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Um fantasma ronda Hollywood. O espectro da Karl Marx. Desde a pandemia Covid-19 (a concentração de riqueza mais brutal da era moderna) e o Oscar dado ao filme “Parasita”, a desigualdade e luta de classes passaram a ser temas recorrentes na filmografia dos últimos anos. Mas, ao mesmo tempo, nunca foram mobilizados tantos recursos semióticos para tentar exorcizar esse espectro. A produção Netflix “The Eletric State” (2025) é o exemplo mais recente desse processo de exorcismo: a luta de classes é traduzida por um levante de máquinas exploradas que se revoltam contra humanos exploradores. E a Internet que virou uma engenharia social das Big Techs comandada por algoritmos e a economia da atenção, virou um mero delírio de um gênio maligno da tecnologia. Hollywood tenta exorcizar o fantasma do marxismo com narrativas maniqueístas.
Um fantasma ronda Hollywood na atualidade. Se na segunda metade do século passado e nas primeiras décadas desse século era o fantasma do velho Gnosticismo (que acabou dando origem a este blog Cinegnose), agora temos a visita de um espectro bem especial: Karl Marx e todo corolário de críticas ao capitalismo em torno do Marxismo.
E os anos recentes foram pródigos em crises e eventos revelando que o capitalismo estava entrando numa nova fase de acomodação (“Grande Reset Global”, “Capitalismo de Desastre” etc.). Principalmente na crise global provocada pela pandemia global Covid-19, na qual aconteceu a concentração de renda mais brutal do período moderno – a injeção de dinheiro público para salvar a liquidez dos mercados financeiros sob o pretexto de evitar uma suposta “crise sistêmica”.
Definitivamente, desde o premiado filme com o Oscar, Parasita, os obscenamente ricos estão passando por momentos muito difíceis no cinema. Vimos um monte deles em um iate de luxo vomitando uns nos outros em Triangle of Sadness (2022) e na série Glass Onion: A Knives of Mystery (2022), multimilionários presos em uma ilha grega particular tentando descobrir quem entre eles é um assassino.
Outro exemplo: em O Menu (The Menu, 2022) acompanhamos integrantes daquela casta dos 1% mais ricos que abocanham a maior parte da riqueza do planeta ostentando suas fortunas e poder num jantar exclusivo em uma ilha privada em algum lugar no noroeste do Pacífico.
E agora, o diretor de Parasita, o sul coreano Bong Joon-ho, volta à carga para o tema desigualdade e luta de classes com o filme Mickey 17 – acrescentando ao processo o tema da precarização do trabalho e existencial. Além de mostrar que os absurdamente ricos têm ao seu lado líderes políticos populistas de extrema-direita e Big Techs.
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Isso não significa que tais filmes sejam “críticos”, “de esquerda”, “disruptivos e revolucionários”. Afinal, são produtos comerciais de entretimento de Hollywood. Por exemplo, em Mickey17 Bong Joon-ho acredita que a luta de classes não acaba destruindo o capitalismo: basta nos imbuirmos de amor, bondade, camaradagem, heroísmo e sacrifício para termos uma sociedade justa.
Mas nada se compara ao absoluto nonsense da produção Netflix The Electric State (2025): quem precisa de uma IA produzindo um futuro distópico que destrua fé na humanidade quando a dupla de cineastas Anthony e Joe Russo podem produzir a maior extravagância em ficção científica dos últimos anos?
Em The Electric State, uma jovem e um robô silencioso lentamente atravessam um Estados Unidos pós-guerra em ruínas, repletos de naves de guerra e drones destruídos ou encalhados. Nesta história alternativa, as máquinas entraram em um caminho rápido para a senciência durante o século 20 e travaram uma guerra contra a humanidade, que mal venceu. Na década de 1990, o hipercapitalismo e a realidade virtual destruíram os laços comunitários e sociais - as pessoas são tão viciadas em V.R., que passaram a dominar a vida de todos por meio de neurocasters semelhantes a capacetes, que podem entrar em estados vegetativos, alheios ao mundo ao seu redor.
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É um mundo alternativo. Mas com evidentes referências à atualidade. O gênio perverso de uma Big Tech por trás de uma rede em RV que abduziu os seres humanos do mundo real, para viverem de forma ubíqua no paraíso do céu digital. Qualquer semelhança com as redes sociais e a forma como elas nos abduzem da vida real sob a batuta de gênios como Zuckerberg ou Elon Musk NÃO é mera coincidência.
Como veremos, esse é exatamente o problema em The Electric State e de todos os filmes que se inspiraram em O Parasita: até partem de uma constatação (a violenta desigualdade e concentração de riqueza), mas transformam a luta de classes num conflito maniqueísta – um gênio tecnológico vilão que pretende simplesmente dominar o mundo.
O maniqueísmo entre mundo analógico versus digital é o desfecho em The Electric State: a RV digital como o MAL... e os simpáticos robôs analógicos que se rebelaram como os BONS.
Mas a lutas de classes é apresentada de forma oblíqua em The Electric State: são máquinas, e não seres humanos, que se rebelam contra a exploração humana. Resultando num levante robótico.
Marx tinha razão: o pensamento fetichista é a ideologia que oculta as explorações reais no mundo do trabalho.
O Filme
Adaptado do romance ilustrado de mesmo nome de Simon Stålenhag (às vezes chamado de romance gráfico, mas sua forma real é de parágrafos discretos com ilustrações em grande escala em cada página ou mais, enquanto um romance gráfico adequado terá balões de diálogo e tal), conta a história do universo alternativo da década de 1990, incluindo uma guerra com robôs, evento que define a história propriamente dita do filme.
A humanidade entrou em guerra com uma raça de robôs. Mas eles não são apenas robôs antigos: inicialmente introduzidos por Walt Disney na década de 1950, esses robôs trabalharam por décadas como servos específicos de tarefas - entregavam nossa correspondência, cozinhavam nossa comida, construíam nossas casas - mas depois se tornaram críticos e passaram a exigir seus direitos e a própria liberdade. Isso levou a protestos, revoltas, acordos de paz e, em seguida, a uma guerra total apocalíptica.
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A introdução do filme nos dá clipes divertidos mostrando Bill Clinton assinando um tratado com um gigante mecânico chamado Sr. Peanut, o líder da resistência robótica.
Os humanos derrotaram os robôs através de um exército mecanizado de drones controlado remotamente por pessoas usando capacetes de Realidade Virtual. Isso dava o poder da ubiquidade, decisivo na vitória da tecnologia digital contra os insurgentes mecânicos-analógicos.
Após a guerra, essa tecnologia, desenvolvida por um guru tecnológico pretensioso chamado Ethan Skate (Stanley Tucci), foi comercializada e vendida ao público como entretenimento. Mas a consequência real foi a dominação da própria humanidade: todos sedados e imersos em mundos imaginários através dos seus capacetes de RV.
Enquanto isso, os robôs sobreviventes foram enviados para uma colônia prisional gigante (“Zona de Exclusão”) em algum lugar nos desertos do sudoeste americano.
A história segue Michelle (Millie Bobby Brown), uma delinquente juvenil e criança adotiva que perdeu seus pais e seu amado irmão mais novo, Chris (Woody Norman), em um acidente de carro há alguns anos.
Uma noite, uma versão robô de Kid Cosmo, um desenho animado outrora popular que Chris amava, entra sorrateiramente em sua casa e insiste que é seu irmão, ou pelo menos sua consciência ubíqua, sendo controlado de um local indeterminado. Michelle e Cosmo partem em uma jornada para localizar o corpo físico de Chris. Para fazer isso, eles devem unir forças com John Keats (Chris Pratt), um ex-soldado que se tornou comerciante clandestino, que com seu confiável parceiro robô, Herman (dublado por Anthony Mackie), contrabandeia mercadorias para fora da Zona de Exclusão.
Como os robôs não têm permissão para interagir com humanos, eles são perseguidos a cada passo do caminho por soldados de drones, em particular o Coronel Bradbury (Giancarlo Esposito), um herói de guerra implacável e que odeia robôs.
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Marx exorcizado
O visual do filme é um acúmulo de sucatas, lixos e escombros vintage de velhos robôs mecânicos e analógicos (320 milhões de dólares parece ter sido o custo da parafernália do filme) que lembram o design dos velhos brinquedos de lata da infância desse humilde blogueiro. E a Zona de Exclusão um gigantesco parque temático em ruínas.
The Electric State em primeiro lugar trata de forma oblíqua o tema da desigualdade e luta de classes: máquinas são exploradas, ao invés de humanos. As máquinas se rebelam, transformando a luta de classes numa guerra.
Mas o que incomoda mesmo no filme é a maneira maniqueísta como é focada a tecnologia analógica. A rede de realidade virtual criada pelo gênio tecnológico Skate é um subproduto da guerra robótica. Agora, é usada para sedar e controlar humanos, constituindo-se numa forma de engenharia social.
A associação com a Internet e as redes sociais é evidente (também a Internet foi um subproduto da Guerra Fria – a Arpanet.
A questão é que enquanto a rede do filme (constituída por gigantescas torres que transmitem o sinal) é fruto do gênio maligno de uma Big Tech, na vida real a interface amigável multimídia da Internet, a W.W.W. (World Wide Web), nos anos 1990, tinha um propósito não comercial – ser uma biblioteca aberta universal com liberdade total de acesso ao conhecimento para todos os usuários.
Cujo destino no século XX negou o projeto utópico inicial ao transformar o próprio usuário, seus hábitos e escolhas, em produtos monetizáveis. Como diz o provérbio, se é de graça na Internet, você é o produto. A cristalização dessa regressão foram as redes sociais, nas quais somos aprisionados pelos algoritmos (economia de atenção) para que continuemos a monetizar conteúdos.
Lembrando a velha contradição do Capitalismo apontado por Karl Marx: a contradição entre desenvolvimento das forças produtivas limitado pelas relações sociais de produção. A luta de classes é o limite do desenvolvimento tecnológico – jamais o projeto inicial da W.W.W. daria certo num modelo produtivo marcado pela reprodução da desigualdade e exploração.
Todo o sentido da W.W.W. foi para um outro lado: a transformação do usuário em produto.
E, ao contrário de The Eletric State, não foi obra de um tipo de Elon Musk distópico, como figura o filme, mas de um modo de produção no qual está envolvido a tecnologia: o Capitalismo nas suas sucessivas estratégias de acomodação e resolução de conflitos.
Ficha Técnica |
Título: The Electric State |
Diretor: Anthony Russo e Joe Russo |
Roteiro: Christopher Markus, Stephen McFeely |
Elenco: Chris Pratt, Millie Brobby Brown, Stanley Tucci |
Produção: AGBO |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2025 |
País: EUA |