Filmes
publicitários são mais do que peças promocionais de produtos e serviços –
refletem a sensibilidade de cada época. E o novo comercial do TNT Energy Drink
não deixa por menos: em efeito digital 3D um rinoceronte com fone nos ouvidos
passeia entre as pessoas nas calçadas para depois entrar numa academia de
lutas, parar diante de um espelho e vermos o reflexo de José Aldo, campeão do
UFC. A ironia é que se no Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco (autor da famosa peça
“O Rinoceronte”) a transformação de seres humanos naquele animal era um
impactante simbolismo que denunciava o conformismo, frieza e agressividade do
homem moderno, agora torna-se um modelo positivo de caráter: o esporte
(principalmente os midiáticos) como modelo de educação pela dureza, dor e
severidade, chave para o sucesso. Dessa rino-couraça psíquica resultante emerge um novo tipo-ideal urbano da atual onda de
neoconservadorismo: os Rinocerontes.
Durante
o século XX, todas as vanguardas artísticas, sejam elas no cinema, literatura,
teatro ou pintura, tentaram desafiar o princípio de realidade com simbolismos
obscuros, imagens impactantes e narrativas absurdas. Homens que se transformam
em baratas em Kafka, relógios que se derretem em telas de Dali, situações
teatrais absurdas como pessoas que esperam uma pessoa chamada Godot por horas e
que nunca chega na peça de Becket ou chocantes imagens surrealistas como a
navalha que vaza um olho em um filme de Buñuel.
Kafka,
Dali, Becket e Buñuel tentavam se insurgir contra o mal-estar e desespero do
homem contemporâneo na incipiente sociedade de massas que produz alienação,
conformismo e fascínio pelo irracionalismo e fanatismo coletivo. Por isso,
procuraram a anti-literatura, o anti-teatro, o anti-cinema, o anti-tudo!
O
chamado Teatro do Absurdo do romeno Eugène Ionesco é outro exemplo. Ao lado do nonsense de Becket, Ionesco escreveu
várias peças que mostravam o absurdo e surrealismo das situações cotidianas
mostrando a estranheza do mundo, a solidão e alienação humanas.
“O Rinoceronte”de Ionesco
O Rinoceronte de 1958 é uma
delas. Em uma corriqueira cena parisiense, do nada passa um rinoceronte
correndo. Enquanto as pessoas tentam levar uma vida normal, estranhamente
outros rinocerontes começam a aparecer. As discussões se tornam absurdas: seria
uma ilusão? De onde vem? Da África ou da Ásia? Uma mulher se diz perseguida por
um deles, para os bombeiros descobrirem depois que o rinoceronte é o marido metamorfoseado.
Aos poucos se dão conta que toda cidade sofre um surto de “rinoceronite” – uma
doença que transforma seres humanos no enorme animal selvagem.
Mas
todos começam a apreciar a moda de se tornar rinoceronte – querer permanecer
humano é que passa a ser estranho. O protagonista Bérenger é único que tenta
resistir e é desprezado até pela noiva: “Eu me defenderei contra todo mundo!
Sou o último homem, hei de sê-lo, até o fim! Não me rendo!” Ionesco tematiza a
submissão, conformismo e alienação do indivíduo. O efeito manada produzido pelo
fanatismo como forma de controle político.
Porém, diante da onipresença da indústria
publicitária e de entretenimento, esses simbolismos que pretendiam chocar e
abalar os pilares do conservadorismo moral e político parecem perder a sua
virulência para serem docilmente absorvida pela estética de filmes
publicitários.
Os
relógios moles do surrealista Salvador Dali inspiraram anúncios como o da água
Perrier ou de um carro da Nissan; o non
sense de Becket passa a ser um efeito humorístico em muitos filmes
publicitários; as imagens-choque simbólicas de Buñuel hoje são superadas pelo
gênero fílmico exploitation e as
metamorfoses a la Kafka estão presentes em peças publicitárias como oximoros e
prosopopeias que divertem e vendem.
Pois
nas últimas semanas acompanhamos nos intervalos publicitários da TV mais um
exemplo de como imagens e simbolismos das vanguardas artísticas tiveram seu
potencial crítico neutralizado para serem docilmente absorvidos.
O Rinoceronte do TNT
No
intervalo da luta de Anderson Silva que marcou a volta ao octógono após um ano
de recuperação de uma fratura, entrou no ar um filme publicitário do TNT Energy
Drink onde a grande atração era um
rinoceronte em efeitos de animação de computação em 3 D. Assinado pela
Young & Rubican, o comercial mostra um “simpático” rinoceronte que anda
pelas ruas da cidade, com um fone em seus ouvidos.
Ao
ritmo da música Knock Down, o animal
chega a ensaiar uns passinhos de dança. Ao entrar em uma academia, se detém
diante de um espelho. É possível ver no reflexo do espelho que o bicho na
verdade é o lutador brasileiro José Aldo que começa a se preparar para mais um
treino.
Assistindo
as cenas do rinoceronte caminhando na calçada entre mesinhas de bares e
restaurantes e transeuntes distraídos, é impossível não ter uma sensação
irônica de ver a mesma situação absurda da peça de Ionesco ou na sua adaptação
cinematográfica de 1974 (Rinocerontes,
com Gene Wilder e Karen Black), agora associado à promoção de um energético e de
um campeão do UFC.
A
ironia é de que aquilo que no passado foi um simbolismo crítico a partir das
características do animal (a couraça e ferocidade do rinoceronte como arma
retórica para denunciar a insensibilidade, frieza e isolamento do homem
moderno) agora converte-se em “simpatia, humor e brincadeira”, como nos informa
o release do comercial.
Filmes
publicitários são mais do que peças promocionais de produtos e serviços: assim
como o cinema, carregam de forma sub-reptícia ou inconsciente mentalidades,
costumes e o universo simbólico do período em que foi produzido. Isso porque os
comerciais buscam concretizar o ideal publicitário da unidade
produto/consumidor.
A construção da rino-couraça psíquica
Por isso, o que vemos é
mais do que uma antropomorfização de
um animal, mas uma rinomorfização do
ser humano: as características morfológicas de um rinoceronte seriam as armas
ideais para um lutador de MMA – couraça, resistência e insensibilidade.
A questão é que essa
popularização atual do MMA (Artes Marciais Mistas), cujo anúncio do drinque
energizante TNT é uma pequena amostra, reflete um processo mais amplo atual de
uma sociedade que vê nos esportes (principalmente os de sucesso midiático) um
tipo de processo educativo através da dureza, dor e severidade.
Nas biografias de lutadores como Anderson
Silva ou José Aldo são sempre evidenciadas narrativas de superação da pobreza:
poderiam ter se perdido nas drogas e violência das favelas, mas venceram no esporte.
Seus shows televisivos de
sacrifícios rituais em octógonos manchados de sangue pelos golpes disferidos servem
de modelos para uma sociedade onde a dor física é mais do que uma demonstração
de virilidade: é uma forma educativa para através dela todos serem aceitos na sociedade
pelo culto da insensibilidade à dor – seja à dor física ou moral pela derrota
numa sociedade de competição em todos os níveis, ou a dor de ter de suportar a
humilhação da arbitrariedade que gestores corporativos impõem a trainees,
estagiários ou mesmo no trote humilhante da universidade, porta de entrada do
mundo competitivo.
Educação
pela dor: proto-fascismo?
O filósofo Theodor Adorno, no texto Educação Após Auschwitz de 1967, discorre sobre aquilo que denomina
de “educação pela dureza”, em que as pessoas para terem mérito devem suportar o
insuportável. Adorno, por sua vez, compara esses atos ao sadomasoquismo. Tais
práticas levam a indiferença à dor, o que nos levaria a provocar a dor no outro
irrefletidamente. O que conduz a sua célebre fórmula de Adorno sobre o
psiquismo do fascismo: quem é duro
consigo mesmo, se acha no direito de sê-lo com os demais.
O absurdo de pessoas se transformando em rinocerontes e aderindo à
“rinocerontite” como efeito manada de adesão a mais uma moda, era um simbolismo
sugerido por Eugene Ionesco para fazer as pessoas pensarem sobre a condição
humana moderna. Certamente, se vivo estivesse, Ionesco ficaria perplexo com
essa nova irônica metamorfose: a rinomorfização torna-se “engraçada e
divertida” porque perdeu seu caráter absurdo numa sociedade que glorifica a
couraça de insensibilidade na forma de um rinoceronte como condição necessária
para suportar a dor e levar o indivíduo à vitória, seja no esporte, nos
negócios ou no trabalho.
Portanto, na galeria atual de novos tipos urbanos
neoconservadores, ao lado dos “coxinhas”, “coxinhas 2.0”, “simples descolados”
e “novos tradicionalistas”, (sobre esses tipo-ideias, veja links abaixo) encontramos mais um novo tipo: os rinocerontes, aqueles que acreditam que
a insensibilidade à dor é o modelo de vida bem sucedida. São aqueles que ficam
em bares e pubs descolados assistindo aos massacres de UFC em telões para, mais
tarde, vestirem rino-couraças psíquicas para enfrentarem mais um dia de
trabalho.
Da dureza dos seus psiquismos emana o impulso pela adesão imediata
à soluções radicais e maniqueísmo político e a intolerância a tudo que haja a
suspeita de conter “fraquezas”: sensibilidade, diversidade, sensualidade,
individualidade, tolerância, crítica ou intelectualidade.
Cuidado! Os Rinocerontes já estão entre nós.
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