O leitor deve conhecer ou ter ouvido
falar daquela velha cartilha escolar de alfabetização de priscas eras chamada
“Caminho Suave”, o be-a-bá do mundo das letras. Pois é nesse nível que
interesseiramente se situam as chamadas “ferramentas de fact-checking”. Tática
diversionista para desviar a atenção da opinião pública de uma outra cena na
qual as notícias de fato funcionam: não no campo da representação (verdade ou
mentira), mas no deslizamento metonímico das edições, escaladas, justaposição
narrativa para criar percepções, impressões e relações de causa e feito. Como,
por exemplo, a nova bomba que o laboratório de feitiçarias semióticas do
telejornalismo da Globo criou em ano eleitoral para blindar o seu candidato
campeão Alckmin: a bomba semiótica “1+1=3” – comece narrando uma notícia... e
de repente dê uma guinada e passe a falar de outra notícia, criando duas linhas
narrativas simultâneas e tão confusas que o telespectador começará a criar
relações de causa e efeito que acabarão criando uma terceira notícia. Aquela
verdadeira notícia que a emissora gostaria de informar para esconder uma
realidade comprometedora.
As atuais agências de checagem em torno de todo hip das fake news parece coisa de criança, algo assim como a velha cartilha
“Caminho Suave”, perto das verdadeiras estratégias de manipulação das notícias.
As plataformas de fact-checking
são uma espécie de “vovô viu a uva” da Linguística, tão interesseiramente ingênuas
em focar as notícias somente pelo viés nominalista da linguagem – se a notícia
é verdadeira ou falsa. Ou se signos correspondem ou não à realidade.
Tática diversionista para desviar a atenção de uma outra
cena na qual a estrutura das notícias são na prática construídas: na cadeia de
significantes (eixo sintagmático), no deslizamento horizontal, metonímico das
formas. E não mais numa correspondência, por assim dizer, vertical dos signos
(eixo paradigmático) com aquilo que supostamente representariam.
Como se as
notícias se destinassem unicamente ao intelecto, à cognição, à representação. E
não, principalmente no atual quadro das bombas semióticas da grande mídia em
tempos de deflagração política, ao jogo de sombras, da guerra de percepções e
da moldagem da opinião pública não mais em cima de fatos, mas principalmente a
partir da impressão, dissuasão, sensação ou “climas” estrategicamente criados
pela suposta reportagem dos fatos.
1+1=3: Vacinas
Dois
singelos exemplos bem recentes demonstram isso. E, como não poderia deixar de
ser, exemplos extraídos do telejornalismo da TV Globo – o verdadeiro
laboratório de ponta atual no qual são fabricadas bomba semióticas. A notícia é
que agora temos uma nova bomba linguística, novilha em folha, saída diretamente
dos aquários da redação global.
Uma nova
bomba de natureza metonímica: aquela que junta duas notícia em uma, confundindo
o espectador, induzindo-o a criar novas relações de causa e efeito dos
acontecimentos. A bomba semiótica “1+1=3”.
Em telejornais da emissora (principalmente nas edições dos telejornais locais SP1 e 2 em São Paulo) a notícia
sobre a falta de vacinas contra meningite e sarampo nos postos de saúde é
justaposta, na mesma reportagem com o mesmo reporter e locução of, com outra
notícia: a de que os pais supostamente estariam deixando de vacinar os filhos
pelas razões as mais diversas – medo de efeitos colaterais, boatos, etc.
A estrutura
narrativa dessas reportagens é rocambolesca: inicia descrevendo o não
cumprimento das metas de vacinação por um suposto medo ou esquecimento dos
pais, inserindo em meio à reportagem declarações sobre problemas na
distribuição das vacinas em postos municipais. Para, no meio da matéria (numa
bizarra guinada temática) vermos depoimento de uma mãe sobre possíveis efeitos
colaterais. E terminando a matéria com um gestor de saúde falando em problemas
“pontuais” de distribuição.
Qual a
relação causa-efeito? Por que as campanhas de vacinação “estranhamente” não
estão cumprindo as metas no Estado de São Paulo? A grave notícia dos problemas
de distribuição das vacinas nos postos parece estar perdida dentro desse
rocambole narrativo.
Duas
notícias verdadeiras (pelos pressupostos fact-checking) que confirmam a célebre
máxima da Teoria Gestalt da percepção: o todo nunca será a soma das partes! 1+1
nunca será igual a 2. 1+1 sempre dá 3, não só para a Gestalt mas para toda a
retórica da Publicidade e Propaganda.
Essas duas
notícias justapostas resultam num espantoso efeito metonímico: sem estabelecer
relações de causa efeito, enfraquece a dedução mais comprometedora – metas não
são cumpridas pela falta das vacinas, fazendo os pais desistirem. Num contexto
de blindagem da principal esperança da continuidade (o ex-governador do Estado
Geraldo Alckmin) do atual cenário pós-golpe 2016, essa feitiçaria semiótica
ganha um sentido que nenhuma ferramenta de fact-checking consegue detectar.
Como contar mentiras apenas
falando notícias verdadeiras?
1+1=3: Oscilações de energia
Mais um exemplo, agora nessa
segunda-feira (27), no caos que se instaurou na primeiras horas da manhã com a
“oscilação” de energia no metrô e nas linhas de trem da CPTM em São Paulo.
O telejornal da manhã “Bom Dia
São Paulo”, com o apresentador Rodrigo Bocardi, começa a mostrar ao vivo a
multidão se acotovelando nas estações do metrô, com os atrasos dos trens e a
falta de informação da companhia metropolitana sobre o porquê. Enquanto o
painel high tech dos estúdios da Globo mostravam que tudo estava bem nas linhas
de trem e metrô, as imagens ao vivo figuravam o contrário.
No meio dos links ao vivo com
repórteres em diferentes estações do metrô e da CPTM mostrando multidões se
acotovelando e informações desencontradas, Bocardi entra repentinamente com
notícia sobre roubo de “fios de cobre” em uma “sala técnica” da estação Chácara
Klabin – homens teriam invadido a estação durante a madrugada roubando a
estação localizada na Rua Vergueiro.
Outra narrativa rocambolesca na
qual as duas notícias são dada numa espécie de ping-pong, justapondo
informações que acabam se contaminando entre si na percepção do telespectador:
notícias apenas paralelas ou relação causa-efeito? Metrô e CPTM vítimas de
bandidos que roubam fios, deixando milhares de paulistanos encalacrados na
estações da cidade?
Repórter fala do roubo de bobinas de fios de cobre do Metrô. Enquanto legendas falam de outra notícia: indução de causa e efeito por contaminação semiótica |
Somente no período da tarde no portal
G1 e no SP2 é que as notícias foram tratadas como dois eventos separados no
tempo e no espaço: foi relatado que companhia negou a relação entre a oscilação
de energia e o roubo de “fios de cobre”, na verdade cinco imensas bobinas
colocadas em caminhões pelos bandidos que fugiram do local. Bobinas que seria
utilizadas nas obras da estação Chácara Klabin, da linha 5-Lilás, aliás há
muito tempo inacabada.
Oscilação da energia + Roubo das
bobinas = o terceiro elemento gerado pela marota contaminação semiótica: Metrô
e CPTM não mais como vilões, mas dessa vez promovidos a vítimas de bandidos para se isentar de
qualquer responsabilidade momentânea. E, mais uma vez, blindando a imagem de
“gestor” do candidato Alckmin que deixa para trás um Estado em crise de gestão
hídrica, de transportes, de saúde, de segurança etc.
Esse é o mecanismo da bomba semiótica “1+1=3”:
são relatadas duas notícias que por si só são compreensíveis. Cada uma delas é
uma notícia isolada. No entanto, resulta numa terceira e insuspeita relação de
causa e efeito, induzindo um terceiro fato.
Fact-checking é Linguística e Semiótica pela metade
A questão é que nenhuma
ferramenta de fact-cheking consegue (ou se é que se interessa por isso...)
captar essas sutilezas linguísticas que não lidam mais com representações, mas
com percepções a partir da criação de novos sentidos.
Em termos do estruturalismo
linguístico, o fact-checking lida tão somente com o eixo vertical paradigmático da linguagem - o eixo vertical do
domínio da língua no qual as palavras podem ser comutáveis, dependendo do
contexto ou natureza do enunciado – os signos são escolhidos dentro de um
repertório que a Língua oferece. Dessa maneira o enunciado “Estou lendo” pode
ser comutado por “comendo”, “escrevendo”, “correndo”, “saltando” etc. Diz-se
que todos esses elementos comutáveis estão numa relação paradigmática. Ao ser
aceito, um paradigma serve como critério de verdade e de validação de
conhecimentos nos meios em que é adotado.
Enquanto o eixo horizontal sintagmático (no qual está todo o efeito perceptivo
da bomba semiótica “1+1=3”) trata das relações de sentido entre as unidades de
uma cadeia de signos falada, que se dão em presença, no aqui e agora, na função
performativa.
O fact-checking foca apenas a
Língua e não a Fala. Lida apenas com o campo das análises dos sintagmas a posteriori: se os signos escolhidos
dentro de um paradigma são representações verdadeiras ou falsas de um referente.
Mas é incapaz (ou ignora por
má-fé) de perceber os deslocamentos metonímicos ou contaminações dos signos ao
longo da cadeia sintagmática. A fala está fora do campo da representação,
embora se utilize da linguagem verbal e do repertório de signos do paradigma.
A fala demonstra que as palavras
ou signos (visuais, acústicos etc.) não são definidos positivamente pelo seu
conteúdo (referência, representação, verdade/mentira), mas negativamente por
suas relações com outros signos de uma cadeia de significantes – justaposições
de signos como, por exemplo fotos com textos, títulos com legendas, ou
aproximações e contaminações de notícias como na atual bomba semiótica do
“1+1=3”.
Portanto, todo hip atual das fake news e agências de
checagem não passa de uma interesseira apropriação pela metade da linguística e
da semiótica – se na Linguística há as divisões Fala/Língua, Eixo
sintagmático/paradigmático, na Semiótica há representação/percepção – a
interpretação, a criação de signos mentais a partir da percepção de uma cadeia
de signos.
Fact-checking toma apenas o
partido da Língua e da Representação. Mas todos sabemos que isso não se trata
de alguma falha metodológica, hermenêutica ou heurística. É apenas um álibi
para cercear a mídia alternativa, blogosfera e Internet. Sob a embalagem da
suposta cientificidade das “ferramentas” e “plataformas”.
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