sábado, março 01, 2025

Depois da humilhação, jornalismo corporativo tenta juntar os pedaços de Zelensky


Já pairava um cheiro de armadilha no ar. Como assim? Convidar Zelensky para um encontro no Salão Oval com Trump, dias depois de chamar o ucraniano de “ditador” e ter uma conversa bilateral com Putin? Deu no que deu, uma pequena amostragem do “caos com método” abateu um Zelensky monocórdico que acreditava que tudo seria normal – mas foi humilhado e enxotado pelas conhecidas armadilhas semióticas alt-right: comunicação indireta, técnicas de dissociação, desautorização do interlocutor e roll over. Depois, restou à grande mídia brasileira salvar a própria credibilidade: como ajudaram um obscuro ator-comediante de uma série Netflix ucraniana a inventar a imagem de um destemido herói patriótico a ousado líder geopolítico global? Se há um aspecto positivo na Era Trump, é esse: agora o Império emergiu sem filtros.

Em 1939, o presidente Franklin Roosevelt supostamente afirmou que o ditador nicaraguense Anastasio Somoza "pode até ser um filho da puta, mas é nosso filho da puta". 

Esses “filhos da puta” geopolíticos nada mais são do que traidores da própria nação. Os EUA sabem disso: são contra ditaduras e autarquias ao redor do mundo. Mas, se ficam ao seu lado, esquecem esse pequeno defeito moral. Por isso os EUA apoiam, mas com os dedos prendendo o nariz – um misto de pragmatismo e desprezo.

Por isso os EUA acreditam na expressão latina "Roma traditoribus non praemiat", isto é, “Roma não premia os traidores”. Sadam Hussein no Iraque, os talibãs no Afeganistão ou Muammar Gaddafi na Líbia descobriram tragicamente isso: quando não foram mais necessários com o fim da Guerra Fria, foram atacados e assassinados pelos guardiões da Liberdade e da Democracia.

O próximo a ser punido depois que se transformou em algo inútil foi o dublê de ator comediante e presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, cuja defenestração foi ao vivo, diretamente do Salão Oval da Casa Branca. Inédito e histórico.

Algo já pairava no ar. Só o jornalismo corporativo não percebia isso, absorto que está em promover Zelensky ao status de líder global – convidar o líder ucraniano para uma reunião no Salão Oval?  Com presença de câmeras e microfones ao vivo? Isso porque o script é sempre o inverso: primeiro uma reunião bilateral a portas fechadas. Para depois, a assinatura do acordo seguido de coletiva com a imprensa, com os discursos protocolares de sempre.

Dias antes, Trump já havia chamado Zelensky de ditador e conversado sobre acordo de paz com Putin, em petit comité, dispensando ucraniano – “deixem os adultos conversarem”, era a mensagem cifrada.


Presidente Roosevelt: "precisamos dos nossos filhos da puta"


Uma armadilha?

Portanto, o convite de Trump, parecia muito mais uma armadilha. Zelensky começou confiante com o discurso das “garantias” para haver cessar-fogo. Até o linchamento começar com o vice J.D. Vance e a humilhante passada de sabão na boca do presidente ucraniano por um        Trump cada vez mais irritadiço, lembrando o seu personagem no reality show O Aprendiz.

“Você tem problemas na linha de frente... manda recrutas... mata seu povo... você não tem cartas para jogar”, foi o cala-boca de Trump, a conhecida exortação “aceita que dói menos” – isto é, perder 20% do território para a Rússia, perder seus minerais raros a título de pagamento da dívida de guerra com os EUA e, se tiver sorte, continuar como um presidente humilhado.

Como era se esperar, os líderes europeus saíram em defesa de Zelensky... nas redes sociais – aquele espaço virtual que aceita qualquer coisa...

Salvando a “criatura”

O que entusiasmou a mídia brasileira a tentar salvar a criatura Zelensky, para ficar ao lado das postagens de Macron, Von der Leyen, Scholz etc. 

Para âncoras e colonistas tudo seria apenas mais uma “trumpice” estúpida poque Trump não manja de História. E ela nos ensinaria que o apoio automático a Zelensky seria a melhor medida:

A) O apoio dos EUA à Ucrânia deveria ser uma obrigação, porque o país foi obrigado a participar do Acordo de Budapeste Em 1994, a Ucrânia se comprometeu a aderir ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e a devolver ogivas soviéticas para a Rússia. Em troca, os governos da Rússia, dos EUA e do Reino Unido se comprometeram a respeitar a independência e soberania da Ucrânia.



B) Repetem mantra ameaçador de que a possível derrota da Ucrânia seria a queda da última resistência da Europa contra as ambições malignas de Putin marchar sobre o continente. Forçando a barra, lembram do Acordo de Munique assinado em 1938 entre Alemanha, Itália, França e Grã-Bretanha. O acordo foi uma tentativa de evitar uma nova guerra na Europa, mas acabou sendo um fracasso. 

Ou seja, Putin é Hitler e só o comediante-presidente poderá nos salvar!

Comunicação alt-right

O que impressiona em tudo isso é a estratégia alt-right de comunicação: a recorrente capacidade de criar acontecimentos comunicacionais a partir da desconstrução daquilo que era esperado – a “magia do caos”.

Ao invés dos costumeiros discursos protocolares, uma constrangedora lavagem de roupa suja e bate-boca com direito a Trump empurrando o ombro de Zelensky com dedo em riste para o seu rosto.

A estratégia de desconstrução não é nova. Foi utilizada por Donald Trump no primeiro debate com Biden, em 2020.

Também o “bullying” no comediante-presidente teve as mesmas características:


(a) Comunicação Indireta

Técnica em que o emissor não quer falar nem com o espectador e muito menos com o interlocutor. Seu alvo é a “maioria silenciosa”, os não-convertidos: aqueles que não compõem o “núcleo duro” de nenhum dos lados.

Por isso eles estão em contínua campanha eleitoral. Trump sabe que Zelensky é uma criatura da guerra híbrida do Maidan de 2014 arquitetada pelo Departamento de Estado por Biden. Por isso, na passagem de sabão em Zelensky, as constantes alusões a Biden e “presidente estúpido”.

A comunicação at-right sabe que jornalistas escrevem o que querem. Mas a extrema-direita sabe que a maioria silenciosa entenderá o que ela quiser.




(b) Técnica de Dissociação

Conjunto de técnicas bem conhecida entre os vendedores para fazerem consumidores perderem o controle e o foco dentro do espaço de vendas das lojas, tornando-os mais vulneráveis: deixar o cliente aguardando de 10 a 15 minutos enquanto o vendedor “procura” o modelo pedido no estoque; troca de vendedor durante as negociações; criar jogos mentais durante um test drive, por exemplo, com uma pergunta do tipo “esse modelo de veículo não é o que sempre gostou de ter?”. Tudo para criar desconcentração e embaraço - leia HOWARD, Martin, We Know What You Want, New York: Desinformation, 2005.

A partir da intervenção do vice JD Vance, ele e Trump não permitem que Zelensky complete frases ou pensamentos. Várias vezes a dupla cria dissociação ao forçar uma metalinguagem – esquecer o discurso para pensar no contexto.

Por exemplo: “acho um desrespeito o sr. Falar isso em frente a mídia americana”. Ou: “O sr. Está sendo desrespeitoso no mítico Salão Oval”...

(c) Desautorização do interlocutor

Essa é a técnica clássica da direita-alternativa: o pressuposto de que não há debate porque o interlocutor não está autorizado... porque é “lixo!”. “Presidente idiota” ou “apostador” (aposta na Terceira Guerra Mudial) ou “blefador” (continuar apostando sem ter cartas). Trump e Vence não querem mais discutir os argumentos do interlocutor. Mas certificar sua inapetência.

(d) Roll Over

Vance e Trump entabulam um ritmo discursivo avassalador. Muitas vezes com três ou quatro questões numa única frase. No começo, Zelensky exclama “quantas questões, deixa começar por esta...”. E não deixam ele se organizar por meio da técnica de dissociação 

Nesse momento, Zelensky e a mídia brasileira (que certa vez até mandou o Luciano Huck para Kiev fazer uma entrevista “paga-pau”) tentam juntar os pedaços.

Zelensky nos EUA fazendo um tour por telejornais simpáticos aos democratas.

E no Brasil, o jornalismo corporativo tenta dar dimensões históricas às postagens em redes sociais de premiers europeus, postagens banais e protocolares. 

Tenta salvar sua própria credibilidade: baseado em quê foram ajudar um obscuro ator-comediante da série Netflix ucraniana O Servo do Povo (2015) a inventar a imagem de um destemido herói patriótico a acabado líder geopolítico global?



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