O mundo, particularmente a Europa, vive uma atmosfera de cancelamento do futuro: de um lado a urgência climática; do outro, a escalada da guerra da Ucrânia que resvala para um conflito nuclear. Sensação de cancelamento de futuro na Guerra Fria criou a estética do niilismo hiperativo da house music nos anos 1980. E o filme francês “MadS” (2024) inaugura o niilismo eufórico, o espírito do século XXI, através de um curioso mix entre os zumbis de George Romero e a hiperatividade eufórica de “Corra, Lola, Corra” (1998). Filmado em um único plano sequência e em tempo real, acompanha a noite de jovens numa festa de drogas, sexo e música, na qual o efeito lisérgico cria uma estranha desconexão na clássica mutação zumbi: tudo que acontece é apenas uma bad trip? Ou há algo pior - parece que o contágio oferece algum tipo de adrenalina. Do niilismo hiperativo do passado, agora temos zumbis niilistas eufóricos.
A ameaça nuclear da Guerra Fria chegou ao seu ápice na virada dos anos 1970-80 (com uma passagem anterior pela crise dos mísseis de Cuba em 1962), sob o impacto de um filme exibido na TV chamado Day After(1983), assistido por mais de 100 milhões de pessoas – mostrando dramaticamente o efeito de uma guerra nuclear de destruição mútua.
Paralelo ao fantasma da conflagração final em que o Kremlin ou Casa Branca apertariam o botão vermelho e tudo acabaria no holocausto nuclear e no inverno nuclear posterior em meio a ratos e baratas (supostamente os únicos que sobreviveriam), uma estética musical funcionou como trilha para esse contexto: o niilismo hiperativo.
A House Music e a sua subvertente, a Acid House (estilo de música eletrônica que teve seus elementos misturado com som pesado e grave acompanhado por caixas de ritmo e bases programadas), foi a trilha desse momento – uma música dançante e hiperativa, mas com letras melancólicas e niilistas. Como, por exemplo, “Perfect Kiss” ou “Thives Like Us” da banda New Order – “o amor que cresce tão lentamente, mas que morre rapidamente”, como cantava Bernard Summer, do New Order.
O niilismo hiperativo era o espírito do tempo de um mundo que se sentia à beira do abismo – devemos viver intensamente o presente como se não houvesse amanhã.
No século XXI parece que estamos revivendo esse espírito de cancelamento do futuro: de um lado a perspectiva da escalada rápida para a catástrofe climática; do outro, a Guerra Fria 2.0 entre EUA e Rússia, ainda mais com a recente escalada de mísseis entrando no conflito com a perspectiva de ogivas nucleares entrarem na estratégia militar.
Sensação no Fantastic Fest (tradicional festival de cinema do fantástico e terror de Austin, Texas) desse ano, o filme francês MadS (2024), de David Moreau, ao fazer uma combinação surreal entre o terror zumbi de George Romero com o ímpeto cinemático de Corra, Lola, Corra, figura um novo etilo de cancelamento do futuro: o niilismo eufórico.
Corra, Lola, Corra (1998), de Tom Tykwer, já era a expressão de fim de século: o auge da estética videoclipe MTV com o ritmo narrativo em trilha de música techno da raves, combinado com Teoria do Caos com personagens sendo arrastados pelo acaso.
Enquanto os zumbis de George Romero, desde o clássico A Noite dos Mortos Vivos (1968), são seres tristes e melancólicos, mas com a fúria selvagem contra a própria civilização que acidentalmente os produziu.
O elemento que faz o mix entre essas duas referências em MadS são as drogas recreativas, num filme feito em uma tomada, em plano contínuo e tempo real, sobre jovens de classe média em um rico subúrbio francês que vão promover uma festa de aniversário em uma noite. Os pais saíram para viajar e os filhos têm à sua disposição, por exemplo, um carro como um clássico Mustang conversível e casas luxuosas e espaçosas com grandes jardins e piscinas.
Tudo turbinado com cocaína e drogas sintéticas. Mas do frenezi rapidamente vamos para o pânico através do maior problema de saúde pública que países ricos, principalmente os EUA, estão vivenciando: uma onda de overdoses com legiões de viciados perambulando pelas ruas análogos a zumbis por meio de combinações de fentanil com sedativos.
MadS aglutina essa atmosfera atual numa noite alucinante de um jovem que experimenta uma misteriosa droga experimental com um efeito aparentemente lisérgico. Porém, há algo mais, transformando-se numa celebração eufórica do fim do mundo.
Dos zumbis melancólicos e atormentados de Romero, encontramos zumbis chapados e eufóricos num ritmo tão frenético quanto de Corra, Lola, Corra.
O Filme
MadS começa com um jovem chamado Romain (Milton Riche) na casa de seu drug dealer, testando um novo produto que ele vai levar para sua namorada e seus amigos para uma noite de festa do seu aniversário.
É verão, o pai foram viajar e deixou para eles amplas casas de subúrbio para se esbaldarem.
No caminho de volta para o subúrbio, a bordo do estiloso Mustang conversível do pai, ele deixa cair o cigarro no estofamento. Preocupado, para avaliar os danos no carro do papai, quando uma mulher enfaixada e mutilada pula no banco do passageiro. Ela se recusa a sair, mesmo que não consiga falar - ela toca uma gravação sinistra que faz parecer que ela foi cobaia de algum experimento em uma instalação próxima, da qual ela escapou.
Ele a leva para sua casa. É quando as coisas começam a dar muito errado quase imediatamente quando ela começa a se esfaquear, espirrando seu sangue em todo o nosso pobre motorista. Dizer que a noite dele está arruinada seria um eufemismo.
Nos seus quase 90 minutos, MadS é filmando numa tomada contínua em tempo real – é claro que nos filmes atuais os recursos digitais permitem a troca de planos sem que a percebamos, criando a sensação de plano-sequência. Porém, o tempo real em que sucede a narrativa cria a sensação forte de continuidade.
Depois de seu bizarro encontro veicular, Romain corre para casa para se limpar. A mansão ao seu redor é fria, moderna e cara. Enquanto o jovem em pânico cai no chuveiro, testemunhamos o choque desse encontro horrível o enxurre como a água. Você tem a sensação de que o privilégio da riqueza e do status em que ele foi criado significa que ele tem sido praticamente intocável até agora.
Logo, Romain é relutantemente apanhado pelos seus amigos e levado a uma festa em uma casa próxima onde a música já está batendo alta. Ele começa a se contorcer incontrolavelmente e parece ter uma incontrolável atração pelas luzes. São as drogas? Se sim, sua namorada ardente Anais (Laurie Pavy) e sua melhor amiga chique Julia (Lucille Guillaume) têm motivos para se preocupar além de uma rivalidade romântica por Romain.
À medida que a noite avança, a câmera se moverá de Romain para Anais e Julia. E a cada capítulo, Moreau afunda o espectador mais profundamente na tensão e na agonia -
Claro, soldados começam a se aproximar para conter algum tipo de contágio misterioso que está transformando os jovens festeiros em uma espécie de zumbi eufórico e hiperativo. As luzes parecem que dão mais energia para eles, assim como lasers e luzes estroboscópicas em uma rave. Querem apenas correr para enterrar animadamente seus dentes no primeiro incauto.
Mas o mais aterrorizante em MadS são as transformações que se desenrolam bem diante de nossos olhos.
Muitas vezes, em filmes de zumbis, a mudança de humano para monstro sem cérebro é rápida - talvez até um susto envolvendo uma maquiagem pálida, bolsas sob os olhos e uma postura inclinada antes de um ataque mortal.
Em MadS, essa transformação se desdobra de forma doentia e lenta. Começa com olhos dilatados, movimentos de contração e explosões emocionais. Mas são tão sutis que a vítima e até mesmo aqueles ao seu redor podem descartar esses efeitos como o impacto de uma bad trip por drogas. Essa ignorância só torna o que se segue pior, mais assustador.
Há uma desconexão chocante que se torna aparente. Mesmo quando Romain, e depois a contagiada Anais, agridem outras pessoas com um sorriso, ela grita em pânico: "Não sou eu! Não sou eu!". A lenta transformação em zumbi revela uma luta interna para tentar distinguir o que é alucinação eufórica pela droga do contágio zumbi.
Para esses zumbis niilistas eufóricos, parece que o contágio oferece algum tipo de adrenalina. A bad trip da droga apenas faz aumentar a desconexão entre a realidade (o contágio real) e a alucinação lisérgica, ampliada pelas luzes urbanas.
A cena final é poeticamente sombria, lembrando bastante a última cena do filme Clube da Luta em que os protagonistas olham de mãos dadas pela ampla janela de um apartamento os prédios serem implodidos, sugerindo o próprio fim da civilização: “você me conheceu numa fase muito estranha da minha vida”, diz o Narrador para Marla.
Esta cena final de MadS ganha um estranho significado diante das recentes notícias da escalada dos mísseis na guerra da Ucrânia, perigosamente resvalando para um conflito nuclear entre potencias.
Certamente, o diretor David Moreau conseguiu captar o espírito de época ansioso de um continente que vive entre a urgência climática e a potencial guerra mundial nas suas fronteiras.
Da Guerra Fria com o niilismo hiperativo dos anos 1980 à Guerra Fria 2.0 com os novos niilistas: os zumbis eufóricos.
Ficha Técnica |
Título: MadS |
Diretor: David Moreau |
Roteiro: David Moreau |
Elenco: Lucille Guillaume, Laurie Pavy, Milton Riche |
Produção: Digital District, Goodfellas |
Distribuição: Crystalsky Multimedia |
Ano: 2024 |
País: França |