Em posto
avançado militar francês em um lugar remoto, montanhoso e desolado na fronteira
entre Afeganistão e Paquistão, soldados esperam a chegada de um comboio da OTAN
para retirá-los de lá e leva-los para suas famílias. Repentinamente, no meio
das noite solitárias e frias, soldados começam a desaparecer de seus bunkers de
observação. Tudo que têm como suspeitos é uma aldeia de criadores de ovelhas e
soldados talibãs, que também começam a ser vítimas dos misteriosos
desaparecimentos. Essa é a coprodução franco-belga
“Nem o Céu Nem a Terra”(Ni Le Ciel Ni La Terre, 2015), uma fábula do Realismo Fantástico no qual é
descrito o fracasso de toda racionalidade e da tecnologia militar de vigilância
e informação diante de um inimigo invisível e incompreensível para a lógica
Ocidental: o místico e o mágico que o avanço da Razão Ocidental julgou ter
eliminado através do “desencantamento do mundo”. Filme sugerido pelo nosso
leitor Felipe Resende.
Desde os filmes
MASH (1970) e Apocalipse Now (1979) os filmes de guerra não poderiam mais ser os
mesmos. Das visões de Robert Altman sobre uma equipe de cirurgiões que
debochavam do Comando do Exército em plena Guerra do Vietnã a uma figuração
feita por Coppola dessa mesma guerra como loucura e delírio lisérgico, a
temática da guerra no cinema chegou ao máximo de questionamento crítico.
Com o início da
guerra antiterror após os ataques aos EUA em 2001, a abordagem da guerra no
cinema sofreu um radical retrocesso, limitando-se a peça de propaganda das
ações norte-americanas no Oriente Médio. Filmes como Guerra ao Terror (2008),
Soldado Anônimo (2005), Green Zone (2010) e até produções como as franquias da
Marvel Comics (na estreia de Homem de Ferro, Tony Stark vira refém de
terroristas no Afeganistão) fazem parte de uma elaborada estratégia de engenharia
de opinião pública na qual Hollywood transformou-se (mais uma vez) em braço
midiático do Departamento de Estado dos EUA.
Mas em toda
essa enxurrada de filmes sobre batalhas de heróis dos EUA ou da OTAN no Iraque
e Afeganistão, um filme destaca-se como contraponto: Nem o Céu Nem a Terra (2015), longa de estreia do diretor Clément
Cogitore sobre soldados franceses estacionados em um lugar inóspito na
fronteira entre Afeganistão e Paquistão.
Não se trata mais aqui de ações heroicas,
coragem, arrojo e inteligência contra um inimigo claro e visível dentro dos
cânones do clichê hollywoodiano dos RAVs (Russos, Árabes e Vilões em geral). O inimigo,
se é que existe, é invisível. Como o título nos informa, um inimigo situado em
algum lugar entre o Céu e a Terra.
O elementos do Fantástico
e do Mistério são inseridos em um ambiente no qual armas, binóculos de visão
noturna, fotos de satélite e toda a parafernália logística e tecnológica da
máquina de guerra Ocidental se tornam impotentes diante do insólito das lendas
de afegãos criadores de ovelhas em uma pequena vila em algum lugar remoto no
fim do mundo.
Por que um a um
dos soldados daquela companhia desaparecem sem deixar vestígios? Sem violência,
tiros ou reféns. Tudo o que aquele posto avançado militar tem a seu favor é a
alta tecnologia, armas e a fé católica.
De um lado, a
racionalidade do capitão que tenta manter seus homens unidos. E do outro a fé
cristã de seus homens, incapazes de compreender o que ocorre.
O filme Nem o Céu Nem a Terra mostra uma interessante
argumento de como a tecnologia bélica Ocidental e o catolicismo tornam-se sem
sentido e inúteis numa terra dominada pela magia e misticismo – o catolicismo
expurgou da Terra mitos e lendas como excrescências pagãs e deixou o mundo
vazio de sentido. Para depois ser explorado pela Razão, Ciência e Técnica por
um processo que Max Weber (1864-1920) chamou de “desencantamento do mundo”. E em seguida ser
dominado e destruído pela guerra e a civilização. Mas o inexplicável e o
Fantástico podem retornar para fazerem o acerto de contas.
O Filme
Nem o Céu Nem a
Terra é um filme de guerra praticamente sem ação. Filmado na terras áridas,
isoladas, rochosas e montanhosas do Marrocos, o filme acompanha soldados
franceses em um posto militar avançado no meio do nada no Afeganistão. Apenas
têm como companhia uma vila de criadores de ovelhas e alguns soldados do
Talibã, que criam algumas cenas mais tensas do filme.
Mas há um
clima, por assim dizer, de final de festa. Todos os soldados estão alí à espera
do comboio da OTAN para serem retirados de lá, num movimento de retirada de
todas as forças daquele país. O capitão Antarès Bonassieu ( Jérémie Renier)
luta para manter o espírito da tropa diariamente em alta numa atmosfera de
lassidão geral pela absoluta ausência de propósito nos dias que restam.
Antarès é um
líder que luta diariamente para manter os soldados ativos e vigilantes,
passando as noites monitorando as montanhas rochosas e desoladas com seus
binóculos e telescópios de visão noturna.
Porém,
inesperadamente a ausência de propósito da lugar à perplexidade: depois de um
encontro com um aldeão e sua ovelha, dois soldados em um bunker avançado nas
montanhas desaparecem sem deixarem nenhum sinal – foram mortos? Sequestrados?
Obviamente, as
suspeitas do capitão Antarès caem no pequeno vilarejo. Buscas nas casas e
interrogatórios com os moradores nada revelam. As coisas começam a ficar mais
estranhas quando sabemos que também alguns talibãs que vivem nas montanhas
também desapareceram nas mesmas misteriosas circunstancias.
Definitivamente
o pânico é deflagrado quando mais um soldado desaparece, no mesmo bunker,
apenas no meio tempo em que seu companheiro saiu para urinar entre as pedras.
Racional e
prático, Antarès exorta: “temos que atacar!”. Mas atacar quem? Seu “inimigo” é
silencioso e invisível. E o pior: como justificar para as famílias dos soldados
e ao Alto Comando os bizarros desaparecimentos? Como dar uma explicação racional
e lógica, principalmente diante dos seus subordinados cujo crescente medo é um
preocupante elemento de desordem e de quebra da autoridade do capitão.
Uma jornada do racionalismo ao misticismo
Toda a
tecnologia de vigilância e informação disponíveis para uma unidade da OTAN como
câmeras, visão noturna e imagem de satélites são inúteis para resolver o mistério:
os soldados estão mortos? Viraram reféns de algum “povo das cavernas”? Ou
simplesmente, sumiram no ar?
O contraponto à
racionalidade de Antarès é a religiosidade do soldado William Denis (Kévin
Azaïs), que mantém um pequeno altar com cruz e velas.
Acompanhamos a
jornada psicológica e emocional extrema do Capitão Antarès, que o conduz do
racionalismo teimoso ao misticismo obsessivo – ele passa a acreditar que os
soldados desaparecem quando dormem, principalmente depois de ouvir o relato das
lendas locais de um jovem aldeão: aquela região é “terra de Allah”. Todos que
ali deitam no chão e dormem, Allah os leva para um outro mundo, um mundo “ao
lado e ao redor do mundo”. Portanto, nem no céu e nem na Terra.
Por isso, os
soldados são obrigatoriamente privados do sono, criando uma tensão
ininterrupta: as longas noites de silêncio e tensão em um lugar desolado e
arrasado pela guerra no fim do mundo são os componentes perfeitos para a
realidade se misturar com o delírio.
O desencantamento do mundo
Nem o
Céu Nem a Terra apresenta diversos subtemas como a situação do líder que
falha em apresentar alguma explicação lógica a seus subordinados e os efeitos
da privação do sono, tal como no filme Insônia (2002) com Al Pacino.
Para aqueles
espectadores que buscam em filmes do gênero Fantástico ou Mistério o terror,
sustos e a solução de enigmas, poderão se decepcionar com esse filme cuja
narrativa é lenta, na qual a tensão vai sendo construída passo a passo. Porém,
sem entregar uma solução. Parece que para o diretor a solução do mistério pouco
importa – Clément Cogitore está mais interessado em estudar os efeitos sobre
aqueles que tentam enfrentá-lo.
Mas,
principalmente, mostrar a absoluta impotência da racionalidade tecnológica e a
religiosidade diante da dimensão mística e mágica desse mundo.
O sociólogo Max
Weber falava em “desencantamento do mundo” no qual o sujeito moderno despe o
mundo dos costumes e crenças. Uma “desmagificação do mundo” no qual, um dos
lados, é a eliminação do místico e do mágico no interior das religiões, sendo
substituída pela prática religiosa fundada na ética.
Esse processo
esvaziou o mundo de qualquer sentido imanente, deixando livre para a ciência e
a técnica explorarem um real transformado em deserto, para depois destruí-lo
através da guerra.
Nem o Céu Nem a
Terra é uma fábula dos destinos do psiquismo Ocidental nesse processo weberiano
de racionalidade e dominação burocrática do mundo. E nada mais simbólico do que
aquelas paisagens montanhosas desoladas nas quais um destacamento militar
francês enfrenta a vingança dos mistérios desse mundo.
Ficha Técnica
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Título: Nem o Céu Nem a Terra
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Diretor: Clément Cogitore
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Roteiro: Clément Cogitore
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Elenco: Jérémie Renier, Swann Arlaud, Kevin Azaïs, Marc Robert
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Produção: Kazak Productions, Tarantula
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Distribuição: Wolf Films
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Ano: 2015
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País: França, Bélgica
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