O filme brasileiro “As Boas Maneiras”
(2017), da dupla de diretores e roteiristas Juliana Rojas e Marco Dutra, parece
dialogar com o clássico expressionismo alemão Gabinete do Dr. Caligari (1919) e
o brasileiro “Que Horas Ela Volta?” (2015). Como o filme alemão, combina a
crítica social com o realismo fantástico. Mas “As Boas Maneiras” torna “Que
Horas Ela Volta” em um filme datado: o drama de uma empregada doméstica que
acompanha a estranha gravidez da sua patroa rica (que em noites de Lua cheia se
torna sonâmbula), reflete o imobilismo de uma sociedade ainda fundada na antiga
ordem escravocrata. Diferente do momento otimista do filme de 2015 (o clima de
progresso econômico e mobilidade social), tal como um sismógrafo, “As Boas
Maneiras” reflete o imobilismo e desencanto de uma sociedade dividida: o Mal
que surge das entranhas da elite do bairro do Brooklin para invandir a periferia
pobre do Capão Redondo – um lobisomem brasileiro em São Paulo.
Marco do expressionismo alemão, o filme O Gabinete do Dr. Caligari (1919) foi
premonitório ao tratar dos temas do mal e da hipnose – foi como se os maus
augúrios dos acontecimentos entre-guerras tivessem sido soprados nos ouvidos do
diretor Robert Wiene: avisos da futura tirania e da influência das massas
através do hipnotismo que culminariam no nazismo e no Holocausto.
Filmes como esse de Wiene comprovam que em determinadas
circunstâncias o cinema se torna uma espécie de sismógrafo do inconsciente
coletivo – um filme pode conter metáforas, alegorias ou temas que figurem
tendências futuras em germe.
Principalmente nos gêneros do horror e do fantástico:
livres das necessidades da representação realista e da verossimilhança, podem
explorar mais facilmente o imaginário de uma sociedade em, por assim dizer,
tempo real.
A coprodução Brasil-França As Boas Maneiras (2017), da dupla de diretores e roteiristas
brasileiros Juliana Rojas e Marco Dutra pode ser considerado o “Dr. Caligari”
do atual momento do da psicologia coletiva brasileira. Combinando uma afiada
crítica social com elementos do cinema de gênero do horror e fantástico
consegue injetar sangue novo na tradicional estória de lobisomens.
Partindo de uma realidade bem brasileira (as relações
invisíveis de segregação por trás da realidade das empregadas domésticas) As Boas Maneiras mostra não apenas a
permanência das relações escravistas entre a Casa Grande e a Senzala na
sociedade urbana brasileira – insere nessa realidade a velha mitologia do
lobisomem combinada com religiosidade.
Em 2011 na estreia em longas com a produção Trabalhar Cansa, a dupla já havia
visitado um outro aspecto da realidade brasileira: a precarização da vida da
classe média que, para sobreviver psiquicamente, se agarra simultaneamente aos
valores meritocráticos e na irracionalidade da autoajuda, misticismo e
astrologia. E como o sobrenatural vai entrando no cotidiano de uma classe
social alienada.
Quando assistimos As
Boas Maneiras é inevitável a comparação com outro filme brasileiro recente
sobre o cotidiano da segregação das empregadas domésticas: o filme Que Horas Ela Volta? (2015) de Anna
Muylaert. São dois gêneros diferentes (de um lado o drama social e do outro o
realismo fantástico) e dois momentos da realidade brasileira distintos – em
2015, a estória otimista da filha de uma empregada doméstica determinada a passar
na Fuvest e romper com os limites de uma cultura de segregação social; e em
2017, o contrário: o pessimista quadro da permanência da ordem escravocrata na
moderna sociedade urbana brasileira.
Mas é exatamente essa diferença que revela como esses
dois filmes são reflexos de distintos momentos da realidade brasileira recente:
Em Que Horas Ela Volta?, a fé na
revolução brasileira com uma crítica social forte e contundente; e em As Boas
Maneiras, um quadro pessimista de imobilidade e derrota – não só desigualdade e
segregação permaneceram intactas: também o mal estar coletivo cresceu e o Mal surge
das entranhas do ressentimento. Um lobisomem à solta entre o bairro de elite do
Brooklin, em São Paulo, e o bairro pobre e periférico Capão Redondo – a melhor
metáfora para a crise social brasileira.
O Filme
As Boas Maneiras é construído em uma
narrativa baseada em polaridades. A primeira é de classe social. Ana (Marjorie
Estiano) é uma filha de pais abastados do interior que está à espera de um filho,
fruto de uma transa casual. Com as relações familiares estremecidas, Ana saiu
de casa e mora sozinha em um apartamento duplex no bairro nobre do Brooklin,
próximo à ponte estaiada, em São Paulo – a famosa ponte estaiada, cartão postal
da cidade, é um elemento simbólico para nossa análise.
O filme inicia com Ana à procura de uma empregada
doméstica que também faça as vezes de babá quando o filho nascer. Clara (Isabél
Zuaa) é a última candidata entrevistada por Ana: desempregada e com um
providencial curso de enfermagem, mora no bairro periférico do Capão Redondo,
às voltas com o aluguel atrasado de uma pequena edícula da casa de Dona Amélia
(Cida Moreira), uma devota católica.
Ana é rica, branca. Enquanto Clara é pobre e negra. Ana é
expansiva, com traços de personalidade de uma vida de menina mimada de uma rica
fazenda. E Clara, calada e com um olhar desconfiado de alguém que sofreu muito
na vida.
Aos poucos a gravidez de Ana
começa a apresentar anomalias: em noites de lua cheia, vira sonâmbula. E às vezes
em seus distúrbios noturnos torna-se agressiva, chegando até a arranhar Clara.
Também aos poucos a óbvia tensão
de classes vai se diluindo com o envolvimento sentimental iniciado pela patroa
e pela correspondência de Clara. O laço afetivo e sexual cresce, ao mesmo tempo
que aumentam as preocupações: há algo de estranho naquela gravidez – o feto
cresce acima da média e os movimentos na barriga de Ana são intensos e inquietantes.
Principalmente na Lua cheia.
“Bonito olho de bicho!”
Essa é a porção social da
primeira parte da narrativa que prepara para a segunda metade que introduzirá o
espectador nas convenções do cinema do horror e do fantástico. Uma fala de Ana,
reveladora da sua antiga vida na fazenda da família no interior, é o prenúncio
do que virá: “eu acho bonito olho de bicho”, diz ao olhar a foto dela posando
ao lado de um cavalo.
O nascimento de Joel (Miguel
Lobo) põe fim à relação entre as duas de forma perturbadora. Cena na qual
percebemos o lado francês da produção: duas empresas francesas de efeitos
visuais – uma que fez o bebê e a barriga, e a outra responsável pelos efeitos
em CGI.
O bebê lobo banhado em sangue,
liberto do corpo de Ana em um plano em que se encontra envolto com o cordão
umbilical no pescoço com a lua ao fundo na janela é o mergulho do filme no
gênero horror e a irrupção do sobrenatural na vida de Clara.
Que arrastará até o fim do filme:
ser a nova mãe de Joel, tentar fazê-lo levar uma vida normal e esconder da
sociedade o terrível segredo: nas luas cheias, Clara deve prender o menino em
um quarto especialmente construído para prendê-lo. Até a Lua passar.
Novas polaridades são construídas
na segunda metade do filme: o amor de Clara que pode ser puro, mas muitas vezes
também perverso e castrador. Uma criança com uma forte carga instintiva (uma
fera encerrada no corpo pequeno de uma criança), e a razão versus emoção – Joel
é uma monstruosidade que pode põe em perigo os amigos da escola e a comunidade.
Mas Clara o ama por ver nele a mãe Ana.
Um lobisomem brasileiro em São Paulo
Se o filme se chamasse “Um
Lobisomem Brasileiro em São Paulo”, não faria injustiça à fábula social e
sobrenatural de Mariana Rojas e Marco Dutra. Se no clássico Um Lobisomem Americano em Londres de
1981 na mescla de horror e humor negro havia uma metáfora sobre o modo como os
estrangeiros são recebidos na Europa, no filme brasileiro há uma evidente
metáfora do atual momento brasileiro: as diferenças raciais e de classe em uma
sociedade cronicamente dividida após tudo o que envolveu o golpe político de
2016.
A ponte estaiada é uma imagem que
pontua diversas sequências do filme. Uma obra arquitetônica imponente que une
em um único sentido (a ponte tem mão única) uma sociedade dividida por um rio:
de um lado, o rico e neoliberal bairro do Brooklin dos prédios corporativos e
residenciais de luxo; e na outra margem, a periferia do Capão Redondo.
As duas horas de filme são
divididos de forma bem clara: na primeira metade o comentário social sobre uma
sociedade tão imóvel quanto a ponte estaiada, cujas fundações estão ainda
solidamente fixadas no passado escravocrata. Da qual surge o Mal, das entranhas
da elite. Para ser entregue à sociedade, para espalhar o medo, violência e, por
fim, a revolta.
A cidade de São Paulo figurada no
filme é sombria e sinistra, mesmo nas locações claras como o duplex de Ana ou o
Shopping Center no Brooklin onde o ingênuo menino Joel vai em busca do seu
suposto pai.
Mais um simbolismo do roteiro: o
Shopping, berço cultural da modernidade alienígena urbana brasileira – onde
mais um lobisomem brasileiro buscaria suas origens?
Por isso, o realismo fantástico
de As Boas Maneiras parece dialogar
com o tom premonitório do Gabinete do Dr.
Caligari e a forma como contrasta com o otimismo datado de Que Horas Ela Volta?
Se o filme de Anna Muylaert hoje
parece datado (o otimismo de um país que crescia economicamente paralelo a
mudanças culturais e mobilidade social), As Boas Maneiras é o reflexo do Brasil
atual, desencantado e pessimista.
Porém o mais incômodo é a
dualidade do lobisomem no corpo frágil de uma criança: o futuro que já carrega
consigo o Mal.
Nesse sentido, este humilde
blogueiro espera que os maus augúrios não tenham sido também soprados nos
ouvidos da dupla de diretores. Assim como fizeram nos ouvidos de Robert Wiene
em 1919...
Ficha Técnica
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Título: As
Boas Maneiras
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Diretor: Marcos Dutra, Juliana Rojas
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Roteiro: Juliana Rojas,
Marcos Dutra
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Elenco: Isabél
Zuaa, Marjorie Estiano, Miguel Lobo
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Produção: Dezenove Som
e Imagem, Globo Filmes, Good Fortune Films, Urban Factory
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Distribuição: Imovision
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Ano: 2017
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País: Brasil, França
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