ao seu
próprio corpo. “Isso é liberdade. Quando perde todas as esperanças, então você
está livre”. A dor impingida a si mesmo no Clube da Luta é o último descarte
para alcançar a gnose: o distanciamento da dor do próprio corpo, a disciplina e
concentração necessária para alcançar o silêncio interior. Este parece ser o
caráter marcial do Clube da Luta, um jogo onde nem a individualidade mais
interessa porque “todos fazemos parte de um mísero composto universal”, como
anuncia Tyler.
Água, Sabão e Vinagre
Além das críticas
à sociedade de consumo e à alienação, as linhas de diálogo do filme estão
repletas de tiradas místicas e simbolismos religiosos e até alquímicos. A água
(sempre associada ao simbolismo da limpeza e renovação) inunda o casarão de
Tyler que cai em pedaços. “toda vez que chovia tínhamos que cortar a energia. No final do
primeiro mês não sentia mais a falta da TV. Nem me importava com a geladeira
quebrada”, fala em off Jack com a imagem de Tyler cortando a energia dentro de
um porão inundado. O simbolismo da renovação da água associado ao processo de
progressivo desprendimento dos bens materiais.
O sabonete à base de gordura humana: o irônicosimbolismo da sociedade de consumo |
O
sabão fabricado e comercializado por Tyler tem um simbolismo especial e irônico
associado, mais uma vez, ao banho e água. O sabonete (fabricado à base de
gordura humana que ele rouba do lixo das clínicas de lipoaspiração), vendido
nas lojas de griffe norte-americanas, demonstra a ilusão da assepsia na
sociedade de consumo: um sabonete feito a partir de sobras do corpo humano, isto
é, a partir da obesidade provocada pelo próprio consumismo compulsivo.
Em
outro momento a água é substituída por um pó químico, que provoca forte
queimadura, jogado na mão de Jack por Tyler, num profundo significado simbólico
de iniciação e de conscientização forçada pela dor. O antídoto não é água, mas
vinagre:
Tyler: Dói mais
do que qualquer queimadura e vai deixar uma cicatriz. Meditação funciona com
câncer, talvez funcione agora.
Jack: Ó Deus.
Tyler: Sem dor
ou sacrifício talvez não teríamos alcançado nada.
Jack: Vou à
minha caverna encontrar meu animal de força.
Tyler: Não, não
lide com isso da mesma forma com que aquela gente moribunda faz!
Jack: Entendi!
Tyler: Não,
aquilo é só iluminação precoce! Cale a boca. Nossos pais foram inspiração para
Deus. Se eles nos abandonaram, o que isso lhe diz sobre Deus? Escute, tem que
considerar a possibilidade de que Deus não goste de você. Nunca lhe quis e
provavelmente te odeia. Não é tão ruim assim. Não precisamos Dele!
Jack: Concordo!
Tyler: Prá puta
que o pariu com a perdição. Somos os enjeitados de Deus, que assim seja!
Jack: Quero
água!
Tyler: Água só
vai piorar. Use vinagre para neutralizar a queimadura. Pare de lutar. Primeiro
tem que perder o medo. Saber que um dia você vai morrer. Somente depois de
perdermos tudo é que estaremos livres
O
vinagre possui um simbolismo que se encaixa nesse diálogo que é um verdadeiro
ritual de iniciação que Tyler impõe ao Narrador. Para o Cristianismo o vinagre
é o símbolo da paixão de Cristo e para a Alquimia é a consciência.
Consciência
que Tyler quer criar com a própria dor da queimadura. Tyler impede que Jack desloque sua consciência para tentar fugir da dor através das técnicas
de meditação dos grupos de auto-ajuda. “Aquilo é iluminação precoce”, critica
Tyler. A iluminação deve vir da dor, do confronto do próprio corpo com um mundo
abandonado por Deus. Aqui o vinagre é a consciência da dor de perder tudo para
se sentir livre.
A
Zona Cinza do Clube da Luta
A
atmosfera distópica e niilista do filme cria um cenário trágico, mas,
principalmente, ambíguo. O filme parece ter sido composto dentro de uma “zona
cinza”, entre a vida obscura e anônima onde alimentamos sonhos de consumo e a
busca de alguma saída messiânica, negativa e totalitária.
O
caminho de iluminação espiritual proposto pela narrativa pode, facilmente, cair
em uma leitura totalitária, para não dizer fascistóide e fundamentalista. A
mensagem pode significar que não somos os responsáveis por grande parte das
coisas que acontecem. Tudo já está construído, só precisa funcionar. O Projeto
Caos de Tyler pode parecer um grupo de milícia de direita onde o indivíduo nada
conta por ser apenas parte do “mísero composto universal”.
Tal
leitura foi ainda mais reforçada pelo episódio do “maníaco do shopping” em São
Paulo em uma das sessões do filme: o estudante
Mateus da Rocha Meire, em novembro de 1999, munido de uma metralhadora
semi-automática, entrou em uma das salas de projeção do Morumbi Shopping, em
São Paulo, enquanto todos assistiam a uma sessão do filme do diretor David
Fincher. Ao disparar aleatoriamente contra o público, o estudante matou três
pessoas, iniciando mais uma incessante controvérsia a respeito das relações
entre violência e imagens nos meios de comunicação.
Ficha Técnica:
- Título: Clube da Luta
- Diretor: David Fincher
- Roteiro: Jim Uhls baseado no livro homônimo de Chuck Palahniuk
- Elenco: Edward Norton, Brad Pitt, Helena Bonham Carter, Meat Loaf
- Produção: Fox 2000 Pictures
- Distribuição: 20th Century Fox Home Entertainment
- Ano: 1999
- País: EUA
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