O curta
brasileiro “Correntes”(2016), de Alessandro Vecchi, retoma a força das imagens,
a própria natureza do cinema – todo o poder das alegorias e metáforas,
dispensando linhas de diálogo e a narrativa realista. A incomunicabilidade de
um casal cercado de fotos de um passado de filhos e momentos felizes. Mas que
agora tudo se acabou em um tenso silêncio no qual a TV e o smartphone são as
únicas válvulas de escape. O curta guarda duas ironias: o silêncio é o som mais
alto que se pode ouvir em uma relação – tudo é comunicação, mesmo o silêncio.
Porém uma forma de comunicação catatônica e neurótica, a incomunicabilidade. E
a segunda ironia: como as tecnologias chamadas “de comunicação”, ajudam a
reforçar a incomunicabilidade. Principalmente o fenômeno da “dupla tela” dos
smartphones no qual enquanto a mente ocupa o ciberespaço o corpo mantem-se
inerte no espaço presencial.
Se a alegoria é
uma metáfora em movimento, o cinema é por natureza alegórico. O chamado “primeiro cinema” sabia disso, e por essa
razão privilegiou mais a imagem do que o som. Dos primeiros filmes mudos ao
cinema impressionista de Abel Gance e surrealista de Buñuel nos anos 1920, o
cinema explorou toda a possibilidades alegóricas e metafóricas das imagens, que
se perdeu com a chegada do som e as linhas de diálogo que na maioria das vezes
apenas repetem aquilo que as imagens já mostram.
O curta Correntes, do diretor Alessandro Vecchi
é uma dessas produções que retomam essa
natureza da arte cinematográfica – criar metáforas para coloca-las em movimento
por meio de alegorias. Principalmente
quando o tema é a incomunicabilidade, capaz de negligenciar o amor e toda uma
vida conjugal. Nada melhor que o silêncio dos protagonistas para discorrer
sobre a incomunicabilidade, e deixar que as alegorias falem por si mesmas.
Embora em preto
e branco e render essa homenagem à natureza alegórica primeira do cinema, Correntes não é nada nostálgico: insere
a incomunicabilidade e negligência afetiva dos protagonistas num ambiente
midiatizado pelos celulares e a TV. Tema urgente e atual.
Se grossas
correntes prendem o casal de protagonistas um no outro, o cimento ideológico ou
o “anestésico” que tira a mente da situação enquanto os corpos mantem-se
acorrentados são, paradoxalmente, dispositivos de comunicação – o ciberespaço
do celular e redes sociais e o espaço virtual da televisão.
O Curta
Correntes
começa com um interessante jogo de campo/contra-campo. Vemos a cada plano um
homem e uma mulher com expressões de cansaço e desânimo. Viram para o seu
contra-campo e dão um leve sorriso. Para depois retornar às expressões
desanimadas, nos encarando.
O plano abre e
o breve sorriso sem graça dado um para o outro se transforma em tédio ao olhar para
a TV. E suas pernas estão atadas a grossas e pesadas correntes. E na ponta não
há uma bola de ferro... mas o companheiro.
Mas o sorriso
fica mesmo franco, quase a gargalhadas, quando fazem a segunda tela com seus
celulares, digitando mensagens e supostamente olhando memes engraçados.
O curta abre e
fecha com fotos de toda a vida conjugal: o namoro, casamento, os filhos e as
alegrias de festas e brincadeiras. Tudo ficou nas fotos e no passado. Enquanto
ao redor, podemos perceber uma casa velha, com paredes descascando, móveis
surrados e um sofá rasgado e encardido.
O que são as
correntes que prendem o casal um ao outro. Culpa? Ressentimento? Remorso? O
peso da instituição Família que os obriga a permanecer juntos mesmo depois que
o amor acabou?
Eles são
obrigados a arrastar as pesadas correntes para o quarto, para a cozinha, para
qualquer lugar. Em silêncio, sempre juntos.
Há uma música
da banda The Cure chamada “The
Loudest Sound” que descreve essa situação de incomunicabilidade: lado a lado,
em silêncio, uma casal passa os dias. Nada para dizer, um olhando para o céu e
o outro para o chão, cada um desejando mundos diferente. E a música encerra
dizendo que esse silêncio “foi o som mais alto que já ouvi”.
Incomunicabilidade no ciberespaço
Essa cena
mostrada pelo curta apresenta duas ironias que vale a pena ser comentada.
A primeira, o
silêncio como fosse “o som mais alto que se possa ouvir”. Gregory Bateson e Watslawick fizeram uma série de pesquisas nos anos 1960 (a
chamada “Escola de Palo Alto”) com formas de comunicação esquizofrênicas e
catatônicas.
Os resultados demonstraram que em diversas vezes o silêncio, como negação de comunicação, é uma forma de
fazê-lo, como uma resposta (feed-back) interacional na tentativa de adaptar-se
ou sobreviver a uma relação conflituosa. Por exemplo, um casal permanece em
silêncio. Este não-comunicar pode ser uma resposta a uma relação conflituosa. O
silêncio pode ser interpretado como uma estratégia do sistema buscar um
equilíbrio (homeostase) e manter o vínculo (a manutenção, embora neurótica, da
relação).
Dessa forma, para a Escola de Palo Alto, as linguagens informais estão
na base das transformações culturais. As “linguagens silenciosas” estão na
origem de cada construção da realidade por uma cultura: modos de amizades,
negociação, acordos, modos de perceber o tempo e o espaço.
Para os pesquisadores, é impossível não haver comunicação. Mesmo o
silêncio, é uma forma simbólica de comunicar-se. Apesar de neurótica e
catatônica: não há feed-back, interação.
E a segunda ironia complementa esse estado de incomunicabilidade: o
papel dos meios de comunicação como TV e smartphones, que paradoxalmente
reforçam a incomunicabilidade.
Como disse
certa vez o urbanista e pensador francês Paul Virilio, as formas cada vez mais
velozes, tanto de deslocamento quanto de comunicação, criam estados paradoxais
de inércia. E o ciberespeaço seria uma dessas situações – fazemos dupla tela
vendo TV, em festas, numa roda de amigos, com a própria namorada em um
restaurante. Nossos corpos estão presente no espaço dos eventos. Porém, nossas
mentes saem dali para viverem no ciberespaço, um nowhere virtual – leia VIRILIO, Paul, A Inércia Polar, Dom Quixote, 1993.
A televisão já
havia iniciado esse processo de inércia das relações humanas - toda família em
silêncio, diante da tela para depois cada um se trancar nos seus quartos com
sua TV portátil.
A era atual dos
dispositivos móveis como tablets e smartphones apenas radicalizam essa
tendência: agora podemos fazer dupla tela (despachar nossa mente para o
ciberespaço enquanto nossos corpos inertes ocupam o espaço físico) em qualquer
situação relacional.
Ironicamente,
esses dispositivos modernos apenas reforçam (ou se tornam válvula de escape) de
um mal estar bem antigo: a incomunicabilidade nas relações humanas neuróticas e
catatônicas.
Por tudo isso,
o curta Correntes é uma grata surpresa: combina aquilo de mais antigo da arte
do cinema e audiovisual (o poder alegórico e metafórico das imagens) com um
problema até antigo, porém reforçado pelas modernas tecnologias digitais: a
incomunicabilidade humana.
Ficha Técnica |
Título: Correntes
(curta)
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Diretor:
Alessandro Vecchi
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Roteiro: Alessandro Vecchi
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Elenco: Milene Haddad e Zé Antônio do
Carmmo
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Produção: Alessandro Vecchi e Betta Lima
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Distribuição:
Vimeo
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Ano: 2016
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País: Brasil
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