A sequência final da execução de Jean-Baptiste é emblemática. Caminhando para o
cadafalso, secretamente trazia em seu bolso o frasco com o perfume resultante
da busca da sua vida: a quintessência do odor dos corpos de todas as belas
mulheres. Através de um lenço, espalha a flagrância por toda a praça onde se
concentrava a multidão sedenta por assistir o espetáculo da execução do
assassino. Inebriados pela flagrância sagrada, todos vêem Jean-Baptiste como um
anjo, clamam pela sua inocência e a praça inteira converte-se numa imensa
orgia. Os planos gerais que mostram centenas de corpos nus participando da
frenética orgia são simbólicos: os corpos individuais se anulam dentro de um imenso
conjunto de corpos comandado pelo perfume, síntese resultante de uma série de
assassinatos.
Essa opressão da parte pelo todo lembra a irônica pergunta de Baudrillard: em
meio a uma orgia um homem pergunta para uma mulher “O que você vai fazer depois
da orgia?”
Essa experiência de um certo tipo de Sagrado (uma concepção de Sagrado
proveniente de uma Teologia Positiva como a experiência da conexão de uma parte
a um Todo, negando toda e qualquer experiência individual como caminho para
transcendência) poderia trazer um poder infinito para Jean-Baptiste: todos os
reinos e países cairiam de joelhos diante dele, confundindo-o com um enviado de
Deus e a experiência de sua flagrância como a verdadeira experiência do
Sagrado.

Mas ele descobre que jamais será amado por isso. Submetido a vida inteira a uma
auto-anulação, confinado a uma existência suprimida, miserável, onde seus
desejos individuais nada representavam diante da ambição sagrada pela utopia
dos odores, ao final manda tudo para o inferno. Retorna ao local onde nasceu (o
mercado de peixes) e lá se deixa ser destroçado pela massa de mendigos: joga
todo o recipiente do sagrado perfume sobre si, atraindo a fúria do extase de
todos ao redor. Todos se jogam sobre ele, tentando arrancar a todo custo um pouco
da flagrância sagrada. Final simbólico: diante do vazio da abstração dessa
experiência sagrada (não há amor ou concreticidade, apenas a anonimata
Totalidade) a metafísica entra em queda – o Todo é absorvido pelas partes, a
entidade abstrata é destruída pela concreção. E nada mais simbólico do que tudo
esse desfecho acontecer num fétido mercado de peixes: a vingança do físico, do
vital contra uma totalidade abstrata.
O verdadeiro tema do filme não é a utopia dos odores ou a dimensão sagrada por
trás da sensibilidade olfativa. Apesar de Jean-Baptiste ser movido por um
talento instintivo e selvagem, a ambição fáustica pelo poder faz ele entrar no
lado escuro do movimento da razão e do conceito: quanto mais tenta apreender o
objeto mais o destrói. De Marquês de Sade a Adorno e Horkheimer essa é a
Dialética do Esclarecimento: o movimento cada vez mais abstrato do conceito
conduz à frieza progressiva do sujeito que vê nos objetos simples espécimes que
devem comprovar uma verdade universal. A liquidação do objeto é o sacrifício
necessário dentro desse ritual da adoração de uma entidade sagrada secularizada
em conhecimento abstrato.
Esse é o verdadeiro tema do filme “Perfume”: no século XVIII Jean-Baptiste é o
arauto dos novos tempos – a dialética do esclarecimento presentes tanto na
religião como na ciência.