Lá pelos anos
1990, Oliviero Toscani lançou o livro “A Publicidade é um Cadáver que Nos
Sorri” sobre a inutilidade social da Publicidade que não mais vendia produtos,
mas estilos de vida mentirosos. Propunha um modelo de Publicidade com função
social, assim como o Jornalismo. Porém, o Jornalismo virou corporativo e
transformou-se no próprio espelho da Publicidade - assim como grifes, marcas e
logos promovem produtos, o próprio Jornalismo passou a promover a si próprio
por meio da grife do “investigativo”. Por isso, foi sintomático o 12o. Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo da Abraji, realizado na
Universidade Anhembi Morumbi/SP, promover o procurador-geral Rodrigo Janot como
estrela máxima e os “bastidores das delações da JBS e Lava Jato” como o “case”
principal de um suposto jornalismo investigativo que terceirizou a atividade
jornalística. Para a Abraji, jornalismo investigativo é “checar informações” de
vazamentos que sempre selecionam seus jornalistas “investigativos” favoritos. Enquanto
isso, Martin Baron (editor retratado no filme “Spotlight”) deu o verniz investigativo
necessário para jornalistas que confundem investigação com checagem de vazamentos.
Há um gênio
maligno presente em todos os sistemas. Sempre quando chegam em um determinado
ponto de desenvolvimento e complexidade encontram um ponto de viragem: acabam
inviabilizando sua própria finalidade, voltando-se contra si mesmos.
Pensadores como
Georges Bataille (1897-1962) e Jean Baudrillard (1929-2007) pressentiram essa
natureza que só recentemente a Teoria dos Sistemas, através das pesquisas de Francisco
Varela e Niklas Luhumann, compreenderam melhor: os sistemas tendem a se tornar
“cegos” em relação ao mundo exterior por meio da auto-organização e fechamento
operacional.
Bataille falava
em “parte maldita”: sistemas tendem ao dispêndio e perda por meio de impulsos
ilógicos, por mais que tente criar uma autoimagem de racionalidade e
utilitarismo, como faz o sistema econômico e seus ideólogos da chamada “ciência
econômica” – leia BATAILLE, G., A Parte Maldita, Autêntica Editora.
Baudrillard
falava em “grau zero” e “hipertelia” – qualquer finalidade é substituída pela
simulação e sedução: o sistema, qualquer sistema, perde sua finalidade inicial
para simular a si próprio como racional e lógico. Como um morto vivo, o sistema
funciona através de uma autoparódia – clique aqui.
Georges Bataille e Jean Baudrillard |
O Grau Zero da Política e do Jornalismo
Com subsistemas
sociais como a Política e o Jornalismo aconteceria a mesma coisa – a Política
encontrou o grau zero quando descobriu que o Poder não mais existe, pelo menos
como um locus (o Palácio, o
Congresso, o Tribunal etc.), um espaço a ser preenchido por uma classe social
ou grupo. O Poder migrou para a banca financeira e transnacional, na gestão
automática e algorítmica do Capitalismo com seus longos ciclos de crise e
prosperidade.
Através do
marketing, partidos políticos simulam diferenças entre si, fazem paródia do
velho espectro da Política (da esquerda à direita) e vivem do escândalo, da
denúncia e do moralismo para por em movimento um sistema zumbi.
E o Jornalismo
descobre que é a peça essencial nessa simulação sistêmica: escândalos e
denúncias são sistemática e seletivamente vazados para a mídia corporativa
segundo uma agenda política que tenta esconder esse “grau zero” de si mesma.
Porém, assim
como o subsistema da Política, o Jornalismo tem que simular racionalidade e
utilidade. Isto é, simular a finalidade original à qual o Jornalismo
supostamente serviria: informar a sociedade, investigar, enfrentar os
poderosos, perigosamente indo onde os poderes tentam cerceá-lo: na verdade dos
fatos, sempre à serviço do leitor.
Rodrigo Janot: contando tudo para os "investigativos" |
Rodrigo Janot estrela da Abraji
Um exemplo
explícito e flagrante que comprova esse grau zero do Jornalismo foi revelado no
12o Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo
promovido pela Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo),
encerrado no dia 01 de julho no campus Vila Olímpia da Universidade Anhembi
Morumbi.
É sintomático
que a maior estrela do evento tenha sido o procurador-geral da República,
Rodrigo Janot, em um palco no qual via-se um grande quadro com os logos dos
patrocinadores representantes da gestão algorítmica do Capitalismo que
prescinde da Política para se reproduzir: da banca financeira, passando pelas
gigantes de tecnologia da informação e chegando ao consulados dos EUA – irônico
mix que faria qualquer repórter investigativo ficar de cabelo em pé.
E mais! Evento
realizado em uma universidade comprada pela norte-americana Laureate
International Universities, controlada pelo fundo de investimento KKR. Em uma emblemática
transação dentro do processo de internacionalização do sistema educacional
brasileiro que até aqui nenhum repórter/editor investigativo da grande mídia
preocupou-se em escarafunchar detalhes, contradições ou conflitos de interesses.
Que, aliás, estão lá estampados no grande banner dos patrocinadores e
apoiadores do evento.
Um evento muito
mais corporativo do que jornalístico: sob a égide da grife “jornalismo
investigativo”, apresentar uma alegre e descontraído Rodrigo Janot (discorrendo
sobre casos em aberto sem nenhum dos “investigativos” presentes questionar
violações éticas da sua profissão) cuja prática, como de todo judiciário
brasileiro, é a de vazar seletiva e sistematicamente para jornalistas
“investigativos” delações ou denúncias.
Um jornalista investigativo ficaria de cabelos em pé ao ver a lista de patrocinadores e apoiadores da Abraji - Did you follow the money? |
Furos e vazamentos
Orgulhosamente,
o site da Abraji informava que o prato principal do evento seriam “mesas com os
bastidores da revelação da JBS e outros furos da Lava Jato”. “Furos” como, por
exemplo, o mais recente do colunista Lauro Jardim de O Globo, sob a permissão da alta cúpula do grupo dos irmãos Marinho.
“Furo” que se confunde com vazamento da PGR para um único veículo de imprensa,
sob as bênçãos dos interesses econômicos dos patrões.
A presença
bombástica no evento da própria fonte dos supostos “furos” é tão surreal como
seria se o misterioso informante conhecido pelo codinome “Garganta Profunda”
(que deu informações para o Washington Post, fazendo disparar a crise política
e o impeachment de Nixon nos EUA) fosse a principal atração em um congresso de
jornalistas nos anos 1970.
“Furo” e “investigação” são grifes dessa
espécie de autoparódia no qual o subsistema do Jornalismo simula utilidade e
finalidade – “informar”.
O campo do
jornalismo corporativo parece ter consciência disso e tenta manter as
aparências. O texto do site da Abraji que anunciava orgulhosamente a atração
principal do Congresso, gastou cinco parágrafos (quase metade da matéria)
justificando que o “furo” da delação da JBS envolveu “constantes checagens”,
“consultando documentos”, “verificando informações”, tudo para “confirmar as
informações que recebia”.
Mas também é
sintomático que o solerte repórter “investigativo” não fez a pergunta básica:
por que vazar? Qual o interesse de quem está vazando? Por que essas informações
chegam até mim? Simplesmente os vazamentos pautam o noticiário e tudo o que a
“investigação” faz é “confirmar informações”. Parece que o destemido jornalismo
investigativo dessas plagas esquece o preceito básico dito por bons professores
de jornalismo: “follow the money”, “siga o dinheiro” – descubra o interesse
daquele que te oferece informações.
Para a Abraji
jornalismo investigativo é... “checar informações”.
Martin Baron (à esquerda) |
“Garganta Profunda” foi a congressos jornalísticos?
Se no passado
heroico do Jornalismo, as fontes eram desconfiadas, resistentes, misteriosas,
obrigando repórteres irem à campo para encontrá-las e conquistá-las a duras
penas, hoje tudo é mais fácil. As fontes de vazamentos mostram-se,
solicitamente correm para congressos jornalísticos e viram atrações principais
para profissionais e estudantes que um dia pensam em se tornar também
“investigativos”.
O jornalismo
corporativo perde sua finalidade social para se tornar uma paródia de um
jornalismo agora imortalizado pelo cinema hollywoodiano.
Mais uma vez,
também é sintomático a presença no Congresso do jornalista Martin Baron,
editor-chefe do Washington Post que
coordenou a equipe Spotlight – a mesma do filme vencedor do Oscar. Vem para
reforçar a mitologia midiática de um jornalismo autofágico: consome a si mesmo
– devora a própria memória de uma época heroica que não mais existe e que se tornou um clichê
fílmico, revivido como farsa.
O gênio maligno dos sistemas transformou o
jornalismo corporativo em um morto vivo que simula a função de informar.
Assim como no
subsistema Político, no qual o Poder migrou do locus do Legislativo, Executivo e Judiciário para o sistema global
financeiro-algorítmico (o sistema daqueles logos estampados no banner ao lado
do sorridente Rodrigo Janot), no sistema do Jornalismo a notícia desapareceu
com a terceirização das fontes – a transformações das redações em assessorias
de imprensa de ministérios públicos.
Juntos criaram
o sistema judicial-midiático, cego ao mundo exterior, auto referencial e
tautológico. Criam cortinas de fumaça de escândalos e crises políticas.
Enquanto isso, fora da vista das massas fascinadas com o show dos vazamentos da
delações, denúncias e moralização, vão passando todas as reformas exigidas pelo
Anarcocapitalismo da banca financeira global que mandarão às favas direitos sociais em um "brave new world".
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