sexta-feira, dezembro 30, 2011
Wilson Roberto Vieira Ferreira
O livro “Christmas
Carol” (Um Cântico de Natal, 1843) de Charles Dickens é atemporal por
apresentar dois grandes arquétipos que marcarão a vida moderna: Fantasmas e o Tempo.
Ao fazerem uma adaptação usando animação digital (através da tecnologia de “captura
de performance”), a Walt Disney Pictures e o diretor Robert Zemeckis ("De Volta para o Futuro" e "Forrest Gump") produzem
um efeito paradoxal: esvaziam o olhar crítico de Dickens sobre o início da
modernidade ao reduzir a narrativa à estética videogame por meio de uma
tecnologia moderna. O Ocultismo e a problematização do Tempo, marcas da
literatura do século XIX como formas de questionar a modernidade, são temas
oportunos para uma reflexão nesses momentos que antecedem a celebração de Ano
Novo onde todos querem reter um momento do tempo, que então será passado.
O livro clássico de Charles Dickens “Christmas Carol” já recebeu centenas de adaptações. É um dos livros mais lidos,
lembrados e citados de todos os tempos. A narrativa conta a estória de Ebenezer
Scrooge, velho ranzinza e sovina que passou a vida inteira juntando uma
fortuna, desprezando qualquer contato com as pessoas. Ele odeia o Natal por
achar que é uma época onde as pessoas gastam mais do que têm e ironiza como
gente tão pobre pode ser feliz. Na noite de Natal recebe a visita de três
fantasmas (que mostram para ele as visões do passado, do presente e do futuro)
levando-o a uma transformação íntima e reavaliando o significado da vida.
Só para ficar no cinema (as adaptações do livro de Dickens
abrangem teatro, televisão, ópera, história em quadrinhos etc.) existem
adaptações desde 1901. Desde então praticamente toda década há alguma
adaptação, referência ou revisitação da obra, passando pelos mais diversos
gêneros.
De Walt Disney temos o personagem do Tio Patinhas (Uncle
Scrooge) inspirado no protagonista avarento do livro de Dickens, um curta de
1983 “Mickey’s Christmas Carol” e o recente “Os Fantasmas de Scrooge” (Christmas
Carol, 2009) dirigido por Robert Zemeckis (“De Volta para o Futuro”, “Forrest
Gump” e “Contato”).
Essa produção repete a velha fórmula dos estúdios Disney: a
capacidade de lidar com temas trágicos, pesados e adultos de uma forma
divertida para crianças e jovens ao diluir simbolismos arquetípicos. No caso da
adaptação de Zemeckis, a utilização da tecnologia chamada “captura de
performance” onde a animação digital é feita a partir do escaneamento das
expressões dos atores. O diretor já havia utilizado essa tecnologia em “A lenda
de Bewulf” e “Expresso Polar”, mas em “Os Fantasmas de Scrooge” há um estranho
efeito: se a maior qualidade do conto de Dickens é a sua atemporalidade, na
produção Disney a tecnologia converte a narrativa, em muitos momentos, em um
videogame com cenas de ação desnecessárias. Os grandes temas arquetípicos da
obra de Dickens (que induzem à reflexão existencial e moral das ações humanas) são
esvaziados pelo ritmo frenético e uma estética cujas opções que o protagonista
sovina tem que tomar parecem alternativas de um game em computador.
A natureza atemporal do conto “Christmas Carol” vem de dois
temas que marcam o imaginário do século XIX e o início a vida moderna: o espiritualismo e a questão do
tempo ou, em outras palavras, fantasmas e o desejo de se apropriar do tempo.
O Tempo e alienação
da vida moderna
A cultura urbana e industrial do século XIX e as novas
tecnologias como o telégrafo, o eletromagnetismo, a iluminação urbana, as
locomotivas criam uma inédita aceleração do cotidiano. A vida passa a ser dominado
pela sensação do efêmero e da fragmentação. Em diversas manifestações estéticas
e artísticas surge o desejo do congelamento do instante, o impulso de se
apropriar do momento: a fotografia, a pintura impressionista (representar os
efeitos da luz na nossa percepção dos objetos e paisagens) e, mais tarde, o
cinema são formas de reação ao problema do “esvaziamento do presente”, o centro
da alienação da vida moderna.
Na literatura a questão do tempo e da memória torna-se
crucial: Marcel Proust e o verdadeiro tratado sobre “memórias involuntárias”
originadas por sabores e flagrâncias na obra “Em Busca do Tempo Perdido”; Lewis
Carroll e a questão de “quanto tempo dura o tempo” da Lebre em "Alice no País
das Maravilhas"; “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde onde o protagonista
vende a própria alma para manter sua beleza intacta à ação do tempo; “A Máquina
do Tempo” de HG Wells onde a tecnologia já anseia manipular o devir temporal
etc.
A experiência moderna com o tempo começa a ficar associada à
“obsessão da expectativa”, como afirma o filósofo italiano Marramao, onde o presente
é sempre deslocado para o futuro e tem seu núcleo patogênico em um “retardamento
de sentido em relação ao sucesso”, isto é, o sentido do presente está sempre
condenado a chegar depois. A apologia de Oscar Wilde em relação ao hedonismo e
o culto ao prazer do momento é uma resposta a essa “hipertrofia de expectativas”:
cada momento é vivido como fosse o próximo é a percepção do presente é sempre fugidia
e insondável (Veja MARRAMAO, Giacomo.Kairós – Apologia del tiempo
oportuno. Ed. Gedisa, 2002).
O pão-durismo do Sr. Scrooge e o seu medo de ficar pobre transforma-se
numa obsessão pelo futuro: renuncia ao presente (contatos sociais, amizades,
prazer etc.) em nome do “sucesso”, na verdade um outro nome para designar a
transferência forçada da experiência do momento para o futuro. Na estória de
Dickens, principalmente o fantasma do Futuro convencerá finalmente Scrooge da
necessidade de vivenciar o presente e capturar a atmosfera do momento (no caso,
as comemorações natalinas e do Ano Novo).
Da sovinice de Scrooge de um conto do século XIX aos
ambientes digitais da atualidade, essa alienação temporal persiste: as redes
online só acentuam a sensação de viver cada momento como fosse o próximo ao
trazer a sensação de ubiquidade e onisciência. O local, o presente e o concreto
são transferidos para o ciberespaço onde as vivências se resumem às linhas de
tempo de murais como no Facebook onde, em ritmo veloz, mensagens e links se
sucedem.
O tratamento dado a esse tema é a principal falha da
adaptação de Zemeckis à obra de Dickens: a linguagem videogame esvazia a
crítica que “Christmas Carol” faz a essa alienação da vida moderna. A rapidez e
dinamismo do tratamento narrativo entram em choque com a crítica à percepção
moderna do tempo.
Aliás, o tema da “hipertrofia das expectativas” como o
núcleo da alienação da vida moderna é oportuno nessa época de comemorações de
Ano Novo: o desejo de capturar o instante da virada (o calor, a atmosfera, a
alegria) se perde nas promessas e compromissos que obsessivamente firmamos em
relação ao próximo ano. Tal como Scrooge, nos fixamos no futuro e esquecemos de
experimentar o presente com um agravante: na festa da virada ficamos atentos às
telas de celulares, Ipods ou tablets atentos às linhas de tempo de murais de
mídias sociais, esquecendo do tempo presencial em que estamos.
Fantasmas e o Horror
Metafísico
O Espiritualismo e ocultismo é a outra marca do espírito de época
do século XIX presente no conto de Dickens. O racionalismo e o conhecimento
científico afirmaram a educação laica, o darwinismo e a industrialização,
fazendo regredir as religiões tradicionais, pelo menos nos centros mais
urbanizados e intelectualizados. O otimismo messiânico pela Liberdade,
felicidade, Riqueza e Modernidade passou a ser a nova religião, como, por
exemplo, o Positivismo de Augusto Comte.
A reação foi o crescimento do Ocultismo e Espiritualismo. Pesquisadores
como Erik Davis (Techgnosis – myth, magic
and mysticism in the age of information, New York: Serpent Tail, 2004)
acreditam que o Espiritualismo foi a primeira religião da Modernidade. Os
fenômenos mediúnicos, mesas girantes, escritas automáticas etc. estudados por
Alan Kardec e pela Antroposofia de Madame Blavatsky e Leadbater no século XIX,
surgem simultaneamente à descoberta do eletromagnetismo e na transformação da
eletricidade em informação com o telégrafo. Os próprios fenômenos paranormais
começam a ser interpretados como fenômenos eletromagnéticos de comunicação
espiritual.
Ao lado da questão do Tempo, o Horror, O Fantástico e o
Gótico passam também a ser temas recorrentes na literatura desse século ao
narrar a irrupção do Estranho e do Sobrenatural no cotidiano.
Charles Dickens magistralmente capta o espírito da época seminal
e funde os dois temas em um conto de Natal. Porém, mais uma vez, “Os Fantasmas
de Scrooge” de Zemeckis esvazia um arquétipo novecentista ao retirar do
protagonista o “horror metafísico” diante das visitas dos fantasmas do Tempo.
Por “horror metafísico” estamos nos referindo à irredutível ambiguidade de
acontecimentos estranhos: a incapacidade do protagonista determinar se um
acontecimento é natural ou sobrenatural, desafiando a racionalidade e as
próprias certezas pessoais (será tudo ilusão, sonho ou realidade?).
Zemicks parece estar tão fascinado pela utilização da tecnologia
e recursos da animação digital que esquece da jornada de Scrooge: a reforma
íntima do protagonista não ocorre de forma gradual. O personagem parece aceitar
todas as condições dos fantasmas logo na primeira aparição eliminando a
dramaticidade do horror metafísico de Dickens. A partir daí, a jornada perde
sentido e conteúdo para apenas subsistir a ação e o ritmo em videogame.
Ficha Técnica
Título: Os Fantasmas de Scrooge (Christmas Carol)
Diretor: Robert Zemeckis
Roteiro: Robert Zemeckis baseado no livro de Charles
Dickens “Chistmas Carol”
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"Cinema Secreto: Cinegnose" é um Blog dedicado à divulgação e discussões sobre pesquisas e insights em torno das relações entre Gnosticismo, Sincromisticismo, Semiótica e Psicanálise com Cinema e cultura pop.
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No Oitavo Aniversário o Cinegnose atualiza lista com 101 filmes: CosmoGnósticos, PsicoGnósticos, TecnoGnósticos, AstroGnósticos e CronoGnósticos.
Esse humilde blogueiro participou do Hangout Gnóstico da Sociedade Gnóstica Internacional de Curitiba (PR) em 03/03 desse ano onde pude descrever a trajetória do blog "Cinema Secreto: Cinegnose" e a sua contribuição no campo da pesquisa das conexões entre Cinema e Gnosticismo.
Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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