Nesse momento de guinada geopolítica 180 graus, com Donald Trump escorraçando Zelensky, ao vivo pela TV, no Salão Oval; enquanto manda a Europa se virar e se aproxima de Putin em conversas reservadas mediadas por lideranças árabes, é curioso assistir à minissérie Netflix Dia Zero (Zero Day, 2025).
Isso porque é uma produção anterior à vitória eleitoral de Trump. Parece que os produtores apostavam na vitória dos Democratas e vislumbravam um horizonte político imutável. Por isso, é uma produção deixada totalmente por conta dos famosos algoritmos da plataforma de streaming (machine learning que “aprende” com as escolhas e comportamento do usuário, customizando sua “experiência” e, na prática, precarizando o trabalho dos roteiristas).
Tudo parece superdimensionado – para começar com o elenco, encabeçado por Robert de Niro em sua primeira aparição em audiovisual, TV.
Dia Zero é sobre um ex-presidente dos Estados Unidos (George Mullen – De Niro) de mandato único (cuja carreira política foi moldada pela morte de seu filho e agora pode estar enfrentando demência – qualquer semelhança com Biden NÃO é mera coincidência) que é chamado para salvar o mundo de um pesadelo que parece ter surgido do setor de tecnologia.
É como se alguém tivesse colocado notícias dos últimos cinco anos no ChatGPT, misturando-as com as três temporadas mais ridículas de Homeland (2011) ou a produção Netflix Night Agent (2023) e pedisse para escrever um programa.
Um elenco estelar (Robert De Niro, Jesse Plemons, forte como o conselheiro mais próximo de Mullen, Roger Carlson; Joan Allen desperdiçada como a esposa de George, Bill Camp, Dan Stevens etc.) parece que foi escalado para azeitar um roteiro algoritmicamente artificial e inverossímil.
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Tamanha precarização somente quer dizer o quanto a plataforma estava confiante com um futuro comandado pelos Novos Democratas – Dia Zero seria uma série celebratória que explora um clássico nos estudos de Ciência Política: como governos ou movimentos políticos recorrentemente fabricam inimigos externos imaginários para tentar unificar ou elevar o moral do populacho.
Uma nova vitória democrática (Kamala Harris) fraturaria ainda mais a política nacional, sendo necessário turbinar algum inimigo externo – no caso, os disponíveis no momento, os russos.
Por isso, a série Dia Zero parece que foi politicamente concebida para uma futura operação psicológica de hipernormalização de um hipotético governo Kamala – sob a aura da, por assim dizer, “verossimilhança ficcional”, legitimar a ambição geopolítica da OTAN na guerra da Ucrânia e continuar o movimento de demonização dos russos.
Mas em Dia Zero nada é assim tão óbvio: um cyber ataque em larga escala contra os EUA? Mas quem fez isso? A resposta inicial é tão clichê que nem o espectador leva a sério, principalmente porque é “descoberta” logo no início: os hackers russos, que já interferiram nas eleições passadas, são os vilões.
Mas, no fundo, tudo é uma conspiração para tentar resgatar uma América que se perdeu na fratura política das redes sociais – alimentada por algoritmos e perfis falsos que despejam desinformação, fake news e pós-verdades.
Imagine se Kamala Harris, vitoriosa eleitoralmente, mas sem legitimidade política diante de uma opinião pública fraturada e uma divisão legislativa no Capitólio, quisesse consertar as coisas, unificando a América em torno do inimigo externo favorito.
É disso que se trata Dia Zero.
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A Minissérie
De Niro interpreta George Mullen, um ex-presidente chamado de volta ao serviço para chefiar uma comissão que investiga os hackers por trás de uma interrupção nacional de energia que ceifou milhares de vidas. Um ataque massivo que durou apenas um minuto. Tempo suficiente para aviões caírem, os centros urbanos serem jogados no caos, com uma menagem ameaçadora em todos os celulares: “Isso irá ocorrer novamente!”.
Mullen é chamado de “a lenda” por ter sido o último presidente eleito com apoio e legitimidade, antes da extrema-direita criar a desinformação, pós-verdade e divisões.
Ele é jogado em um mundo desorientador onde os fatos são confusos, a desinformação reina, podcasters vomitam teorias conspiratórias e sua própria mente parece estar traindo-o – Mullen vive o decréscimo cognitivo da idade que esconde de todos. Levantando uma questão crucial: suas intenções são confiáveis, mas podemos confiar na sua mente que anda lhe pregando peças. Entre elas rever gente morta m coletivas de imprensa e chamar por empregados que há meses demitiu...
O que ele descobre? É muito pior do que ele poderia imaginar — porque as pessoas por trás desse ataque monumental estão mais próximas dele do que ele pensava. Os culpados não são os russos, mas figuras-chave do próprio governo dos EUA, incluindo o presidente da Câmara Richard Dreyer (Matthew Modine), a própria filha de Mullen, Alex (Lizzy Caplan), e alguns bilionários seriamente influentes.
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Diante dessa traição pessoal, profissional e patriótico, aqui está o dilema: Mullen assume o modo "proteger a nação" e esconde a verdade, ou ele arranca o curativo e expõe tudo - mesmo que isso signifique perder sua filha no processo? Com o peso do mundo em seus ombros, Mullen deve abandonar o roteiro, rejeitar a versão higienizada dos eventos e lançar a bomba da verdade na TV ao vivo? E aguentar o caos que se seguiria no Capitólio após a revelação de tudo?
Ou tudo não passaria de alucinações de um velho ex-presidente progressivamente senil?
A mitologia do “Mister Presidente”
Não passa despercebido para esse humilde blogueiro, como a mitologia do “Mister Presidente” é diligentemente cultivada pelo cinema e audiovisual norte-americano – a crença de que a posição do presidente detém de fato Poder.
Uma visão, por assim dizer, “espacial” do Poder: quanto mais próximo estiver do Salão Oval, mais poderoso você é. Todos sabemos que os EUA se ressentem de não terem a tradição da realeza assim como os seus colonizadores, os ingleses. Por isso, cercaram a família presidencial de uma liturgia que se assemelha a de uma família real. O sangue azul seria transferido pelo voto.
A série mostra que a última decisão é sempre a do “Mister Presidente”, fechado em seus botões na Casa Branca ou na sua mansão campestre, meditando diante da lareira.
O mito de que todo o Poder emana do “Mister Presidente” e do Salão Oval esconde que o Poder se tornou global e capilarizado, onde gigantescas corporações transnacionais possuem interesses complexos demais para deixar o futuro ser decidido nas mãos de um único homem.
Uma mitologia para ocultar das massas que esses interesses na verdade são articulados por um “Estado Profundo” através da repetição como farsa do “O Estado sou eu", teria dito certa vez o rei da França Luís XIV. Em outras palavras, o Estado e o Poder não estão submetidos ao escrutínio do voto. Apenas o chefe de governo chamado presidente, submetido à linguagem da sociedade do espetáculo.
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Por isso, o paralelismo que Dia Zero faz entre George Mullen e Biden – aposentado, imerso na sua biblioteca com secretos documentos, na sua aposentadoria planeja escrever um livro com suas memórias; e a presidenta Evelyn Mitchell (Angela Bassett), mestiça como Kamala Harris capaz d criar uma Comissão de Investigação liderada por Mullen com poderes de exceção, acima de toda a República.
Mas isso não poderia descarrilhar numa ditadura? Claro que tudo dependerá do bom senso do Mister Presidente Robert De Niro... meio senil, mas confiável.
Um projeto abortado?
É duro ver um elenco tão superdimensionado (por exemplo, De Niro que esperou tanto tempo para fazer TV) desperdiçado numa minissérie.
Ou será que o projeto não era exatamente esse, mas uma série cujas temporadas hipernormalizariam um hipotético governo Kamala Harris? E a vitória de Trump naufragou o projeto, obrigando a Netflix lançá-lo como uma simples minissérie?
Esta é a sensação de acompanharmos cenas “chapadas”, visivelmente se ressentindo de outras cenas tiradas da edição final.
Ficha Técnica |
Título: Dia Zero |
Criadores: Eric Newman, Noah Oppenheim, Michael Schmidt |
Roteiro: Eric Newman, Noah Oppenheim, Michael Schmidt |
Elenco: Robert De Niro, Jesse Plemons, Lizzy Caplan |
Produção: Grand Eletric, Netflix |
Distribuição: Netflix |
Ano: 2025 |
País: EUA |