Considerado inadaptável à linguagem cinematográfica, o livro “Das Parfum” de Patrick Süskind foi finalmente roteirizado para o cinema em 2006. O resultado foi o filme “Perfume: a História de um Assassino” (Das Parfum) pelo diretor Tom Tykwer de “Corra, Lola, Corra” (1998). O filme narra como a busca alquímica da quintessência dos perfumes (a soma das flagrâncias das mais belas mulheres do mundo) pode resultar em uma série de assassinatos. O anseio pela experiência do sublime e do espiritual pode se converter no seu oposto: a morte e o horror.
“Perfume:
a história de um assassino” é um filme baseado no livro "Perfume" de Patrick
Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para
quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema
poderiam fazer justiça ao seu livro: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro
foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do
roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se
expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é
possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um
personagem se ele fala.”
Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do
Absoluto no sentido metafísico.
Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo,
capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de
percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que
lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por
mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também
excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de
Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas
apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade
da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.
De pesquisador a assassino
em série
Embora o filme tenha a alquimia como o pano de fundo dos processos de
destilação para as descobertas das essências dos perfumes, não parece ser esse
o tema do filme. A Alquimia busca não apenas transcender a matéria, mas
redimi-la. Buscar no material a quintessência que refina o espírito. Ao
contrário, a ambição de Jean-Baptiste é buscar preservar a flagrância para além
da destilação. Aprender a preservar a flagrância para nunca mais perder tal
sublime beleza. Ganancioso, seu objetivo era o de possuir tudo o que o mundo
lhe pudesse oferecer no que diz respeito a odores.
Para ele, não importava os indivíduos serem reduzidos a meros recipientes de
algo mais refinado: a flagrância. De pesquisador torna-se um assassino em
série, obcecado pela busca da flagrância que seria a síntese sublime e
espiritual de todos os odores das mais belas mulheres do mundo. Ao contrário da
Alquimia, sua experiência de Sagrado advém de uma Teologia Positiva.
Jean-Baptiste está mais próximo da Ciência moderna e do racionalismo do que do
misticismo alquímico. O assassinato ritual das vítimas corresponde à liquidação
do indivíduo ou da parte pela Totalidade no racionalismo. O sacrifício de meros
espécimes para se confirmar a Verdade que está no Todo. Em síntese:
Jean-Baptiste Grenouille é o arauto dos novos tempos que estão por vir, os
tempos atuais do racionalismo científico onde o indivíduo é esvaziado de
sentido para se encaixar dentro de uma ordem totalitária.
Fúria faustiana
A morte do perfumeiro Baldinni (Dustin Hoffman) é simbólica no filme:
representa o fim de uma era em que os processos alquímicos implicavam em
humildade e ética, para serem superados pela fúria faustiana de Jean-Baptiste
onde os fins justificam os meios.
A sequência final da execução de Jean-Baptiste é emblemática. Caminhando para o
cadafalso, secretamente trazia em seu bolso o frasco com o perfume resultante
da busca da sua vida: a quintessência do odor dos corpos de todas as belas
mulheres. Através de um lenço, espalha a flagrância por toda a praça onde se
concentrava a multidão sedenta por assistir o espetáculo da execução do
assassino. Inebriados pela flagrância sagrada, todos vêem Jean-Baptiste como um
anjo, clamam pela sua inocência e a praça inteira converte-se numa imensa
orgia. Os planos gerais que mostram centenas de corpos nus participando da
frenética orgia são simbólicos: os corpos individuais se anulam dentro de um imenso
conjunto de corpos comandado pelo perfume, síntese resultante de uma série de
assassinatos.
Essa opressão da parte pelo todo lembra a irônica pergunta de Baudrillard: em
meio a uma orgia um homem pergunta para uma mulher “O que você vai fazer depois
da orgia?”
Essa experiência de um certo tipo de Sagrado (uma concepção de Sagrado
proveniente de uma Teologia Positiva como a experiência da conexão de uma parte
a um Todo, negando toda e qualquer experiência individual como caminho para
transcendência) poderia trazer um poder infinito para Jean-Baptiste: todos os
reinos e países cairiam de joelhos diante dele, confundindo-o com um enviado de
Deus e a experiência de sua flagrância como a verdadeira experiência do
Sagrado.
Mas ele descobre que jamais será amado por isso. Submetido a vida inteira a uma
auto-anulação, confinado a uma existência suprimida, miserável, onde seus
desejos individuais nada representavam diante da ambição sagrada pela utopia
dos odores, ao final manda tudo para o inferno. Retorna ao local onde nasceu (o
mercado de peixes) e lá se deixa ser destroçado pela massa de mendigos: joga
todo o recipiente do sagrado perfume sobre si, atraindo a fúria do extase de
todos ao redor. Todos se jogam sobre ele, tentando arrancar a todo custo um pouco
da flagrância sagrada. Final simbólico: diante do vazio da abstração dessa
experiência sagrada (não há amor ou concreticidade, apenas a anonimata
Totalidade) a metafísica entra em queda – o Todo é absorvido pelas partes, a
entidade abstrata é destruída pela concreção. E nada mais simbólico do que tudo
esse desfecho acontecer num fétido mercado de peixes: a vingança do físico, do
vital contra uma totalidade abstrata.
O verdadeiro tema do filme não é a utopia dos odores ou a dimensão sagrada por
trás da sensibilidade olfativa. Apesar de Jean-Baptiste ser movido por um
talento instintivo e selvagem, a ambição fáustica pelo poder faz ele entrar no
lado escuro do movimento da razão e do conceito: quanto mais tenta apreender o
objeto mais o destrói. De Marquês de Sade a Adorno e Horkheimer essa é a
Dialética do Esclarecimento: o movimento cada vez mais abstrato do conceito
conduz à frieza progressiva do sujeito que vê nos objetos simples espécimes que
devem comprovar uma verdade universal. A liquidação do objeto é o sacrifício
necessário dentro desse ritual da adoração de uma entidade sagrada secularizada
em conhecimento abstrato.
Esse é o verdadeiro tema do filme “Perfume”: no século XVIII Jean-Baptiste é o
arauto dos novos tempos – a dialética do esclarecimento presentes tanto na
religião como na ciência.
- Direção: Tom Tykwer.
- Roteiro: Andrew Birkin, Tom Tykwer, Bernd Eichinger.
- Produção: Bernd Eichinger.
- Música: Johnny Klimek, Reinhold Heil e Tom Tykwer.
- Elenco: Alan Rickman (Antoine Richis), Ben Whishaw (Jean-Baptiste Grenouille), Dustin Hoffman (Giuseppe Baldini), John Hurt (Narrador), Karoline Herfurth, Michael Smiley (Porter), Perry Millward (Marcel), Rachel Hurd-Wood (Laura Richis), Ramón Pujol (Lucien).
- Produção: Constantin Film Produktion e VIP 4 Medienfonds
- Distribuidora: Paris Filmes
- Ano: 2006
- País: Alemanha, França, Espanha, EUA.
Postagens Relacionadas