O escritor e dirigente sindical Roberto Ponciano no seu artigo “Cultura, Violência e Direito à Insurreição”
observa uma “docilidade cultural” que parece tomar as manifestações no Brasil e
alerta: “Nesse ritmo de paz e amor em que estamos, embalados pelos showmícios
de Caetano, ao menos nos tornaremos escravos mais alegres do mundo”. O editor
do blog “O Cafezinho”, Miguel do Rosário, aponta que essa opinião revela “a
inapetência da esquerda em fazer luta simbólica”, luta que corresponderia ao
próprio campo da Comunicação”. Porém, essa “luta simbólica” confronta a chamada
“Guerra Híbrida” cuja principal estratégia é a dessimbolização ou retórica da
destruição. Diante disso, a criação de simbolismos de “luta e resistência” mais
parece uma prescrição alopática de cura pelos opostos: se a mídia desinforma,
vamos informar. Se a mídia dessimboliza, vamos então criar símbolos. Por que
não a metodologia, por assim dizer, homeopática: a cura pelos semelhantes?
Responder à simulação e mentira com ações diretas dentro do campo da comunicação
também com simulações e mentiras, direcionadas ao próprio campo de
dessimbolização da mídia corporativa. Táticas de “pegadinhas” e “trolagens” já
existem – Cuture Jamming e Media Prank, por exemplo.
Duas crianças
brincam juntas com seus brinquedos. Uma com dois anos e a outra três anos mais
velha. Pouca diferença de idade mas, nesse período inicial da infância, uma
defasagem fundamental.
A criança mais
velha se esmera em fazer uma torre com blocos de madeira. É observada pela
outra. Quando termina, olha orgulhosa para sua pequena peça de engenharia
lúdica. Impulsivamente, a criança de dois anos derruba a torre num só golpe, e
rapidamente espalha para todos os lados todos os demais bloquinhos de madeira e
se diverte com tudo.
Com cinco anos
a criança já ingressou no jogo simbólico – através da brincadeira do faz de
conta ela quer assimilar e simbolizar o mundo: imaginar, representar, criar.
Enquanto aos dois anos ela pensa de forma egocêntrica – pensa o mundo a partir
de si mesma: seus impulsos, prazer e gozo. No seu estágio pré-simbólico seu
maior prazer é o imediato. É muito mais fácil destruir do que construir.
O prazer da
criança de dois anos está na entropia, desordem, caos. Enquanto a mais velha
estoicamente persiste na sua pequena engenharia lúdica.
Docilidade cultural
Toda essa
pequena cena introdutória é para iniciar um contraponto à resposta que o
jornalista Miguel do Rosário, editor do blog O Cafezinho, deu ao escritor e dirigente sindical Roberto Ponciano
no seu texto “Cultura, Violência e Direito à Insurreição” – clique aqui.
Ponciano observa
uma certa “docilidade cultural” que parece ter tomado conta das atuais
manifestações políticas no Brasil. Depois de observar que não vivemos tempos de
“paz e amor” e de que a esquerda perdeu “a dimensão do risco de fazer parte do
movimento social, coisa que tínhamos até o fim da década de 70”, e de que
“nossa sociedade é violenta” na qual a polícia existe “para evitar que a favela
desça e destrua o asfalto”, o autor conclui de forma contundente: “Nesse ritmo
de paz e amor em que estamos, embalados pelos showmícios de Caetano, ao menos
nos tornaremos escravos mais alegres do mundo”.
Miguel do
Rosário discorda de Ponciano por depreciar o estilo “cultural e festivo” das
manifestações políticas no Brasil. Para ele, o autor estaria caindo na velha
“inapetência da esquerda partidária em fazer a luta simbólica”, uma das
supostas causas das suas derrotas no Brasil.
Para Rosário, a
“luta simbólica” corresponde à “luta no campo da comunicação”. “A comunicação
política, para ser eficaz, precisa de cultura. Ou seja, precisa de chicos,
caetanos, emicidas e mano brows”, argumenta. Mas, por outro lado, apoia o
diagnóstico de Ponciano dizendo que “o golpe é brutal, avança muito rápido e é
chegado o momento de atitudes mais objetivas”.
Guerra híbrida e luta simbólica
Esse humilde blogueiro pede a licença para
discordar tanto de Rosário quanto de Ponciano. Apesar das críticas de Rosário
ao diagnóstico de Ponciano sobre manifestações políticas festivas que, quando
terminam, o País volta a entrar na (a)normalidade, creio que ambos articulistas
incorrem numa certa incompreensão da “luta simbólica no campo da comunicação”.
Mas principalmente de uma utilização incorreta do conceito de “simbólico”.
Enquanto
Ponciano fala em “confronto duro” e “resistência”, Rosário aponta para a
necessidade de “cultura” na luta no campo da comunicação. Talvez, algo assim
como a música “Pense e dance” do Barão
Vermelho ou “Comida” dos Titãs –
“Agente não quer só comida/a gente quer comida, diversão e arte”.
“Luta” e
“resistência” são alguns dos simbolismos mais caros para as esquerdas.
Sofrimento e dor expostos como denúncias simbólicas contra tiranias. Algo como
o jornalista Antonio Barbosa Filho sugeriu ao dizer que “Lula preso é o herói
que a esquerda romântica deseja”. Como Gramsci, Lula escrevendo as “Cartas do
Cárcere” diretamente das masmorras da PF de Curitiba, denunciando o “Estado
policial, o arbítrio e o golpismo” - clique aqui.
Como enfrentar
a chamada Guerra Híbrida (conjunto de estratégias de engenharia de percepção
pública e táticas de ação direta nas ruas iniciada em 2013 para desestabilizar
o governo Dilma até o impeachment – o que nós denominamos como “bombas
semióticas”) através das armas de uma luta simbólica no campo da comunicação?
A questão é que
até aqui tivemos uma batalha desigual, não tanto pela questão da diferença
econômica e tecnológica – o monopólio da grande mídia X blogs e a “mídia
técnica” da Secom nos governos petistas. Mas principalmente pelas naturezas
totalmente opostas de como lidam com a comunicação: a Guerra Híbrida dessimboliza a comunicação; enquanto as
esquerdas querem fazer luta simbólica
na comunicação.
Dessimbolização e a retórica da destruição
Voltando à
pequena cena introdutória, as esquerdas agem como a criança de cinco anos: buscam
construir narrativas simbólicas (a pequena torre com bloquinhos de madeira)
para representar uma realidade. Enquanto isso, tal como a criança de dois anos,
a grande mídia e todo o conjunto das táticas de guerra híbrida dessimbolizam –
criam pânico, medo, desordem, ódio, caos.
Enquanto as esquerdas
querem criar simbolismos (por exemplo, a resistências das senadoras que
ocuparam a mesa da presidência como protesto para impedir o prosseguimento da
aprovação das “reformas trabalhistas”), a mídia corporativa dessimboliza – não há metáforas, apenas
metonímias e lateralidade: aproximar, justapor notícias para criar
contaminações, desordenar narrativas para criar dissonâncias, ambiguidades,
insegurança.
Há protestos na
avenida Paulista? Aparecem black blocs atiçando a violência policial que passam
a ser o foco midiático principal, ignorando a pauta da manifestação. Greve?
Foco midiático nas queixas e incertezas de usuários do transporte público.
A mídia
corporativa desinforma, enquanto as esquerdas tentam informar através de gestos
e atos simbólicos. A grande mídia está fora dos cânones da representação,
enquanto as esquerdas ainda nutrem a esperança iluminista da denúncia e a
revelação da verdade para a História.
Lula escreverá
as “Cartas do Cárcere” que entrarão para a História como as do Gramsci? Será
que no futuro as “Cartas” serão baixadas em PDF por usuários com trabalho
precarizado cuja renda mal dará para pagar uma conexão de Internet decente? O
golpe é brutal e avança rápido.
Como escreve
Miguel do Rosário “é chegado o momento de atitudes mais objetivas”. Porém, o
diagnóstico e o remédio prescrito parece sempre estar no campo da alopatia: a cura pelos opostos – a mídia
desinforma? Então, vamos informar. A mídia dessimboliza, as esquerdas
confrontam com gestos e atos simbólicos.
Para a mídia corporativa
destruir é mais fácil do que construir, desinformar é mais fácil do que
informar. Como a pequena criança de dois anos da cena acima, a entropia e
desordem são mais prazerosas pelo egocentrismo. O que no final ganha o apoio da
opinião pública pelo prazer psíquico regressivo infantil de ver tudo se
desmoronando, dada a aversão à política ou qualquer forma de representação –
não é à toa que certa vez Walter Benjamin disse que “as massas assistem
fascinadas o espetáculo da sua própria destruição”.
Alopatia e homeopatia política
Acredito que a
saída seja através da cura pelos
semelhantes – um método homeopático.
Se a grande mídia opera no campo da dessimbolização, da destruição e da
desinformação, as esquerdas deverão também agir no mesmo campo. Dessimbolizar
ou destruir a própria mídia. Em seu próprio campo.
Táticas e métodos já existem: Media Prank (ou “pegadinha”) e Culture Jamming (“trolagem” ou
comunicação de guerrilha) são alguns exemplos já discutidos por esse Cinegnose
– clique aqui.
Mais do que o
desinterino Michel Temer e sua quadrilha ou as bancadas do boi, da Bíblia e da
bala no Congresso, o maior inimigo é a mídia corporativa, seu jornalismo de
guerra e a retórica da destruição.
Isso implicaria
em mudar totalmente as metodologias de ação política – a ação direta contra os
meios de comunicação para desmoralização progressiva do jornalismo corporativo,
cujo modus operandi é repleto de
pontos fracos: a avidez pela busca de “personagens”, o stress em confirmar a
pauta dos “aquários”, a necessidade dos eventos serem “noticiáveis”, repórteres
que funcionam “no automático” e acabam traídos pelo próprio traquejo (de
“vazar” ao invés de “investigar”, por exemplo) etc.
Envio de
releases para plantar informações falsas nas redações, criação de personagens
fictícios (com no exemplo do documentário brasileiro O Abraço Corporativo – clique aqui), seguir e trolar links ao
vivo de TV, sabotar enquetes interesseiras de repórteres nas calçadas. Por que
não levar as notícias para as portas da grande mídia com showmícios e atos
“simbólicos” na frente de emissoras de TV e jornais?
Por que não
seguirmos e transformarmos qualquer link ao vivo de TV num inferno de surpresas
e insegurança para os ávidos repórteres? – não com violência, mas com
intervenções desmoralizadoras com simulações, encenações etc.
Combater a mentira
com mentiras, enfrentar a simulação com outras simulações, assim como Jim
Carrey em Show de Truman que simulou
que dormia com travesseiros sob o cobertor atraindo a atenção das câmeras de vigilância,
enquanto num barco fugia daquela gigantesca simulação televisiva da cidadezinha
de Seaheaven.
Atos simbólicos
da esquerda como a heroica ocupação da mesa da presidência do Senado se esgotam
no consumo interno dos blogs, sites e redes sociais de esquerda, enquanto a
grande mídia “samba em cima” como fossem apenas gestos de mulheres tresloucadas,
provavelmente com sintomas de TPM...
Luta simbólica
não é necessariamente “luta no campo da comunicação” como conceituou o
jornalista Miguel do Rosário. A principal arma da atual guerra híbrida é a
dessimbolização, a retórica da destruição na comunicação.
Atacar a
simulação midiáticas com outras simulações em ações diretas chama-se estratégia
irônica.
A grande mídia
e a guerra híbrida tem ao seu lado o fascínio infantil das massas pela entropia
e destruição. Às esquerdas resta ser menos iluminista e mais irônica - a força
do retorno do cinismo do helenismo da antiga Grécia de Diógenes e Pirro: uma
arma não só de crítica mas de desmoronamento irônico das formas institucionais
de comunicação.
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