domingo, março 13, 2016

Comercial de lavadora reforça estereótipos da empregada doméstica da classe média


Toda obra audiovisual é um sintoma de cada época. E algumas vezes esse sintoma é um ato falho, como na atual série de comerciais para a TV da Lavadora Black Panasonic onde o pensamento ecologicamente correto e tecnologia sustentável convivem confortavelmente com uma remanescência das relações entre Casa Grande e Senzala da época da escravidão brasileira: a figura da empregada doméstica uniformizada. A modelo/apresentadora Fernanda Lima aparece andando na área de serviço contracenando com uma alegre empregada que dança imitando os movimentos da máquina, em diversas situações que sugerem o estereótipo de segregação do imaginário das classes médias. Os sofisticados eletrodomésticos do século XXI tornam o cotidiano mais prático, o que dispensaria a necessidade de uma “assistente do lar”. Mas ela permanece, uniformizada, como signo da permanência da distinção de classes.


Produtos audiovisuais são verdadeiros fontes primárias para pesquisadores, assim como são os pergaminhos, correspondências, assentos de registros públicos civis e textos literários para um historiador que procura entender a mentalidade de uma época.

Cinema e vídeos publicitários são verdadeiros repositórios do imaginário social de uma determinada época, não só pela estética e linguagem que identificam aquele período mas, principalmente, pelos seus “atos falhos”: chistes, ambiguidades, conotações ou aspectos não verbais que expõem involuntariamente ideologias, visões de mundo ou preconceitos.

Quem não se lembra do ato falho de criação da campanha da Skol no carnaval de 2015 que causou indignação nas redes sociais: “Esqueci o Não em Casa” e “Topo Antes de Saber a Pergunta”. Em meio aos debates em torno dos abusos sexuais e o empoderamento feminino a campanha da marca de cerveja simplesmente estampou em mídias externas frases que iam na contramão de tudo que se discutia.

Mais do que isso: a criação publicitária politicamente incorreta foi um sintoma do crescimento de um neoconservadorismo em um momento de atmosfera política pesada onde invoca-se antigos fantasmas como o golpe militar e a ameaça comunista com bolsonaros e felicianos. E junto com isso a onda neoconservadora na moral e costumes.


Segregação e preconceito


Agora temos mais um exemplo desses inacreditáveis “atos falhos”: a campanha da Lavadora Black da Panasonic com a modelo/apresentadora Fernanda Lima. A série de  quatro comerciais do produto exaltam a “lavadora inteligente” cuja tecnologia é capaz de economizar água e energia e instigam o consumidor a também ser inteligente: “repense sua lavadora”, desafia Fernanda Lima ao final de cada vídeo.

Mas apesar de toda a modernidade ecologicamente correta, uma fotografia em matiz esverdeada e tons claros para criar uma atmosfera de leveza e positividade de uma modernidade que exigiria dos cidadãos reponsabilidade para com o planeta, há algo ainda de extremo conservadorismo: não apenas a figura da empregada doméstica uniformizada, mas todo um conjunto de signos não verbais que marcam hierarquia e distinção de classes. Além de segregação e preconceito.

Por si só a figura da empregada doméstica (que os reviews sobre a campanha da Panasonic nas publicações especializadas chamam de “assistente do lar” para se referir à personagem que contracena com a Fernanda Lima) já é uma excrescência das relações entre a Casa Grande e a Senzala na ordem escravocrata de séculos passados da história brasileira que ainda persiste em pleno século XXI.

Mas persiste através da manutenção de toda uma sorte de signos que de alguma forma continue marcando e identificando hierarquias, submissões e diferenças de classes: o uniforme azul da empregada doméstica, a roupa branca da babá, o elevador de serviço, o quartinho da empregada, o “dormir no emprego”, os clubes que exigem que “serviçais” de associados sejam identificados por uniformes etc.


A patroa desconfiada


 Cada um dos comerciais da série começa com o olhar desconfiado de alto para baixo da patroa Fernanda Lima para a empregada Lina: “vai dizer que você está lavando a roupa de novo”, “Tá convencida, hein Lina!”, “Lina, o que tá fazendo?”, diz sempre a patroa do alto dos seus saltos.

O olhar da patroa para a Lina é sempre desconfiado, interrogante, como se pensasse: “o que está aprontando?”. Sempre parece suspeitar que a Lina está fazendo corpo mole (dançando, por exemplo) até ela convencer a patroa que está apenas imitando os movimentos da máquina que limpa suavemente a roupa.

“E cada lavagem uma dança diferente?”, inquiri a patroa Fernanda Lima que passa a maior parte do tempo dos comerciais desconfiada das verdadeiras intenções de Lina.

Numa alusão aos jogos olímpico no Brasil, no comercial “Time da Casa” a patroa se detém na entrada da cozinha e cruza os braços observando, a princípio desconfiada, a Lina fazendo alongamentos apoiando-se em um armário.


Se nos comerciais anteriores as posições hierárquicas são bem marcadas, nesse são mascaradas pela ideia positiva do lar ser um “time” que precisa de “sincronia”, “entrosamento” e que precisa ter “o time certo” – empregada + Panasonic.

Slogan motivacional corporativo que esconde as tensões das hierarquia organizacionais com as imagens de “time”, “equipe” e “vestir a camisa” como se de repente as relações de poder e submissão desaparecessem em meio a uma boa vontade e positividade.

Mentalidade da classe média brasileira

O que mais surpreende nessa série de comerciais é como no imaginário da criação publicitária (que reflete a mentalidade da classe média brasileira) convivem confortavelmente algo tão extemporâneo como a figura da empregada doméstica (pior, uniformizada!) com uma suposta modernidade tecnológica e pensamento ecologicamente correto.

O mote do comercial é instigar o consumidor a ser “inteligente”, “repensar” e associar a vida familiar a um estilo de vida sustentável. Mudar tudo, menos as relações sociais e hierárquicas, a piece de resistance de uma classe social que foi abalada pela ascensão da classe C e financiamentos de estudos que possibilitaram empregadas entrarem na universidade.

Essa série de comerciais também comprova como o imaginário publicitário é inacreditavelmente estático diante das mudanças sócio-culturais. Desde estudos clássicos em semiologia como o livro Mitologias de Roland Barthes dos anos 1950, o mundo da publicidade e propaganda é descrito como uma estrutura invariável de signos descolada do cotidiano.


Mesmo com debates recentes estimulados pelo filme brasileiro Que Horas Ela Volta (onde a filha de uma empregada consegue passar na Fuvest colocando em xeque as relações patrão-empregada em uma casa de classe média paulistana) que apontam para mudanças na sociedade brasileira na última década, essa série de comerciais ainda reproduz o mesmo estereótipo.

A empregada sígnica


E ainda o mais curioso é que esse estereótipo é reproduzido em um comercial de produtos eletrodomésticos que, a princípio, tornam o cotidiano mais prático, dispensado a necessidade de uma “assistente do lar”.

Nos próprios comerciais, a empregada doméstica uniformizada apenas imita os movimentos da máquina de lavar roupas com passos de balé ou movimentos de dança moderna. A própria “dona” Fernanda fala para a Lina “deixar de ser convencida”. Parece que o único papel que resta para a empregada é sígnico: marcar as distinções de classe e ordem hierárquica, como percebe-se na deferência como Lina trata a patroa – “Dona Fernanda”, “vou pedir um aumento”, “a eficiência que a senhora sempre quis e a delicadeza que a senhora merece”, “Senhora”, “Dona”...

E no final, Lina chora porque será ultrapassada por uma máquina mais inteligente e eficiente do que os serviços que ela presta à patroa. Enquanto ouve Fernanda Lima dizendo: “não chora Lina, você aperta o botão como ninguém...”.

Peças audiovisuais como essa série da Panasonic servem apenas para polarizar ainda mais as posições em um país onde a atmosfera política torna-se cada vez mais pesada e tensa. Essa estrutura invariável da publicidade, que sempre existiu, num contexto como o atual passa a ter um novo significado: o de alimentar a reação cultural neoconservadora que segue no vácuo da atual polarização política.


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