Daniel Boorstin |
“(...) a sociologia, a análise econômica, a análise de poder
etc. Sem prejuízo do que todas essas veneráveis ciências são capazes, incorrem
elas num erro fundamental. Não consideram a possibilidade de que a própria
realidade, inclusive toda a sociologia, a ciência econômica etc., possa ser um
filme mal produzido.” (GROYS, Boris. “Deuses Escravizados”).
E se considerarmos
que a própria realidade, cercada por um ambiente altamente midiatizado pelas tecnologias
de comunicação e informação, estivesse se tornando, ela própria, um campo de eventos
cada vez mais artificiais? Explicando melhor, e se a própria estrutura dos
acontecimentos fosse cada vez mais moldada ou influenciada pela presença
massiva dessas tecnologias ao ponto de que os eventos progressivamente se
esvaziassem em seu estatuto ontológico, isto é, como fatos fechados em si
mesmo, espontâneos, históricos?
O “erro fundamental” a que se refere a citação acima do teórico de mídia e filósofo Boris Groys seria o de que as metodologias das ciências humanas ainda
não perceberam esta espécie de paradoxo quântico na relação das mídias diante
da própria realidade: o olhar do observador altera o transcorrer dos próprios
fenômenos que ele quer observar. E se o social, o político e o econômico
tiverem o seu vir-a-ser determinado pela existência das mídias que os observam?
Ao Consumir as imagens dos eventos através das mídias ainda as tomamos pela
tradicional noção ontológica de realidade, mas, ao contrário, há muito tempo deixaram
de serem imagens da realidade para se tornarem cada vez mais representações de
representações (simulacros) que tomamos como o próprio real. O que chamamos de
realidade já teria se reduzido a uma fina interface gerada pelos códigos
midiáticos.
Essa dúvida
epistemológica levantada por Groys em relação às ciências sociais de que o próprio
objeto de estudos estaria perdendo o status ontológico se insere em toda a
discussão dos pós-modernos sobre os conceitos de Simulacro e Simulação e a
suspeita de que a realidade é um “constructo” ao melhor estilo “Show de Truman”
ou “Matrix”.
Mas muito tempo
antes dessas discussões de virada de século, o historiador e crítico social Daniel Boorstin
talvez tenha sido o primeiro pesquisador a compreender a maneira
como a cultura contemporânea utiliza-se de simulações ou falsas aparências. Em
seu livro de 1961 “The Image: A Guide to
Pseudo-events in America” ele reconheceu a simulação como uma importante
categoria presente em uma série de diferentes fenômenos sociais.
Boorstin afirmou
que a América estaria vivendo em uma “era do artifício” na qual a fabricação de
ilusões estaria tornando-se uma força social dominante. A vida pública seria
dominada por “pseudoeventos” – eventos encenados, verdadeiras contrafações dos
acontecimentos reais. Assim como os pseudoeventos haveria também as falsas
pessoas – as celebridades – com identidades fabricadas sem nenhuma relação com
a realidade subjacente. Até mesmo a indústria do turismo, que outrora oferecia
um passaporte para as pessoas viajarem pela realidade, torna agora os viajantes
isolados em verdadeiros lugares artificiais habitados por nativos pitorescos em
forma de imagem em papel machê, (reproduções estilizadas dos nativos reais)
para turistas que esperam ver cenas semelhantes às vistas anteriormente no
cinema.
O que é um Pseudoevento?
O que seriam os
pseudoeventos? Seriam eventos que se distinguiriam dos eventos reais pela sua
natureza falsa ou que tende para o artifício, para a fabricação deliberada para
as câmeras de TV, fotografia ou repórteres de mídias impressas.
No Pseudoevento a questão "isso é real?" é substuída pela "isso é noticiável?" |
O pseudoevento
teria as seguintes características:
1) Não
é espontâneo pelo fato de alguém tê-lo planejado, plantado na imprensa ou
incitado.
2) Ele
é planejado, primeiramente, com o imediato propósito de receber uma cobertura
jornalística. Por isto, sua logística (localização, tempo etc.) deve favorecer
tecnicamente a reportagem, os links
de TV ao vivo e a facilidade de captação de imagens. Para o jornalista a
questão “isso é real?” é substituído por “isso é noticiável?” Ou seja, quanto
melhor a logística do evento, maior a probabilidade de virar notícia e,
portanto, tornar-se “real”.
3) Sua
relação com a realidade subjacente é ambígua. Enquanto diante de um evento real
(enchentes, terremotos, desastres aéreos) o interesse é em saber o que aconteceu
e as consequências, no pseudoevento o interesse está na ambiguidade das
declarações (atos falhos, esquecimentos, declarações “involuntárias”,
descontrole emocional etc.). “O que será que isso significa?” “O que está por
trás disso?” A ambiguidade dá força a este tipo de evento, dando margem a
especulações que o faz progredir geometricamente. Uma simples declaração como
“não tenho nada a declarar” já é carregada de ambiguidade e pode transformar-se
em notícia.
4) Por
isso o pseudoevento tende a tornar-se uma profecia autorrealizadora. É o
fenômeno paradoxal onde um artifício pode se realizar como verdade. É também o
exemplo de boatos que surgem no mercado financeiro como, por exemplo, dando
conta que banco “X” está para quebrar. Tal boato cria uma correria para sacar
os ativos do banco vítima do boato. Resultado: o banco acaba de fato quebrando.
Origens dos Pseudoeventos
O motivo histórico
para o surgimento dos pseudoeventos na cena pública está no crescimento
exponencial da necessidade de um suprimento constante de notícias para
preencher colunas de jornais e revistas e minutos da TV e rádio, espaços estes
já pagos por anunciantes e que obrigatoriamente devem ser publicados e
transmitidos. A demanda crescente por notícias é muito maior do que a
capacidade do mundo para produzir fatos novos para as mídias. Isso requer que
muitos acontecimentos sejam fabricados para maquiar esta “deficiência” do
mundo. Para Boorstin os pseudoeventos surgem a partir desta demanda industrial
pela matéria-prima das notícias (os acontecimentos).
“O poder de fazer eventos noticiáveis é, dessa maneira, o poder de fabricar experiências. Isso lembra a resposta dada por Napoleão ao seu general que objetou que as circunstâncias eram desfavoráveis diante da campanha proposta. “Bah! Eu faço as circunstâncias.”[1]
As chamadas “estratégias indiretas” das
relações públicas vão de encontro a essa necessidade das mídias. De ambos os
lados há uma relação promíscua entre jornalista e a fonte da notícia onde
diferentes interesses acabam se convergindo: de um lado os profissionais de relações
públicas (ou, modernamente, o assessor de imprensa) querendo transformar seu
cliente em notícia e, de outro, a mídia, ávida pela matéria-prima das notícias.
A demanda por notícias é muito maior do que a capacidade da realidade em criar acontecimentos |
“Verossimilhança passou a ter um novo significado. Não apenas foi possível dar a uma nação inteira uma inesperada intimidade da voz e gestos de Franklin Roosevelt. Imagens vívidas vieram se sobrepor à pálida realidade. Cinema em cores levou uma geração inteira de espectadores americanos a pensar que Benjamin Disraeli foi um dos primeiros imitadores de George Arliss, assim como a televisão levou uma geração inteira de telespectadores a ver o cowboy do faroeste como uma réplica inferior de John Wayne. O Grand Canyon torna-se uma desapontadora reprodução de uma foto Kodak original.”[2]
Pseudoevento: confusão entre ficção e realidade
Se a profusão de
imagens (sejam ficcionais ou não) inunda a consciência dos indivíduos, é cada
vez mais fácil confundir a réplica com o original, a realidade com a imagem
feita da própria realidade. Isso lembra o conceito de hiper-realidade tal qual
descrito por Baudrillard: o momento de inversão da consciência onde a
contrafação do real torna-se mais importante que o próprio real. Isso fica
claro no caso das notícias que envolvem as chamadas celebridades e
acontecimentos que envolvem os políticos. Pessoas célebres (sejam artistas,
médicos etc.) são consumidas como notícias espontâneas, ou seja, como fossem
pessoas que se destacassem por qualidades especiais ou obras ou projetos de
relevância publica. Mas, cada vez mais, a celebridade atual é um pseudoevento:
produto de estratégias de relações públicas e assessorias de imprensa para
fabricar eventos que atraiam a atenção de fotógrafos e repórteres, lutam para
manterem-se em
evidência. Boatos , fofocas, declarações ambíguas, brigas,
separações e especulações em geral são meticulosamente criados e plantados nas
redações de jornais, TV e rádios.
Com os fatos
políticos não é muito diferente. Entrevistas, convenções, debates na TV,
coletivas para a imprensa são oportunidades para criar os chamados “balões de
ensaio”. Políticos fazem, de forma estudada, declarações que passam por
revelações ou projetos bombásticos. Eles sabem que estes projetos são
impossíveis de serem realizados. Seu objetivo é criar repercussão, polêmicas
para ocupar espaço em telejornais e colunas de comentaristas políticos. Tanto
as celebridades como os políticos são capazes de criar eventos e personagens
dramáticos que parecem seguir roteiros ficcionais de telenovelas: suspense,
traições, sacrifícios etc. Isso cria um fenômeno paradoxal: espectadores e
leitores consomem pseudoeventos como notícias reais porque possuem uma
linguagem ficcional. Qual nome o partido lançará como candidato a governador? O
suspense é artificialmente mantido, declarações contraditórias são plantadas na
imprensa.
Um exemplode pseudoeventos: "vazamentos" originados de "diálogos informais" |
Se o pseudoevento
parece ser mais atraente do que os acontecimentos espontâneos por possuir uma
linguagem ficcional, diante de um evento real imprevisível e autêntico a reação
das pessoas passa a ser de dúvida quanto a sua veracidade. Esse fenômeno
paradoxal foi acompanhado com o atentado ao World Trade Center em Nova York em 2001.
Diante dos aviões colidindo com as torres gêmeas, as explosões e o
desmoronamento final a incredulidade era generalizada: “Isso só pode ser
filmagem de mais um filme-catástrofe de Hollywood! Isso não poder ser real!”
Concluindo, para Boorstin os pseudoeventos cada vez mais se sobrepõem aos eventos reais pelos seguintes motivos:
1) Os
pseudoeventos são mais dramáticos o que agrada tanto a mídia quanto o público.
Um debate entre candidatos na TV, por ser planejado, tem mais suspense do que
um encontro casual.
2) Os
pseudoeventos são planejados para serem disseminados mais facilmente. Sua
natureza ambígua e os seus personagens escolhidos por serem “midiáticos”.
3) Os
pseudoeventos podem ser repetidos à vontade. Toda a sua logística (releases, “kit imprensa” com fotos e
matérias prontas para consumo pelos jornalistas) favorece a disseminação.
4) Os
pseudoeventos são planejados para serem inteligíveis, mesmo tratando-se de
assuntos complexos para o espectador ou jornalistas. Se não temos informações
para discutir de forma fundamentada as qualificações dos candidatos e suas
propostas mais técnicas, pelo menos podemos julgá-los pelas suas performances
televisivas. Por isso, tornam-se personagens estereotipados tal quais tipos
ficcionais (o “agitador”, o “astuto”, o “sincero”, o “traiçoeiro” etc.) para
uma maior inteligibilidade do roteiro.
5) Os
pseudoeventos são mais “amigáveis” por serem mais convenientes de serem testemunhados.
Ao contrário dos eventos espontâneos, os pseudoeventos ocorrem em horários,
dias e locais mais facilmente cobertos pela mídia.