Toda obra audiovisual é um sintoma de cada época. E algumas vezes esse
sintoma é um ato falho, como na atual série de comerciais para a TV da Lavadora
Black Panasonic onde o pensamento ecologicamente correto e tecnologia
sustentável convivem confortavelmente com uma remanescência das relações entre Casa
Grande e Senzala da época da escravidão brasileira: a figura da empregada
doméstica uniformizada. A modelo/apresentadora Fernanda Lima aparece andando na
área de serviço contracenando com uma alegre empregada que dança imitando os movimentos da máquina, em diversas situações que sugerem o estereótipo
de segregação do imaginário das classes médias. Os sofisticados
eletrodomésticos do século XXI tornam o cotidiano mais prático, o que
dispensaria a necessidade de uma “assistente do lar”. Mas ela permanece,
uniformizada, como signo da permanência da distinção de classes.
Produtos audiovisuais são verdadeiros fontes primárias para
pesquisadores, assim como são os pergaminhos, correspondências, assentos de
registros públicos civis e textos literários para um historiador que procura
entender a mentalidade de uma época.
Cinema e vídeos publicitários são verdadeiros repositórios do imaginário
social de uma determinada época, não só pela estética e linguagem que
identificam aquele período mas, principalmente, pelos seus “atos falhos”:
chistes, ambiguidades, conotações ou aspectos não verbais que expõem
involuntariamente ideologias, visões de mundo ou preconceitos.
Quem não se lembra do ato falho de criação da campanha da Skol no
carnaval de 2015 que causou indignação nas redes sociais: “Esqueci o Não em
Casa” e “Topo Antes de Saber a Pergunta”. Em meio aos debates em torno dos
abusos sexuais e o empoderamento feminino a campanha da marca de cerveja
simplesmente estampou em mídias externas frases que iam na contramão de tudo
que se discutia.
Mais do que isso: a criação publicitária politicamente incorreta foi um
sintoma do crescimento de um neoconservadorismo em um momento de atmosfera
política pesada onde invoca-se antigos fantasmas como o golpe militar e a ameaça
comunista com bolsonaros e felicianos. E junto com isso a onda neoconservadora
na moral e costumes.
Segregação e preconceito
Agora temos mais um exemplo desses inacreditáveis “atos falhos”: a
campanha da Lavadora Black da Panasonic com a modelo/apresentadora Fernanda
Lima. A série de quatro comerciais do
produto exaltam a “lavadora inteligente” cuja tecnologia é capaz de economizar
água e energia e instigam o consumidor a também ser inteligente: “repense sua
lavadora”, desafia Fernanda Lima ao final de cada vídeo.
Mas apesar de toda a modernidade ecologicamente correta, uma fotografia
em matiz esverdeada e tons claros para criar uma atmosfera de leveza e
positividade de uma modernidade que exigiria dos cidadãos reponsabilidade para
com o planeta, há algo ainda de extremo conservadorismo: não apenas a figura da
empregada doméstica uniformizada, mas todo um conjunto de signos não verbais
que marcam hierarquia e distinção de classes. Além de segregação e preconceito.
Por si só a figura da empregada doméstica (que os reviews sobre a
campanha da Panasonic nas publicações especializadas chamam de “assistente do
lar” para se referir à personagem que contracena com a Fernanda Lima) já é uma
excrescência das relações entre a Casa Grande e a Senzala na ordem escravocrata
de séculos passados da história brasileira que ainda persiste em pleno século
XXI.
Mas persiste através da manutenção de toda uma sorte de signos que de
alguma forma continue marcando e identificando hierarquias, submissões e
diferenças de classes: o uniforme azul da empregada doméstica, a roupa branca
da babá, o elevador de serviço, o quartinho da empregada, o “dormir no
emprego”, os clubes que exigem que “serviçais” de associados sejam
identificados por uniformes etc.
A patroa desconfiada
Cada um dos comerciais da série
começa com o olhar desconfiado de alto para baixo da patroa Fernanda Lima para
a empregada Lina: “vai dizer que você está lavando a roupa de novo”, “Tá
convencida, hein Lina!”, “Lina, o que tá fazendo?”, diz sempre a patroa do alto
dos seus saltos.
O olhar da patroa para a Lina é sempre desconfiado, interrogante, como
se pensasse: “o que está aprontando?”. Sempre parece suspeitar que a Lina está
fazendo corpo mole (dançando, por exemplo) até ela convencer a patroa que está
apenas imitando os movimentos da máquina que limpa suavemente a roupa.
“E cada lavagem uma dança diferente?”, inquiri a patroa Fernanda Lima
que passa a maior parte do tempo dos comerciais desconfiada das verdadeiras
intenções de Lina.
Numa alusão aos jogos olímpico no Brasil, no comercial “Time da Casa” a
patroa se detém na entrada da cozinha e cruza os braços observando, a princípio
desconfiada, a Lina fazendo alongamentos apoiando-se em um armário.
Se nos comerciais anteriores as posições hierárquicas são bem marcadas,
nesse são mascaradas pela ideia positiva do lar ser um “time” que precisa de
“sincronia”, “entrosamento” e que precisa ter “o time certo” – empregada +
Panasonic.
Slogan motivacional corporativo que esconde as tensões das hierarquia
organizacionais com as imagens de “time”, “equipe” e “vestir a camisa” como se
de repente as relações de poder e submissão desaparecessem em meio a uma boa
vontade e positividade.
Mentalidade da classe média brasileira
O que mais surpreende nessa série de comerciais é como no imaginário da
criação publicitária (que reflete a mentalidade da classe média brasileira)
convivem confortavelmente algo tão extemporâneo como a figura da empregada
doméstica (pior, uniformizada!) com uma suposta modernidade tecnológica e
pensamento ecologicamente correto.
O mote do comercial é instigar o consumidor a ser “inteligente”,
“repensar” e associar a vida familiar a um estilo de vida sustentável. Mudar
tudo, menos as relações sociais e hierárquicas, a piece de resistance de uma
classe social que foi abalada pela ascensão da classe C e financiamentos de
estudos que possibilitaram empregadas entrarem na universidade.
Essa série de comerciais também comprova como o imaginário publicitário
é inacreditavelmente estático diante das mudanças sócio-culturais. Desde
estudos clássicos em semiologia como o livro Mitologias de Roland Barthes dos anos 1950, o mundo da publicidade
e propaganda é descrito como uma estrutura invariável de signos descolada do
cotidiano.
Mesmo com debates recentes estimulados pelo filme brasileiro Que Horas Ela Volta (onde a filha de uma
empregada consegue passar na Fuvest colocando em xeque as relações
patrão-empregada em uma casa de classe média paulistana) que apontam para
mudanças na sociedade brasileira na última década, essa série de comerciais
ainda reproduz o mesmo estereótipo.
A empregada sígnica
E ainda o mais curioso é que esse estereótipo é reproduzido em um
comercial de produtos eletrodomésticos que, a princípio, tornam o cotidiano
mais prático, dispensado a necessidade de uma “assistente do lar”.
Nos próprios comerciais, a empregada doméstica uniformizada apenas imita
os movimentos da máquina de lavar roupas com passos de balé ou movimentos de
dança moderna. A própria “dona” Fernanda fala para a Lina “deixar de ser
convencida”. Parece que o único papel que resta para a empregada é sígnico:
marcar as distinções de classe e ordem hierárquica, como percebe-se na
deferência como Lina trata a patroa – “Dona Fernanda”, “vou pedir um aumento”,
“a eficiência que a senhora sempre quis e a delicadeza que a senhora merece”,
“Senhora”, “Dona”...
E no final, Lina chora porque será ultrapassada por uma máquina mais
inteligente e eficiente do que os serviços que ela presta à patroa. Enquanto
ouve Fernanda Lima dizendo: “não chora Lina, você aperta o botão como
ninguém...”.
Peças audiovisuais como essa série da Panasonic servem apenas para
polarizar ainda mais as posições em um país onde a atmosfera política torna-se
cada vez mais pesada e tensa. Essa estrutura invariável da publicidade, que
sempre existiu, num contexto como o atual passa a ter um novo significado: o de
alimentar a reação cultural neoconservadora que segue no vácuo da atual
polarização política.
Postagens Relacionadas |