domingo, agosto 19, 2018
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Um circo, cuja principal atração é uma
enorme carcaça de baleia empalhada, chega a um remoto vilarejo no interior da
Hungria, gélido e envolto numa permanente neblina. E junto com o circo, medo e
presságios de crise e escassez de carvão para aquecer as casas. E o oportunismo
político espreita as incertezas e o obscurantismo local. Por que? Para um velho
musicólogo porque desde que o compositor barroco Andreas Werckmeister ofereceu
ao mundo a afinação temperada (base do sistema tonal), o mundo quebrou a harmonia
com as músicas das esferas celestes trazendo o desencanto e a desesperança.
Esse é o filme “A Harmonia Werckmeister” (Werckmeister Harmoniák, 2000) do
diretor húngaro Béla Tarr. Uma fábula política sombria filmada em longos
planos-sequência descrevendo como o mal pode se esgueirar numa comunidade
aparentemente pacífica. E a Razão ser eclipsada pelo desencantamento do mundo.
Certa vez o pesquisador alemão Horkheimer (expoente da
chamada “Escola de Frankfurt”) afirmou que “a história dos esforços humanos em
subjugar a natureza, é também a história da subjugação do homem pelo próprio
homem”. Dominar a natureza através da Razão significou liquidar da própria
natureza os mitos e deuses que habitavam nela, alimentados pela crença humana. Sem
os deuses e mitos a natureza tornou-se um objeto vazio e explorável. Enquanto o
homem, como integrante da natureza, também um ser esvaziado de qualquer sentido
ético e moral – leia HORKHEIMER, Max, Eclipse
da Razão, Editora Unesp, 2015.
Portanto, para a Escola de Frankfurt, o nazi-fascismo e o
Holocausto seriam o desfecho trágico de séculos e séculos da história de uma dialética
infernal: a do esclarecimento – a aventura da Razão que tencionava jogar luz
nas trevas da ignorância. Mas toda luz também produz sombras.
A Harmonia Werckmeister (Werckmeister
Harmoniák, 2000), do mestre húngaro Béla Tarr, é uma fábula desse eclipse
da razão em tempos sombrios de medo e incertezas. Filmado numa aldeia no
interior da Hungria , isolada do mundo e cercada por uma neblina fria permanente,
a estória de mais de duas horas de A
Harmonia Werckmeister foi narrada em apenas 39 planos-sequência
extremamente longos, com uma câmera contemplativa que acompanha os personagens
como fosse em tempo real.
Em preto e branco e com longos planos que deslizam por
entre as ruas, praças e interiores daquele vilarejo, parece até que outro
mestre, o diretor russo Tarkovski (Solaris e Stalker), reencarnou em Bela Tarr.
Só que dessa vez, não mais em um sci-fi, mas agora em uma fábula sobre como o
Mal acabou lentamente possuindo aquele lugar gélido e remoto. Uma alegoria
política não só sobre vida da Hungria do pós-guerra sob a ocupação
soviética.
Mas também de como o mal pode se esgueirar em qualquer
comunidade aparentemente pacífica. Porque o mal já está em cada um de nós,
bastando apenas um gatilho que o faça despertar: no filme, a chegada de um
estranho circo que tem como a principal atração uma enorme baleia embalsamada.
O Filme
O primeiro plano-sequência de 11 minutos já contém toda a
premissa do filme. Tudo se trata de uma didática explicação sobre o que é um
eclipse. Mas também poderia ser uma alegoria sobre o eclipse da própria razão,
tal como descrita por Horkheimer, que vamos acompanhar por todo o filme.
É o auge do inverno, quase na hora de um pub fechar. Um
eclipse do Sol está para acontecer nos próximos dias e János (Lars Rudolph), o
entregador de jornais locais, toma para si a missão de explicar para o grupo de
bêbados sonolentos o que vai acontecer nos céus. Ele afasta as mesas e
posiciona um bêbado no centro do pub e pede para agitar as mão como fosse os
raios do Sol.
Em seguida, um outro fará o papel da Terra, girando em
torno do Sol e um outro bêbado sonolento recebe a missão de ser a Lua girando em
torno da Terra. Um cena ao mesmo tempo bizarra e poética com círculos
cambaleantes, enquanto János explica como a Lua se interpõe entre o Sol e a
Terra: “O céu escurece e tudo fica escuro... os cães uivam, os coelhos se
escondem, os veados correm assustados... E nesse entardecer terrível até os
pássaros confusos voltam para os galhos e dormem. E então, completo silêncio.
Será que o céu cairá sobre nós?”.
O proprietário do pub anuncia o fechamento e põe todos
para fora. János parte para o seu trabalho noturno: se dirige ao escritório
para pegar os pacotes de jornais para as entregas. E será na sua primeira parada,
no hotel do vilarejo, que ele começa a ouvir rumores alarmantes e presságios:
um circo está chegando tendo como principais atrações uma enorme carcaça de
baleia empalhada e um “príncipe” – alertas de que a paz terminará, visitantes
de outras cidades aparecerão, faltará alimento e carvão para aquecer as casas
naquele inverno rigoroso e possivelmente famílias desaparecerão...
János é idealista, estudioso de astronomia, com um mapa
celeste fixado na parede da sua casa. Pacientemente cuida do seu velho tio
György Eszter (Peter Fitz), um compositor e musicólogo que acredita que o mundo deu errado
desde que o músico Andreas Werckmeister (1645-1706) popularizou um sistema de
harmonias que acabou entrando em confronto com a música das esferas celestes.
Para Eszter, desde então ele não consegue mais encontrar a afinação exata do
seu piano.
O Eclipse da Razão
Será o “desencantamento do mundo” descrito por Max Weber,
cujas consequências desfecharam o “eclipse da razão” alertado por Horkheimer?
Enquanto para János a enorme baleia exposta na praça
central é uma maravilha que nos prova do que Deus é capaz, para os moradores é
uma perturbação que aumenta a tensão política local: a ex-esposa do velho tio
de János, Tünde (Hanna Schyngulla), que agora vive com o chefe da polícia
local, planeja algum tipo de revolta ou golpe político. E exige que Eszter, com
a sua ascendência intelectual e credibilidade, converse com os líderes da
cidade a participarem do movimento. Caso se recuse a colaborar, tomará a casa e
o expulsará, junto com o seu sobrinho.
Tal como o
estilo do diretor Tarkovski, Béla Tarr narra tudo de uma forma contemplativa e
poética onde em cada enquadramento há divagações filosóficas nos pensamentos
dos personagens, muitas vezes em longos monólogos.
O plano-sequência da chegada noturna do caminhão do circo é
assombroso: a sombra enorme do caminhão passando lentamente é projetada sobre a fachada das casas. Somada à sequência inicial do eclipse no pub,
são as passagens sínteses do que acontecerá naquele vilarejo – o crescimento da
violência, do arbítrio e da intolerância.
Desencantamento do mundo
No longo
monólogo de Eszter explicando o equívoco de Werckmeister em quebrar a harmonia
celeste com suas métricas, oitavas e decimais está figurado o próprio desencantamento do
mundo que tira da natureza seus significados e propósitos. Deixando aberta a
ação humana desprovida de qualquer sentido ético ou moral. Levando toda uma
comunidade à autodestruição pelo oportunismo político, traições, cobiça e a
violência como único instrumento de ação.
Mas o
“desencantamento do mundo” não significa que Deus está morto, e que, por isso,
no reinado no niilismo o homem perderia os limites entre o certo e o errado. A
dupla central de A Harmonia Werckmeister,
János e Eszter, não é religiosa. Mas possui um senso de “maravilhamento” com o
mundo, uma percepção do Sagrado que vai muito além dos seus próprios egos.
Condição psíquica que permite o cultivo do respeito e da empatia.
O desencantamento do mundo gera o medo e a angústia, diante de um Universo que
perdeu sentido ou propósito. O medo, o pai da violência como formação reativa
que, politicamente traduzida, transforma-se nos fenômenos históricos do nazismo
e do fascismo.
Ezster e
János representam respectivamente a Arte (música) e a Ciência (Astronomia). O
filósofo Hegel certa vez disse que “a coruja de Minerva só levanta voo ao
entardecer” numa alusão de que a Razão e o Conhecimento ganhariam força em
momentos de crise e obscurantismo, salvando a humanidade da fatalidade. Mas
Béla Tarr é mais pessimista ao perceber que, tal como Max Horkheimer, o
obscurantismo e o medo são paradoxalmente subprodutos da própria hegemonia da
Razão na História.
Por isso, na
fábula trágica de Béla Tarr, Arte e Ciência serão derrotados por uma massa enfurecida
manipulada pelo oportunismo político. Tudo sob o olhar morto e vitrificado de
uma gigantesca baleia no meio do frio e da neblina.
Ficha Técnica
Título: As
Harmonias de Werckmeister
Diretor: Béla Tarr
Roteiro: Béla
Tarr baseado em livro de László Krasznahorkai
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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