Em uma diferença de apenas 24 horas,
dois sintomas dos estranhos tempos em que vivemos: no domingo, no horário mais
caro da TV brasileira, o Fantástico da Globo, um pedido de desculpas auto-indulgente
de Neymar com o patrocínio milionário da Gillete. No dia seguinte, o candidato
à presidência de extrema-direita, Jair Bolsonaro, no programa Roda Viva da TV
Cultura, apontando uma metralhadora de cacofonias numa estudada estratégia de
confusão verbal e bate boca. Dois personagens que ganham força não pelas
virtudes (nem que seja para simulá-las) mas pela negatividade. Nesses
dois eventos o “bom senso” e a “ponderação” foram mandados à favas mostrando
uma estratégia paradoxalmente antimídia – ganham força a partir de uma
autodestruição das estratégias de enunciação que sempre ajudaram a mídia a
simular possuir algum valor de uso: “informar”, “entreter” e “educar”. As,
digamos assim, “sinceridades” de Bolsonaro (a extrema-direita em seu estado
bruto, sem as estratégias de enunciação suavizantes) e de Neymar (a negação
franca da virtuosidade do esporte – "falem o que quiser porque tenho dinheiro!")
são atos paroxistas. Se transformaram em “máquinas celibatárias” que ganham
força investindo contra a própria mídia que os promoveu.
Dois sintomas dos estranhos tempos em que estamos
vivendo: de um lado, a participação no programa Roda Vida da TV Cultura do
agora ameaçador candidato de extrema-direita à presidência Jair Bolsonaro; e do
outro o pedido de desculpas, patrocinado pela Gillete, do astro Neymar Jr após
ter sua participação na Copa ridicularizada por todo o planeta.
De ambos parece que tudo já foi dito. De figura
folclórica e bravateira do chamado baixo clero do Congresso, hoje Bolsonaro representa
uma ameaça real, elevado ao status de “mito” por uma legião enojada pela
Política, após o bombardeio diário de telejornais que se transformaram, de
programas noticiosos, em verdadeiras crônicas policiais. Bolsonaro destila o ódio que a própria mídia
produziu ao abrir a “caixa de Pandora”: mexeu na lama psíquica dos baixos
instintos coletivos para engrossar a tropa que sairia às ruas para pedir o
impeachment e mandar a esquerda de volta a Cuba.
Enquanto Neymar Jr é figurado pela crônica especializada
como um “Neymarketing” mimado: cercado pelos “parças”, prefere muito mais
ostentar seu poder financeiro do que jogar futebol.
Mas há algo mais! Um traço que os une, como subprodutos
midiáticos de um contexto atual de Guerra Híbrida, no qual a grande mídia foi
elevada ainda mais à condição de protagonista político, dentro de um complexo
judicial-policial-midiático.
Não é mera coincidência o fato de que Bolsonaro e Neymar
Jr ganhem espaço midiático pela sua negatividade. E paradoxalmente tirem a sua
força disso.
Enquanto Bolsonaro vira “mito” para um público jovem que
chega a confundi-lo com as tosquices dos youtubers, Neymar Jr transformou-se
num exemplo a ser seguido por centenas de jovens nas peneiras de futebol de
clubes por todo o País: afinal, Neymar é um moleque que se fez, encheu as
burras de dinheiro e caiu fora do Brasil. Bem ou mal está na Europa e seu passe
vale milhões de euros. Qual jovem não gostaria de um futuro desse? Afinal, não
é esse o foco do discurso mérito-empreendedor que a grande mídia vende
diariamente como modelo ético e moral?
Porém, esse algo a mais não se limita a um paradoxo. É também
um paroxismo: o momento culminante de um ataque ou crise, onde um sintoma se
manifesta com mais força causando disfunções em um determinado órgão ou
sistema.
E essa disfunção sistêmica é,
nada e nada menos, do que aquilo que este humilde blogueiro define como
“tautismo” (tautologia + autismo midiático), conceito emprestado do pesquisador
francês Lucien Sfez - “comunicação confusional”,
traço dominante contemporâneo onde o processo comunicacional teria se
tornado um diálogo sem personagem. Só leva em conta a si mesmo, isto é, a
comunicação como seu próprio objeto (veja SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000).
Tanto Bolsonaro como Neymar Jr são como as “máquinas
celibatárias” de Deleuze e Guattari: uma forma de prazer auto referencial, uma
aliança entre os seus desejos e as próprias máquinas que os promovem (a grande
mídia) a tal ponto que fossem libertados poderes ilimitados que destruiriam a
própria mídia para os quais deu visibilidade – sobre esse conceito clique aqui ou o livro O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari. Mas principalmente a
destruição da simulação de um referente,
de uma finalidade ou de um valor de uso. Respectivamente, a Política e o
Futebol.
Desde Kennedy e Nixon a mídia não foi mais a mesma...
Desde o primeiro debate, frente-a-frente, entre dois
candidatos à presidência (Kennedy e Nixon) em 1960 a grande mídia não foi mais
a mesma. Enquanto no rádio os ouvintes davam a vitória a Nixon, na TV a imagem
jovial e bronzeada de Kennedy se impôs ao rosto suado e com olheiras de Nixon.
Kennedy passou uma percepção de confiança e credibilidade, enquanto Nixon
transmitia insegurança.
Desde então, no cenário midiático e da comunicação, a
credibilidade se sobrepôs à verdade, a simulação à representação, o imaginário
à informação.
A partir desse evento inaugural, uma massa de ferramentas
da publicidade, relações públicas, marketing e táticas subliminares foi
mobilizada para disputar uma guerra de percepções, impressões, sentimentos e
emoções. E assim, conquistar a opinião pública, mandando às favas tudo aquilo
que algum dia foi chamado de “informação”, “verdade”, “representação” e todos
esses conceitos cânones do racionalismo Ocidental.
Não que nada disso existisse antes – afinal, o sobrinho
de Freud, Edward Barnays, defendeu e popularizou a manipulação de massas nos EUA
muito tempo antes.
Debate Kennedy x Nixon na TV: evento inaugural |
Porém a novidade que a mídia criou sobre esse cenário de
simulações de credibilidade um outro jogo: a simulação de que ainda existia
alguma miragem de referência: o jornalismo informa; o cinema entretém; o
futebol promove uma prática esportiva e assim por diante.
Por exemplo, o telejornalismo criou um complexo jogo de
enunciação para esconder a sua natureza ficcional (prazer voyeurista do
espectador, o teleprompter, o croma key, o apelo a edição e montagem
cinematográfica coberturas jornalísticas etc.). Um jogo de enunciação tautista
de autorreferência e metalinguagem: a promoção de jornalistas como “âncoras”,
os debates televisivos com um emaranhado de regras de discurso e linguagem que
transmitam a seriedade noticiosa (o bom senso, o respeito ao mediador,
argumentação, discurso silogístico, cordialidade etc.), colunistas e
especialistas que se autopromovem como grifes.
Assim como no esporte, a promoção de atletas como astros
e o enaltecimento da competição e performance escondem a intensa mercantilização
na qual os atletas vitram commodities às quais deve ser agregado valor a cada
calendário esportivo.
Estratégias de enunciação tautista
É o que em teoria da comunicação chamam-se “estratégias
de enunciação” nas quais o emissor (no caso a própria mídia) esconde seu
interesse por meio de um discurso “desinteressado”: “eu apenas transmito
informações de interesse público” ou “entretenho as massas com o esporte que
enaltece os bons valores morais e éticos” etc.
Porém, essa natureza tautista (ter que encenar
continuamente a miragem de uma utilidade pública) chega hoje ao paroxismo,
criando uma relação celibatária consigo mesma – assim como o dadaísta Marcel
Duchamp matou a pintura com os seus ready mades:
ao achar que tudo poderia ser arte, matou a própria arte.
Bolsonaro e Neymar: os novos ready mades de Duchamp? |
Jair Bolsonaro e Neymar Jr são exemplos de um jogo de
simulação que chegou ao seu limite até o ponto que o fio da faca virou – eles
simplesmente quebraram o jogo das estratégias de enunciação. E por isso eles
lucram com suas próprias negatividades.
Por exemplo,
para Camilo Aggio, no programa Roda Viva Bolsonaro estava:
investindo severamente em falas que disparam mil palavras por segundo, conduzindo o diálogo com os entrevistadores na direção que lhe é mais favorável. O cara usa a estratégia de criar cacofonias. Gera um enorme bate boca, forma aquela confusão verbal, todo mundo fala, rebate, brada, pouco se escuta, o tempo esgota e, tá lá: eis o candidato conseguindo fugir de armadilhas e situações desfavoráveis – AGGIO, Camilo, “Por que eleitores do Bolsonaro acreditam que ele “lacrou”. Viomundo.
Bolsonaro e Neymar antimídia?
Paradoxalmente, Bolsonaro quebrou o monopólio do discurso
antimídia das esquerdas – ao romper com as regras do bom senso, da argumentação
e da ponderação, ele se posicionou como anti-establishment político, como
aquele que é supostamente perseguido pela mídia.
Seu, por assim dizer, “discurso” põe a nu a própria
natureza tautista da mídia desde o evento inaugural de Kennedy e Nixon: a
natureza dos meios de comunicação não é informar, mas criar impressões - sentimentos,
emoções e percepções.
Assim como a explícita auto-indulgência de Neymar
patrocinada pela Gillete também pôs a nu a própria natureza do negócio do
esporte: trata-se de agregar valor a commodities.
As, digamos assim, “sinceridades” de Bolsonaro (a
extrema-direita em seu estado bruto, sem as estratégias de enunciação que
suavizam) e de Neymar (a negação franca da virtuosidade do esporte) são atos
paroxistas, com os quais lucram com suas próprias negatividades.
Bolsonaro surfa na quebra dos códigos midiáticos de boa
conduta com o “politicamente incorreto”. Cada frase, cada bravata, cada caco
linguístico se transforma em meme.
“Eu tenho dinheiro!”
Enquanto isso, para a crônica esportiva o mimado Neymar
esqueceu de jogar futebol, como se isso importasse tanto para ele quanto para
os jovens que o tomam como modelo de sucesso num país regido pelo sonho do
mérito-empreendedorismo.
Bolsonaro e
Neymar lembram a mesma estratégia antimídia feita certa vez pelo apresentador
Silvio Santos na sua emissora, o SBT: Em 2003
mandou o requisito da credibilidade do telejornalismo às favas e colocou duas
ex-participantes do reality show da emissora, Casa dos Artistas, na
bancada do Jornal do SBT - o "Jornal das Pernas": Analice Nicolau e Cynthia Benini. Com
provocativas pernas cruzadas e com modelitos misto de aeromoças da Aeroflot com
dançarinas de lambada, liam as notícias e apresentavam o quadro Tolerância
Zero com ações policiais nos EUA.
O "Jornal das Pernas": o telejornalismo sem simulação de Sílvio Santos |
Se a natureza do telejornal não é informativa, mas apenas jogar com impressões,
então vou colocar a nu a essência do telejornalismo, deve ter pensado o Sílvio
Santos.
Por isso Bolsonaro e Neymar representam um desafio para
as mentes bem pensantes que fazem a crítica da comunicação: sua força vem na
negação da própria estratégia de enunciação correta midiática.
Se um debate na TV nada mais é do que um jogo de
impressões, por que não torna-lo explícito com bravatas politicamente
incorretas e cacofonias?
E se a natureza do esporte atual é a valorização de
commodities, que falem o que quiserem: “Eu tenho dinheiro!” – esse é o subtexto
do pedido de desculpas milionário do astro da Seleção e do PSG.
No final, a extrema direita e os novos ricos do esporte
compreenderam uma lição das relações públicas: a comunicação indireta – não se
trata mais de falar com um interlocutor (seja os jornalista do Roda Viva, seja
a crônica esportiva). Trata-se de indiretamente gerar impressões para um
distinto público despolitizado e desengajado.
Que alegre se diverte com todo esse “terrorismo
midiático”, sem saber que sorri à beira do abismo.
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