segunda-feira, janeiro 02, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Ter uma segunda chance para voltar no tempo e redimir-se das decisões
erradas na vida. Uma velha estória sempre contada pelos filmes hollywoodianos
sob um viés moralista. Mas no filme argentino “Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo”
(2011) o tema vai mais além ao acrescentar o elemento do Fantástico: um homem
medíocre e fracassado faz um pacto faustiano com o demônio na tentativa de,
através do conhecimento do futuro, manipular o Tempo, o Destino e enganar o
próprio demônio. Através de uma narrativa irônica e de humor cáustico, cria-se
um clima ambíguo onde é impossível julgar o anti-herói. Indicado pelo nosso leitor Fabio Hofnik, o blog conferiu o filme.
Certa vez ouvi de alguém:
“Passamos metade da vida tentando corrigir os erros que cometemos na outra
metade.” É possível termos uma segunda chance depois de tomarmos consciência
das decisões erradas do passado? E se tivermos essa chance, teremos a sabedoria
e o livre-arbítrio para não cair nos mesmos erros?
Uma estória contada
seguidas vezes pelo mainstream
hollywoodiano, sempre pelo otimista viés moralista e religioso que nunca coloca
em questão um aspecto: o homem realmente quer mudar? Ou será que a mediocridade
e o obscurantismo a qual a vida nos reserva pode impedir essa mudança?
A dupla de diretores argentinos
Mariano Cohn e Gastón Duprat vai mais além ao tratar um tema tão recorrente acrescentando
o elemento do Fantástico: a presença do Mal através da figura de uma espécie de
demônio e a vitimização humana diante de uma realidade que o condena à
mediocridade. De um lado um antigo mercador (Eusebio Poncela) que, no século
III no Marrocos, é atingido duas vezes seguida por um raio tornando-se um ser
imortal que vaga pelo mundo propondo tratos e fazendo trapaças temporais. Do
outro, Ernesto (Emilio Disi), um sessentão que passa os dias queixando-se das
oportunidades que teve e fracassou, casado com uma mulher que a todo momento
joga na cara o seu fracasso.
Desencantado, vê os dias
monótonos e arrastados passarem em uma provinciana cidade no interior da
Argentina (Olavarría) até que encontra mercador/demônio em um bar. Enquanto a
esposa de Ernesto vai ao banheiro, o mercador questiona se ele é feliz e faz um
estranho acordo: um milhão de dólares em troca de Ernesto retornar no tempo e
reviver dez anos da sua vida. Enquanto isso teriam se passado apenas cinco
minutos no tempo presente, tempo necessário para Ernesto sair e comprar um
cigarro, álibi usado para se ausentar enquanto sua esposa o aguarda.
Em uma narrativa
hollywoodiana seria a oportunidade do protagonista se redimir, mas Cohn e
Duprat mostrarão um anti-herói que tentará de tudo para tirar vantagem, mentir
e fugir para ganhar dinheiro fácil.
Tendo conhecimento do
futuro, Ernesto tentará ganhar dinheiro em tentativas desajeitas como, por
exemplo, implantar um reality show na emissora de TV de Olavarría quando ainda
o gênero não era uma febre mundial. As tentativas mais hilárias são quando
tenta alertar a mídia argentina dos atentados ao WTC em 11 de setembro de 2001.
Ninguém o leva sério até que, depois dos atentados, a CIA bate à porta
levando-o preso para os cárceres de Guantânamo onde é submetido a torturas: por
que ele sabia dos atentados?
Sabendo do futuro sucesso da música “Imagine”, tem a
infeliz ideia de lançá-la no mercado fonográfico argentino antes de John
Lennon. Resultado: sofre um pesado processo por plágio do ex-beatle. Ernesto tenta
fugir do acordo com o mercador se matando, mas, como sempre, nada dá certo.
Irritado, o mercador decide que, dessa vez, ele escolherá para qual período
Ernesto voltará no tempo, submetendo-o, a partir daí, a uma situação de
mal-estar que justificará todas as oportunidades perdidas no futuro.
Baseado no conto de Alberto Laiseca, o próprio autor narra
em off e comenta para a câmera de forma irônica e, muitas vezes, brutal, as
desventuras do protagonista.
A crítica especializada descreve o filme como um “sombrio retrato
dos argentinos”. Mas o olhar
de Cohn e Duprat é
muito mais atemporal: tangencia temas metafísicos como a irreversibilidade do tempo
versus livre-arbítrio e a descrição da condição humana a partir de dois mitos:
o de Sísifo e o de Fausto. O que faz o filme adquirir um humor ácido e cínico,
desesperançado e niilista.
Do Mito de Sísifo a Fausto
Assim como no
mito grego de Sísifo (onde o mestre da malícia e dos truques, o maior ofensor
dos deuses, é condenado ao absurdo trabalho de por toda eternidade empurrar uma
pedra até o topo de uma montanha para, então, rolar abaixo e recomeçar do
princípio), Ernesto tenta enganar o diabo/mercador para ganhar dinheiro fácil,
mas acaba condenado a repetir os mesmos erros e fracassos da sua vida.
Da mesma
forma que Sísifo torna-se o herói do absurdo como uma forma dos deuses
mostrarem para os homens que eles não têm liberdade, o teste proposto pelo
mercador/demônio é uma forma de fazer Ernesto lembrar que ele jamais será
livre: ele se confronta com a CIA, advogados, Indústria Fonográfica, Mídia e a
irreversibilidade do Tempo. O protagonista é obrigado a se curvar diante dos
grandes Demiurgos que governam a existência, metafísicos ou terrestres, que o
reduzem à mediocridade: a má consciência da vitimização ou de pena de si mesmo
que o reduz a uma vida cinzenta.
O filme “Querida, Voy
a Comprar Cigarrillos y Vuelvo” é magistral ao apresentar uma narrativa ambígua
onde o humor cáustico não deixa a estória cair no moralismo punitivo (no final
Ernesto estaria pagando pela sua mesquinheza e imoralidade) e nem no chamado “humano,
demasiado humano” e toda a lamúria de fundo religioso de que a natureza humana
é baixa e pérfida.
Ao
contextualizar o drama de Ernesto, inclusive, com o cenário político argentino
da ditadura militar dos anos 70, abre a interpretação para encontrarmos o Mal
não no anti-herói ou na “natureza humana”, mas nos contextos medíocres nos
quais o homem está preso e tenta libertar-se (como, por exemplo, na cidade de
Olavarría onde “nada acontece”).
Esse
arquétipo da condição humana em querer libertar-se da ignorância é o mito de
Fausto. Considerado um símbolo cultural da modernidade (personagem recorrente
na literatura desde o século XVI), Dr. Fausto faz um pacto com Mefistófeles que
em troca da sua alma conquistará conhecimentos técnicos e científicos que
superarão a sua época. Mas tudo o que ele encontra é o Mal: a luz do
conhecimento volta-se contra Dr. Fausto onde nem o amor o salvará.
Da mesma
forma, ao fazer o pacto com o demônio/mercador marroquino, Ernesto acredita que
o conhecimento do futuro o libertará e que poderá manipular ao seu bel prazer o
Destino e o Tempo. Porém, o Mal é o
princípio estruturante da realidade. Numa reversibilidade irônica, tudo se
volta contra ele.
Uma experiência narrativa
O filme tem uma brilhante sacada
narrativa: o filme é oralmente e visualmente narrado pelo próprio autor do
conto (Alberto Laiseca) que deu origem ao roteiro de Cohn e Duprat. Sempre
pontuando a narrativa, a estória é seguidamente cortada por enquadramentos de
Laiseca, tendo ao fundo uma enorme estante repleta de livros, onde ele faz
ácidos comentários sobre o pobre coitado Ernesto.
Em meio à narrativa ficcional, temos um
subtexto documental com observações do próprio autor, criando um nível “meta”
no filme. Mais do que um recurso estilístico, esse artifício obriga o
espectador a se distanciar da narrativa, evitando-se, dessa forma, uma
identificação piegas ou passional com as desventuras do protagonista. Cohn e
Duprat parecem querer que o espectador tenha uma avaliação objetiva, fria e
distanciada. É o efeito psicológico do recurso da ironia metalinguística na
narrativa cinematográfica. Afinal, o filme narra uma estória pelo ponto de
vista de quem: do onipresente e onisciente autor do conto (só ele sabe o final)
ou do próprio Ernesto, com a sua visão parcial e hesitante de alguém que não
sabe como tudo terminará?
É esse embaralhamento narrativo que evita que
“Querida,
Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo”caia no moralismo hollywoodiano que
sempre encontramos em filmes sobre temas como viajem no tempo, segunda chance e
redenção.
Ficha Técnica
Título: Querida, Voy a Comprar Cigarrillos y Vuelvo
Diretor: Mariano Cohn e Gastón Duprat
Roteiro: Mariano Cohn e Gastón Duprat baseado em conto original de Alberto Laiseca
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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