segunda-feira, fevereiro 22, 2016

Nos labirintos da Nova Idade Média com Umberto Eco


Falecido aos 84 anos nessa sexta-feira em Milão, Umberto Eco criou um projeto inédito: o encontro da Semiótica com o Medievalismo. Especialista em Idade Média, Eco  afirmava que procurava encontrar aspectos medievais no presente. O que levou a criar o seu projeto semiótico em uma simples definição: “é a disciplina que, a princípio, estuda tudo aquilo que possa ser usado para mentir”. Por isso, o frade detetive do livro/filme “O Nome da Rosa” tornou-se a síntese daquilo que Umberto Eco buscou em toda vida: leitores críticos que conseguissem escapar dos labirintos medievais das interpretações que fingem ser verdades e que apenas replicam “autorictas”. Eco testemunhou no final a criação da nova versão desse labirinto - a Internet. E alertou a necessidade de um novo leitor crítico que encontrasse uma nova saída desse labirinto: a Teoria da Filtragem.

A Idade Média sempre foi uma constante obsessão para o chamado “mago de Bolonha”. Embora Umberto Eco escrevesse com a mesma desenvoltura temas tão diversos desde tratados de estética medieval, ensaios sobre histórias em quadrinhos e cultura de massas, passando pelos fenômenos da significação na Semiótica e linguística e chegando à ficção ao se tornar romancista de sucesso mundial com livros como O Nome da Rosa e O Pêndulo de Foucault, seus conhecimentos de medievalista sempre serviram como uma lente através da qual analisava qualquer tema.

O blog Cinegnose conheceu Umberto Eco a partir do seu livro Viagens na Irrealidade Cotidiana onde o texto “Televisão: A Transparência Perdida” e seus conceitos de Paleotevê e Neotevê são preciosas ferramentas para dissecar a atual irrealidade midiática.

Umberto Eco dizia que sua preocupação constante era ver aspectos medievais em coisas que aparentemente eram modernas. Nesse livro isso fica explícito no texto “A Nova Idade Média” – na irrealidade cotidiana a televisão deixaria de ser uma janela aberta para o mundo na medida em que falaria apenas de si mesma em um labirinto de metalinguagem e eventos-encenação.

Fechadas nas suas casas e inseguras com o mundo lá fora, as pessoas veriam apenas TV tentando se conectar com a transparência perdida do mundo, mas apenas se fechariam cada vez mais como estivessem em castelos medievais fortificados, amedrontadas com as hordas bárbaras nômades.


A epifania da estrutura ausente


Seja estudando a estética medieval de Tomás de Aquino, a cultura de massas, a Semiótica ou as chamadas “ciências banidas” (ocultismo, sociedades secretas, mesmerismo, esoterismo e magia), Eco preocupava-se em entender a sensibilidade de nossa época baseada na perda da integridade, da globalidade, da troca da sistemacidade ordenada pela instabilidade, polidimensionalidade, mutabilidade – uma cultura que expressa a catástrofe, teoria do caos, estruturas dissipativas, relatividade, fragmentações quânticas. Aquilo que Eco chamava de “epifania da estrutura ausente” que nos ensinaria algo sobre o mundo.

Uma sensibilidade que um outro autor italiano, Omar Calabrese, chamava de “sensibilidade neobarroca”. Umberto Eco via nessa sensibilidade uma espécie de labirinto medieval (diferente do labirinto clássico grego onde o fio de lã Ariadne é a solução para achar o caminho de volta), um labirinto maneirista como múltiplas ramificações de uma árvore. Onde nos perdemos nas múltiplas interpretações e tiramos prazer disso. O prazer em se perder e abandonar as noções de verdade, fidelidade ou originalidade.

Obra Aberta


Eco fez seu doutorado na década de 1950 fazendo um leitura da estética medieval em São Tomas de Aquino onde a obra de arte e o belo são analisado pela “sensibilidade da época”, marcada pela luz e transcendência num mundo fugaz e frágil.

Nos anos 1960 Eco publicou Obra Aberta, coletânea de artigos sobre poética da arte contemporânea. Sua obsessão pela Idade Média paradoxalmente o levou a arte de vanguarda onde o objeto artístico se abre a múltiplas leituras ou interpretações pelo receptor – obras de arte ambíguas e auto-reflexivas. Assim como Dante construiu a Divina Comédia antecipou certas possibilidades de leituras, no entanto a obra deveria apontar para um sentido unívoco.

Essa tensão entre fidelidade e liberdade interpretativa exigiria um leitor crítico que se diferenciaria do ingênuo – apesar da ambiguidade e liberdade, a arte exigiria uma competência para fruição estética.


Apocalípticos e Integrados


 Isso levou Eco à discussão sobre a cultura de massas no livro Apocalípticos e Integrados: examina o fenômeno da cultura de massas procurando mediar as posições entre os frankfurtianos que acreditavam que a indústria cultural levaria à alienação e dominação (os “apocalípticos”) e os funcionalistas norte-americanos que ela favoreceria a democratização do saber (os “integrados”).

Eco faz um exercício interpretativo e vê validades nos argumentos de ambos os lados. Parece haver nesse livro uma linha de continuidade com Obra Aberta: também a própria cultura de massas cria ambiguidade e auto-reflexividade – ela pode ser ao mesmo tempo condenada e valorizada.

Guerrilhas Semiológicas


Essa ambiguidade do produto da indústria cultural de Apocalípticos e Integrados somada a necessidade da existência de um leitor crítico leva Eco a escrever o pequeno texto chamado Guerrilhas Semiológicas em 1967. Nesse manifesto de política midiático, Eco vislumbrava a possibilidade de organização educativa conseguir fazer um determinado público discutir a mensagem que está recebendo da TV e inverter o seu significado. Ou mostrar que a mensagem pode ser interpretada de diversos modos. Para Eco, pouco importava dominar a fonte da informação: era necessário criar guerrilhas semiológicas de “porta em porta” para inverter o sentido das significações e desarmar as ideologias.

Essas possibilidades de interpretações infinitas das “obras abertas” o fez mergulhar na crítica ao estruturalismo e na aproximação da Semiótica a partir de 1968 com A Estrutura Ausente. A partir desse livro derivariam todas as outras obras nos anos 1970: As Formas e os Conteúdos (1971), O Signo (1973) e depois a obra mais bem elaborada sobre o tema: Tratado de Semiótica Geral (1975).

No lugar do valor ontológico de estruturas e da referencialidade do signo, Umberto Eco vai preferir estudar a noção de interpretante em Peirce e o processo de semiose como contínua produção de sentido – Eco abandona a noção de signo (como algo que está para algo), enfraquece a ideia de correspondência, e passa a se debruçar na ideia de semiose como um processo virtualmente infinito de interpretações e produção de novos significados.


Semiótica e a mentira


Diante da “falácia referencial” dos linguistas, Eco vai definir a Semiótica como “a disciplina que, a princípio, estuda tudo que possa ser usado para mentir” (Tratado Geral de Semiótica, p.8).

Haveriam no mundo diferentes interpretações ou “verdades semióticas”, o que torna o estudante semiótico um detetive tal como o frade Guilherme de Bascerville do seu livro O Nome da Rosa. Um detetive que não busca o sentido último dos signo, mas denuncia como as interpretações podem se fazer passar como verdade única – como fossem juízo de fato e não um juízo semiótico, ou seja, uma significação social entre outras.

Dessa maneira, os signos podem matar, assim como os monges copistas em Nome da Rosa envenenados pelo veneno colocado nas páginas do livro herético.

O detetive do livro O Nome da Rosa que tenta resolver as mortes em série dos monges copistas em plena Idade Média é a síntese do projeto semiótico de Umberto Eco associado a sua obsessão pela estética medieval.

Por exemplo, o recurso da “Autorictas” na cultura medieval que ressurgiria na “Nova Idade Média” atual: o discurso medieval era constituído por grandes monólogos de citações de autoridades, mantendo o mesmo léxico, a mesma retórica, o mesmo argumento. Era uma forma como o medieval reagia à desordem e à dissipação cultural da decadência do Império Romano – leia “A Nova Idade Média”, In: Viagens na Irrealidade Cotidiana.


A semiose infernal


Hoje, esse recurso se repete sob a roupagem da “falácia referencial”: através de maneirismos, bricolages, pastiches etc. produzem-se novas significações através da repetição. Se na Idade Média a repetição da “Autorictas”, hoje é escondida sob a patina das diferentes opiniões, métodos e o monopólio econômico e midiático.

No seu recente livro O Cemitério de Praga (2011) esse projeto semiótico fica evidente: como um texto forjado como O protocolo dos Sábios do Sião criou uma semiose infernal: serviu de base para o antissemitismo que fez desembocar na doutrina nazista que se desdobrou em uma máquina de propaganda. 


Por isso, no final da vida Umberto Eco via a Internet como uma semiose selvagem e perigosa: informações excessivas  e sem hierarquia, onde a criação de novas significações transformou-se em replicações, como na autorictas medieval.

Se nos anos 1960 Eco propunha as “guerrilhas semiológicas”, no final o “mago de Bolonha” acreditava na urgência da criação de uma “Teoria da Filtragem” diante da semiose selvagem nas novas tecnologias. Então, todos nós nos transformaríamos no frade franciscano detetive Guilherme de Bascerville de O Nome da Rosa: encontrar o verdadeiro conhecimento no meio das repetições que criam a falácia semiótica da verdade.

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